entrevista

“Fake news estão cada vez mais complexas”, diz autor de livro sobre protestos e redes

Em "Dias de Tormenta", jornalista Branco Di Fátima analisa como as mídias sociais têm fomentado manifestações pelo mundo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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"As ruas e as redes se retroalimentam", afirma o autor da obra
"As ruas e as redes se retroalimentam", afirma o autor da obra - (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Nos últimos 30 anos, as tecnologias de comunicação e informação levaram milhões de manifestantes às ruas e foram cruciais para transformar a vida política de dezenas de países. A constatação é registrada no livro Dias de Tormenta: os movimentos de indignação que derrubaram ditaduras, minaram democracias no mundo e levaram a extrema-direita ao poder no Brasil, do jornalista Branco Di Fátima, recém-lançado pela editora Geração Editorial. 

A obra é o resultado de cinco anos de pesquisas, investigações e entrevistas com manifestantes de diferentes nacionalidades. Em entrevista ao Brasil de Fato, o autor explica que a comunicação online foi utilizada de forma inédita, como ferramenta de organização, pelo Movimento Zapatista em 1994, no México. De lá para cá, outros movimentos históricos -- sejam eles de direita ou de esquerda -- aprimoraram o uso das tecnologias de comunicação, processo que se consolidou com as redes sociais.

Para Di Fátima, não há dúvida que a organização política pela internet veio para ficar. 

“As pessoas, para participar da vida política, tendem a utilizar os recursos que estão próximos delas. A internet faz parte do dia a dia, então é muito natural que seja utilizada para participação política. Agora, o mais preocupante não é um retrocesso que essa participação online poderia causar, mas o desgaste que os nossos representantes tem passado”, afirma.

Dias de Tormenta também aborda o crescimento das fake news (notícias falsas), responsáveis pela ascensão da extrema direita em diversos países. “As fake news tem estruturado, há algum tempo, o nosso discurso político. O conceito ficou mais conhecido a partir de 2016, com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Mas as fake news não são um fenômeno novo: notícias falsas, 'rádio peão', informações distorcidas sempre existiram. Inclusive, derrubaram imperadores romanos”, comenta o autor.

“Porém, as notícias falsas de hoje têm características que chamam atenção: elas se tornaram mais complexas, assumem a forma de informação com tratamento jornalístico”, ressalta Di Fátima, especialista no tema e doutorando em Comunicação pelo Instituto Universitário Lisboa (ISCTE-IUL).

Confira entrevista na íntegra. 

Brasil de Fato: Desde quando a internet e a tecnologia da informação começaram a ser preponderantes nos protestos de rua? É possível identificar um país ou movimento pioneiro?

Branco Di Fátima: A criação da internet remonta a 1979, com a criação da Arpanet, dentro do Departamento de Defesa dos EUA. Só que a internet só se torna um meio de comunicação e informação a partir de 1993 e 1994, que é quando são vendidos os primeiros pacotes de acesso a internet. 

Coincidentemente, é também de 1994 o primeiro movimento que lança mão da internet para se organizar: o Movimento Zapatista, formado sobretudo por indígenas e camponeses do estado de Chiapas, no sudeste do México, fronteira com a Guatemala. No dia primeiro de janeiro de 1994, eles tomam um conjunto de sete cidades cobrando mais autonomia e melhorias nos serviços públicos daquela região. 

Mexicanos que começaram a procurar informações sobre esse movimento acabaram por utilizar a internet para cobrar um cessar fogo do então governo mexicano, já que o governo respondeu a esse movimento com artilharia pesada, na bala. E essa foi a primeira vez que os cidadãos, pessoas comuns, lançaram mão da internet para questionar um governo sobre as suas práticas. 

A sociedade ficou sentida com aquele combate tão violento, de uma força tão desproporcional, e utilizou listas de e-mail para convocar protestos e organizar manifestações contra o governo mexicano. 

Foi um dos primeiros exemplos bem sucedidos de uso da comunicação online como forma de organização política?

Sim. Muitos autores atribuem o sucesso do Movimento Zapatista à forma como o seu sistema de comunicação foi organizado. Porque ele conseguiu fazer circular essa informação por meios alternativos de comunicação, mas também pautar os grandes veículos de comunicação. É uma característica que hoje é comum em muitos movimentos: a necessidade de fazer circular determinado tipo de comunicação por canais que não estão direcionados ao grande público, mas também pautar a forma como os grandes veículos de comunicação noticiam determinado fenômeno. Ou seja, controlar a narrativa. 

Quais são as outras manifestações analisadas no livro? 

O livro começa em 1994, com o Movimento Zapatista; depois vem para 2002, com o golpe contra Hugo Chávez, na Venezuela; depois disso, um atentado contra os trens de Madrid, em que o governo espanhol criou uma narrativa tentando culpar o grupo separatista ETA, e depois se descobriu que havia sido perpetrado pela Al Qaeda.

