Saúde Pública

Cracolândia: Pesquisa que indicou faturamento de R$ 9,7 milhões na região é criticada

Ex-usuário questiona média de consumo:“Eu morreria”; pesquisadora defende o valor de consumo apresentado

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Grupo que atua na área rebate dados sobre roubo. “Eles são pedintes, em sua grande maioria.” - Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

Divulgada amplamente na última segunda-feira (3), o Levantamento de Cenas de Uso de Capitais (Lecuca), da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sobre a Cracolândia, na região central de São Paulo, afirma que as pessoas que circulam pela região gastam, em média, R$ 192,5 por dia com crack. O faturamento do tráfico no local, de acordo com o estudo, seria de R$ 9,7 milhões por mês.

A pesquisa foi feita com 240 pessoas que afirmam consumir crack na Cracolândia. Porém, o estudo econômico foi produzido com entrevistas realizadas com apenas 30 usuários. Foram escutados 15 homens, 13 mulheres e apenas duas pessoas trans, que afirmaram consumir R$ 162, R$ 148 e R$ 700, respectivamente.


Levantamento de Cenas de Uso de Capitais (Lecuca) sobre o consumo de crack na Cracolândia / Divulgação

Os resultados apresentados pela pesquisa chamaram a atenção de quem convive com os usuários da Cracolândia. Julio Lancelotti, padre responsável pela Pastoral do Povo de Rua, mantém estreita relação com as pessoas que circulam pela região, que fica no centro da capital paulista, e questiona a validade dos dados alcançados pelo estudo.

“Pegaram pessoas vulneráveis para entrevistar, imagino que todas elas influenciadas pelo consumo diário de drogas, não sei se as informações fornecidas por eles podem ser levadas a sério. Além disso, é um valor muito alto, é difícil imaginar que esse dinheiro circule pelas mãos deles. Está fora da realidade”, sentencia Lancelotti.

Membro da Craco Resiste, coletivo que atua na Cracolândia desde 2016 e que é formado, inclusive, por ex-usuários de drogas que transitavam na região, Daniel Mello também questiona o valor para consumo diário apresentado pela pesquisa.

“Foi um número que nos trouxe estranhamento. Os primeiros questionamentos vieram justamente dos membros do coletivo que são usuários e eles colocam que se usa pouco dinheiro dentro do fluxo. Você troca por cigarro e outras coisas. Então, falar em dinheiro é muito estranho, o fluxo não funciona com dinheiro, funciona com escambo. Grande parte deles mal tem roupas para vestir, andam maltrapilhos”, explica Mello.

Clarice Madruga, pesquisadora responsável pelo estudo, que atua na região da Cracolândia desde 2016, explica que o depoimento das pessoas trans influenciou a pesquisa, mas que o alto poder de consumo guarda relação com a atividade delas.

“Não depende de ser homem, mulher ou trans, o que determina é a prática da prostituição, ou não. A prostituição aumenta incrivelmente a renda deles. Uma das fontes que foi muito mencionada foi a prostituição e era o que fazia subir totalmente [o valor médio de consumo]”, explica Madruga.


Levantamento de Cenas de Uso de Capitais (Lecuca) sobre o consumo de crack na Cracolândia / Divulgação

A pesquisadora aponta que na Cracolândia, cada pedra de crack custa R$ 10. Dessa forma, os R$ 192,70, valor médio de cada usuário da região, representa um consumo de quase 20 unidades da droga por dia.

“Eu acho que todo mundo que não investiga isso [consumo diário] a fundo, fica meio surpreso. Se você conversa com eles, nenhum usuário acha estranho. Não é incomum eles afirmarem que usam 20 pedras por dia. É assustador só para quem usa crack fora da cracolândia. Se você olhar a tolerância de um usuário padrão, realmente pode levar ao óbito. Mas o usuário de lá , chega a usar cerca de 20 pedras. Outra coisa que temos que apontar, que está na literatura, é quanto o crack da cracolândia está impuro, o princípio ativo está muito baixo”, encerra.

Um ex-usuário de crack, escutado pelo Brasil de Fato, que prefere não revelar sua identidade, se demonstrou surpreso com o valor trazido pela pesquisa. “Eu morreria se fumasse tudo isso em um dia. Nunca consegui usar tudo isso, morei lá por seis meses. Sei que tem gente que exagera, mas não é a maioria, é minoria mesmo.”

"Foco errado"

Madruga considera que a abordagem trazida pela imprensa não fez jus á pesquisa. “Esse estudo econômico é um estudo à parte. Na semana que vem sai o relatório completo, com todo o método descritivo, porque está super mal explicado nas outras matérias. Tem muita coisa ruim nas outras matérias, que pegaram um foco errado”, lamenta.

De acordo com Madruga, apesar da pesquisa mostrar outros dados relevantes, houve uma decisão de jornalistas em priorizar os dados econômicos, etapa da pesquisa realizada com uma amostragem menor, de 30 usuários. “Para a divulgação, eu achava mais seguro, mas  acabou dando errado, já que pegaram a questão mais delicada e estigmatizante, que é a do roubo”, explica.

Daniel Mello lamenta que o índice que aponta que 46% dos usuários rouba para conseguir dinheiro para consumo de droga tenha ganhado destaque. A pesquisa aponta que 58% das pessoas que consomem a droga na Cracolândia conseguem comprar com verba adquirida através de mendicância. “Eles são pedintes, em sua grande maioria.”

Nathália Oliveira, representante da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas e ex-presidente do Conselho Municipal de Política de Álcool e Drogas de São Paulo (Comuda-SP), aponta que as informações sobre o consumo diário, aliada ao dado seguinte que mostra que 46% dos usuários de drogas que circulam pela Cracolândia roubam outras pessoas para obter o dinheiro para compra da droga, provocou uma onda de criminalização da população que vive ou transita pelo local.

“Tem vários dados para serem abordados na pesquisa, inclusive mostrando a ineficácia do uso da violência, mas quando você relaciona o montante de dinheiro [R$ 192,5 por dia] e depois enfatiza a forma como as pessoas obtém esse recurso, você reforça uma perspectiva criminalizadora”, explica Oliveira.

Para a ex-presidente do Comuda-SP, o recorte feito pela imprensa não foi correto. “Quando vemos muita demanda da mídia, falando sobre violência nos territórios, o que acontece depois é uma violência policial ainda maior do que já acontece no cotidiano. Alimenta, inclusive, outros setores políticos que gostariam de fazer uma intervenção no território e promete isso tem muito tempo.”

 

Edição: Leandro Melito