Carajás

Artigo | O Massacre, 24 anos depois: tempo de recordar, por Eric Nepomuceno

Autor do livro que conta a história da morte de 21 sem-terra no Pará fala sobre a permanência dos conflitos na região

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Sobreviventes em frente ao Monumento das Castanheiras foram levadas ao exato local do massacre, na Curva do S - Marcelo Cruz/Brasil de Fato

O tempo passou, é verdade, desde que escrevi o livro O Massacre, agora atualizado em nova edição pela Editora Record.

Algumas mudanças são dolorosas para mim. Importantes personagens do livro em sua edição original já não estão entre nós.

Lamento por Domingos da Conceição, o ‘Garoto’, que tinha 15 anos na tarde daquela quarta-feira, 17 de abril de 1996. 

Sobreviveu à ação brutal da Polícia Militar do Pará, depois de ter levado mais de dez tiros, a maioria nas pernas. Mas carregou para sempre deformações na bacia e nos ombros, passou por 11 cirurgias, sobreviveu às marcas torturantes da memória e às dores físicas lancinantes que sentiu até o fim de uma vida destroçada.

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Em 2013 – 17 anos depois do Massacre de Eldorado do Carajás – morreu Almir Gabriel, o homem que governava o Pará quando a Polícia Militar fez o que fez. Nunca foi indiciado, nunca foi levado à Justiça. Lamento pela sua impunidade.

Paulo Sette Câmara, que era seu secretário de Segurança Pública, também nunca enfrentou as chamadas barras da Justiça. Ironicamente, tornou-se consultor especializado justamente em segurança pública. 

Em 2016 – 20 anos depois de ter dado a ordem ao comandante da Polícia Militar para que desobstruísse, do jeito que fosse, a rodovia e dispersasse as mais de 2 mil pessoas reunidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) – presidiu o Conselho de Administração do Fórum Nacional de Segurança Pública. 

Lamento mais essa das tantas incoerentes contradições deste país tão contraditório e incoerente.

Outra mudança: finalmente, depois de 16 anos de impunidade, em 2012, os dois policiais militares que comandaram o massacre, o coronel Mario Colares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira foram presos. Já no ano seguinte, o coronel passou a despejar pedidos para cumprir sua pena em regime de prisão domiciliar, por razões de saúde. Chegou a apelar, no final de 2015, ao Supremo Tribunal Federal (STF). 

Ouviu uma sequência contundente de negativas.

Em 2016, a 20 anos do massacre, conseguiu.

A questão mais inquietante é que, em todo o resto, muito pouco mudou. Nunca mais houve matança semelhante, é verdade. 

Mas quase: na manhã de uma quarta-feira de breu – a do dia 24 de maio de 2017– chegou-se bem perto.

Em Pau D’Arco, no sudoeste do sempre sangrado Pará, dez camponeses – nove homens e uma mulher – acampados nas margens da Fazenda Santa Lúcia foram assassinados de maneira especialmente brutal por um grupo de 29 policiais civis e militares, entre eles dois delegados e um coronel da Polícia Militar.

Há, é verdade, umas tantas diferenças entre essas duas violências. Em Eldorado do Carajás, 19 foram mortos no ato, outros dois morreram depois como consequência dos ferimentos padecidos naquele 17 de abril de 1996, e muita gente – dezenas mais de pessoas – foram feridas, várias com lesões permanentes. 

Na verdade, são diferenças que importam menos: o que mais importa é a macabra repetição dos fatos. 

Desde aquele agora longínquo 17 de abril de 1996 não houve nenhum avanço significativo na reforma agrária, e na disputa pela terra continua-se a matar desbragadamente pelo país afora. 

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Também não mudou a tenebrosa frequência com que se mata no Pará, que continua liderando a lista macabra de assassinato.

Entre abril de 1996 e o final de 2015 foram registrados no Pará os assassinatos de pelo menos 271 trabalhadores rurais e dirigentes de movimentos sociais, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).  