Em seguida, fala de todas as fake news contadas em torno da Guerra do Iraque; o Irã, com o Movimento Verde, que questionou a eleição de Mahmoud Ahmadinejad, em 2009; a "Primavera Árabe" de 2011 e 2012; os movimentos contra as políticas de austeridade na Europa, também em 2011 e 2012. Ao final, as jornadas de junho de 2013, no Brasil, até a eleição de Jair Bolsonaro, no ano passado. 

 


Capa do livro. (Imagem: Divulgação)

 

Essas manifestações tem uma orientação política única, ou podem ser tanto de esquerda quanto de direita?

Quando surgem, essas manifestações acabam por aglutinar pautas muito diversificadas. Em junho de 2013, havia tanto pessoas com pautas de esquerda muito bem delineadas, quanto pessoas que pediam a volta dos militares, monarquistas, ou pessoas de centro. 

Quando o fervor das manifestações esfria, os movimentos de extrema direita conseguem se organizar melhor. Os movimentos de esquerda e de centro se agarram às suas estruturas: partidos políticos, centrais sindicais. E, na verdade, nós não tínhamos, até então, uma organização de extrema direita institucional, forte. 

O movimento já existia, mas naquele momento ainda não tinha uma estrutura bem definida. Ela aproveitou essa força que a internet teve, desde junho de 2013, para se organizar. 

Esse fenômeno mudou a história de países como Irã, Portugal, Venezuela, Egito, Estados Unidos, e mais recentemente Chile, Bolívia e Hong Kong. No livro, você trata da questão do fundamentalismo religioso, que também tem se apropriado dessa ferramenta. 

A internet é mais do que uma ferramenta, porque ela começa a moldar a forma como as pessoas pensam. Nós vimos recentemente a ascensão do Estado Islâmico, que se organizava por células, em rede, de forma totalmente descentralizada. A produção de conteúdo audiovisual era em um lugar, as bases militares em outro, o comando central em outro. 

Nós também temos que levar em conta que a internet é uma tecnologia que já chega a mais de 50% da população mundial -- no Brasil, quase 70% da população. Por ser uma ferramenta que serve tanto para falar com amigos e familiares quanto para pagar uma conta de banco e estudar, obviamente ela era um canal a ser apropriado pelos extremistas. 

Nós sabemos hoje, através de pesquisas, que a faixa-etária que mais utiliza a internet são os jovens. Quanto maior o nível de formação, maior o acesso a internet. Então, é muito natural e nada surpreendente que grupos extremistas se apropriassem dessa tecnologia. No caso do EI, vimos muitos jovens ocidentais que foram cooptados por esses grupos extremistas do Oriente Médio para lutar nas suas trincheiras. 

 


Di Fátima analisa a relação entre rua e redes. (Foto: Maria Silvério)

 

A organização presencial e virtual se entrecruzam, necessariamente?

As ruas e as redes se retroalimentam. Quando nós tivemos as jornadas de junho, em 2013, o Ibope foi até as pessoas perguntar como elas tinham ficado sabendo das manifestações. A grande maioria, 77%, viu a convocatória pelo Facebook.

As pessoas que estavam na rua transmitiam todo o fervor das ruas para a internet. No dia 13 de junho daquele ano, aconteceu uma manifestação brutalmente reprimida pela polícia, e no dia 17 de junho houve a maior manifestação vista no Brasil nos últimos anos. 

É possível dizer que essas manifestações de rua trouxeram mudanças estruturais?

Uma manifestação de rua é um movimento social. A principal transformação que um movimento social produz é a forma como as pessoas pensam. Naquela altura, o preço da passagem de ônibus abaixou, as pessoas conseguiram o que queriam. Só que a maior transformação foi a forma como as pessoas pensavam o seu papel na sociedade.

Nós sentimos o reflexo de junho de 2013 até hoje. A fortíssima polarização que resultou daquele processo está aí.

A dinâmica que resultou nessa polarização é algo que veio para ficar? É possível pensar outro tipo de organização?

Essa pergunta é muito complexa, porque exige quase um exercício de futurologia. A verdade é que esse sistema de polarização já é antigo no mundo -- no Brasil, era representado pelo PT e pelo PSDB, com o MDB no meio --, mas o que nós estamos sentindo ao longo desses anos, na verdade desde 1970, 1980, é uma profunda crise de representatividade.

Essa crise é notada na Europa, na Ásia, no Oriente Médio. A cada dia, as pessoas acreditam menos nos seus representantes, acreditam menos nos partidos políticos. Esse cenário é extremamente perigoso, pois permite a ascensão de candidatos como Jair Bolsonaro -- um populista que oferece respostas simples para problemas complexos. 

