SEM RESPOSTAS

Dez dias após sumiço de menino Lucas, Favela do Amor vive em clima de medo

Rotina da comunidade mudou depois do desaparecimento de adolescente de 14 anos e suspeita do envolvimento de PMs

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Lucas após a cerimônia de batismo em uma igreja evangélica no primeiro semestre deste ano
Lucas após a cerimônia de batismo em uma igreja evangélica no primeiro semestre deste ano - Arquivo

Dez dias após o desaparecimento do menino Lucas Eduardo Martins do Santos, de 14 anos, a vida na Favela do Amor, comunidade em que o adolescente morava, foi completamente modificada. O Brasil de Fato esteve na região, a partir de articulação com a Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, e acompanhou um dia na vida dos moradores.

Os sentimentos predominantes são medo e revolta. Apesar de estar encravada em Santo André -- na região do ABC Paulista, um dos dez municípios com os maiores índices de homicídios do estado de São Paulo -- a Favela do Amor, como o nome sugere, era um lugar tranquilo.

Moradores não viam problema em esquecer de trancar a porta para dormir e estabelecimentos comerciais ficavam abertos até a madrugada, em busca do movimento de trabalhadores que chegavam tarde da rotina diária.

Lucas foi visto pela última vez em um desses estabelecimentos – uma pequena venda montada na janela da frente de uma das casas da comunidade.

“Todos as famílias daqui chegaram há muito tempo e a gente se conhece muito bem. Todo mundo se relaciona bem e é normal as crianças brincarem na rua até tarde. Um cuida do outro, um gosta do outro, ninguém tem ligação com a criminalidade como estão tentando dizer por aí”, conta uma familiar.

::“Queremos o Lucas”: favela exige saber o que PM fez com menino desaparecido::

"Eu moro aqui"

O adolescente morava com a mãe, dois irmãos e a cunhada, mas passava boa parte do dia na casa da tia, com o primo e melhor amigo.

Ele costumava voltar para casa após às onze da noite, horário em que o irmão mais velho voltava do trabalho. Todos os dias os dois cumpriam um ritual: iam juntos comprar um pacote de bolachas e uma garrafa de refrigerante.

Na madrugada do dia 13, no entanto, o irmão se atrasou, Lucas seguiu sozinho na frente e não voltou mais.

Pouco tempo após a saída do menino, a mãe de Lucas, Maria Marques Martins dos Santos, ouviu o barulho de um veículo na porta de casa e, na sequência, a voz do filho dizer “eu moro aqui”.

Não é porque o menino saiu meia noite para comprar bolacha do lado de casa que ele é bandido

Ao olhar pela janela, Maria viu uma viatura da Polícia Militar deixando o local. Momentos depois, dois policiais bateram na porta, fizeram perguntas sobre os moradores, pediram para entrar e foram autorizados, mas desistiram na sequência.

Uma das tias do adolescente conta que após o sumiço do jovem, as portas vêm sendo trancadas cedo e o comércio não abre mais no período noturno.

“Estamos com medo, presos dentro de casa, eu não consigo mais ficar sozinha. Meus filhos choram lembrando do primo. Como alguém pode abordar um garoto que ainda tinha cara de criança? Não é porque o menino saiu meia noite para comprar bolacha do lado de casa que ele é bandido.”

Ao perceber que Lucas não voltava para casa, parentes começaram a procurar por ele na região.

Um deles encontrou um morador de rua usando o moletom que era do jovem. O homem disse que encontrou a peça perto de uma escola, que fica a cerca de um quilômetro da casa do adolescente.

Estamos com medo, presos dentro de casa.

No local os familiares encontraram também o boné do garoto. O registro do desaparecimento foi realizado na 6ª Delegacia de Santo André, mas encaminhado ao Setor de Homicídios da cidade.

Suspeitas e afastamento

As suspeitas de que policiais militares possam estar envolvidos no sumiço de Lucas levaram ao afastamento dos dois agentes que atuavam no local e que foram apontados como possíveis responsáveis por levar o garoto. Eles estão fora das ruas, mas seguem atuando em funções administrativas. O caso é investigado pela Corregedoria da PM.

Desde o sumiço de Lucas, moradores realizam uma série de manifestações na entrada da comunidade e pedem uma solução para o caso. Alguns relatam que receberam ameaças de agentes nessas ocasiões, mas dentro da comunidade, os moradores dizem que as rondas policiais diminuíram. Uma vizinha do garoto é taxativa: “Quem não deve, não se esconde!”

Corpo

Na sexta-feira (15), o corpo de um jovem foi encontrado em um lago no Parque Natural Municipal do Pedroso, também em Santo André.

O rapaz estava apenas com a roupa íntima e o processo de reconhecimento feito pelos irmãos não foi conclusivo.

Alguns familiares têm certeza de que se trata de Lucas, mas a confirmação só será possível após um exame de DNA. Em nota a Secretaria de Segurança Pública informa que os trabalhos de identificação estão em andamento. Foi estabelecido um prazo de dez dias para uma resposta final.

“Nós vivemos com medo agora. Mas o nosso maior medo não é nem da violência, mas de que esse exame aponte que o corpo não é de Lucas e que ninguém se esforce mais para encontrar ele. Que ele seja esquecido e que tudo fique por isso mesmo.”

Diante da dúvida e das supostas ameaças, a comunidade decidiu não realizar mais as manifestações que vinham ocorrendo diariamente. “A gente prefere esperar até para entender pelo que devemos brigar.”

Prisão da mãe

Outro fator que aumenta o temor da população local é a prisão de mãe de Lucas, na noite de terça-feira (19).

Ela foi detida ao chegar no Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa (SHPP) de Santo André para prestar depoimento sobre o caso do filho. Maria Marques constava como foragida em um processo de investigação por tráfico de drogas.

O mandado de prisão era de 2017. Mas os familiares e vizinhos estranham o caso, que encaram como uma tentativa de criminalização da família.

"Ela mora no mesmo endereço há nove anos e até já trabalhou com carteira assinada. Vivia na mesma casa com os filhos. Como podia estar foragida? Eles que não vieram procurar", relata uma parente. 

Genocídio de jovens negros

O sumiço de Lucas ocorreu no mesmo dia em que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou números confirmando que os jovens pretos e pardos são as maiores vítimas da violência no Brasil.

Os dados indicam que a taxa de homicídios nessa população supera em quase três vezes a registrada entre brancos.

Ainda de acordo com os números do IBGE a violência a que jovens pretos ou pardos estão submetidos é mais letal. Em junho, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou o Atlas da Violência, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O documento também demonstrava números alarmantes. Entre 2007 e 2017, o assassinato de pessoas pretas aumentou dez vezes mais do que no resto da população. 

Edição: Rodrigo Chagas