Como vivemos essa crise de representatividade, era muito natural que houvesse um desgaste do que nós chamamos de esquerda e do que nós chamamos de direita, e que poderia surgir um candidato que conseguisse se vender como um outsider.

Nesse espaço do desgaste, essa organização online pode ser um retrocesso, mais que um avanço democrático?

A organização pela internet veio pra ficar -- quanto a isso não há dúvida nenhuma. As pessoas, para participar da vida política, tendem a utilizar os recursos que estão próximos delas. A internet faz parte do dia a dia, então é muito natural que seja utilizada para participação política. Agora, o mais preocupante não é um retrocesso que essa participação online poderia causar, mas o desgaste que os nossos representantes tem passado. 

Há exemplos de outros países que utilizam a internet de forma muito interessante. Por exemplo, observatórios participativos. Nós temos, por exemplo, a "cidade digital" na Holanda, em que o cidadão constrói a melhor cidade, a melhor iluminação de uma determinada região, e a participação política, online, é muito mais ampla do que apenas se organizar para protestar. Há países como a Holanda e a Suécia que pensam em um dia conseguir produzir eleições somente pela internet. 

A propagação das fake news, como aconteceu no Brasil, é comum aos outros países citados no seu livro?

As fake news têm estruturado, há algum tempo, o nosso discurso político. O conceito ficou mais conhecido a partir de 2016, com a eleição de Donald Trump nos EUA. Mas as elas não são um fenômeno novo: notícias falsas, "rádio peão", informações distorcidas sempre existiram. Inclusive, derrubaram imperadores romanos. Porém, as notícias falsas de hoje têm características que chamam atenção: elas se tornaram mais complexas, assumiram a forma de informação com tratamento jornalístico. 

Hoje é mais fácil editar fotos e vídeos, e as mentiras se tornam mais complexas, mais difíceis de serem desmascaradas. As notícias, com auxílio dessas novas tecnologias de informação e comunicação, se propagam com muito mais velocidade. Antigamente, a notícia falsa ou era difundida por veículos de comunicação de massa ou pelo boca a boca. 

Hoje, uma informação publicada em um grupo de WhatsApp, em poucos minutos, pode atingir milhares de pessoas. É muito rápido. E é sempre muito difícil contrapor essas informações. 

Qual é a importância geopolítica da internet? No caso recente do Chile, as imagens e a produção feitas pelos próprios manifestantes tomaram o mundo.

Na verdade, esses movimentos sociais que têm a internet e as redes sociais como base de organização têm uma característica comum que é a busca de internacionalização. É a tentativa de convencer a opinião pública de que o que acontece internamente tem importância a nível global. 

Nós vimos isso muito claramente na chamada "Primavera Árabe", em que surgiram diferentes cartazes escritos em francês e inglês, bloggers que se preocupavam em publicar conteúdos em alemão, espanhol... 

Esse mesmo fenômeno nós vimos também nas jornadas de junho [de 2013]. Surgiram muitas mensagens, tanto na internet como de forma física, nas ruas, de pessoas que faziam cartazes em inglês, alemão, espanhol, em uma tentativa de conectar o movimento local com o pensamento global.

Nós temos também que levar em conta que todo esse fenômeno que nós vivemos -- com a crise de representatividade, a popularização das novas tecnologias -- são fenômenos globais e locais. 

No do WikiLeaks e da "Vaza Jato", foram utilizadas tecnologias para apuração e divulgação de documentos que pessoas ou entidades gostariam de esconder.

As novas tecnologias passaram a ser a base material do jornalismo praticado hoje. É impossível encontrar um jornal no mundo que não tenha um site, que não tenha aderido às redes sociais. 

Há veículos que têm investido em processos mais complexos, como o The Intercept, que recebeu um arquivo gigantesco de informações vazadas e se colocou a garimpar essa informação de forma insistente. Para isso, é preciso ter conhecimento de ciência de dados, análise de rede, e isso é um tipo de conhecimento que ainda não é bem trabalhado nas universidades e escolas de jornalismo. 

Não há dúvida de que, nos próximos anos, esse conhecimento ganhará centralidade no modo como os jornalistas são formados e na forma como o público consome a informação. Nós já vemos isso há alguns anos, com o WikiLeaks.

Há uma década, o WikiLeaks vem vazando informações sobre o escândalo dos EUA, de espionagem de seus próprios cidadãos e de governos aliados; de como empresas de alimentação vêm trabalhando para fazer mutações genéticas de alimentos.

Então, o vazamento de informações em si não é uma novidade. A questão é que os arquivos têm ficado mais complexos e é preciso que os jornalistas e os cidadãos também complexifiquem seu conhecimento sobre a matéria, para que possam aproveitar ao máximo as informações disponíveis. 

*Colaborou Marcos Hermanson

Edição: Daniel Giovanaz