Aliás, 2015 tinha sido marcado como o ano de maior número de assassinatos por conflitos de terra desde 2003. 

Pois, em 2016, esse quadro continuou alarmante. Houve uma mudança, e para pior: foram 61 assassinatos, em sua imensa maioria de camponeses. Foram registradas ainda 200 ameaças de morte e 571 agressões. 

E segue a espiral sem fim: entre maio de 2016 e maio de 2017, dados da mesma CPT indicam que ocorreram 71 assassinatos diretamente vinculados a disputa por terras no Brasil.  

No relatório da violência no campo em 2016, a comissão mostra que, entre quilombolas, indígenas, líderes e integrantes de movimentos de trabalhadores sem terra, ocorreram cinco assassinatos por mês. Um a cada seis dias, um aumento de 22% com relação a 2015. 

E mais: entre 1985 e 2016, 1.834 pessoas foram assassinadas em conflitos rurais. 

Apenas 31 mandantes desses crimes foram condenados.

Entre janeiro e junho de 2017 foram pelo menos 36 assassinatos e o Pará se manteve na trágica liderança, com 12 mortos. 

Estudiosos da questão agrária no Brasil coincidem num mesmo ponto: o país tem uma das estruturas fundiárias mais concentradas do planeta. 

Para Bernardo Mançano, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), trata-se de uma clara herança do sistema colonial: "Um por centro dos proprietários detém 60% das terras".

Mançano também destaca que “os latifundiários estão cada vez mais querendo ampliar essa concentração de propriedades, porque o agronegócio e as corporações multinacionais estão muito interessados em arrendar terras, com o beneplácito do governo”. 

A fronteira amazônica, que pega Mato Grosso, Rondônia e Pará, é a área agrícola do Brasil para onde os latifundiários querem se expandir e onde mais assassinatos de posseiros, camponeses e indígenas estamos vendo. Se eles resistem, são assassinados.

Se 2016 marcou a passagem de 20 anos do Massacre de Eldorado do Carajás, também foi marcado pela deposição da presidenta reeleita dois anos antes, Dilma Rousseff (PT), e a instalação, em seu lugar, de Michel Temer (MDB), que ao longo de sua longa trajetória de deputado federal obteve sempre votações minguadas. 

Sua chegada à presidência resultou em várias alterações na questão da terra, mas em detrimento dos pequenos agricultores e evidentes benefícios, em cascata, aos grandes proprietários. 

Outra consequência dos novos tempos se observa na drástica mudança na questão do trabalho escravo ou em situação análoga à escravidão. 

Em 2017, por exemplo, a verba destinada à fiscalização foi diminuída pela metade. E uma vez mais, o estado com mais denunciados na chamada "lista suja" foi exatamente o Pará, com 63 autuações, quase o dobro do segundo colocado, Minas Gerais, com 34.

Enquanto não se avança na direção de uma mudança drástica na questão agrária, o que avança – e muito – é a violência. 

Na Amazônia ocorrem, segundo os registros de 2019, 60% dos conflitos do campo. 

Incansável e obstinado lutador pelas causas dos abandonados de sempre, o teólogo Leonardo Boff diz que os brasileiros, somos herdeiros de quatro sombras que pesam sobre nós e que originam a violência: nosso passado colonial violento, o genocídio indígena, a escravidão, que segundo ele é a mais nefasta de todas, e a Lei das Terras, que exclui os pobres e negros do acesso à terra e deixou-os à mercê do arbítrio do grande latifúndio. 

Pois essas sombras continuam enevoando o horizonte e qualquer perspectiva de um futuro de justiça e igualdade. 

Passados 24 anos do massacre de Eldorado do Carajás, o que mudou, mudou para pior. 

Se em 2007 foram 28 assassinatos por conflito de terra, em 2016 foram 61. Se em 2007 houve 1.027 conflitos, em 2016 foram 1.295. 

Em 2019, a CPT registrou 1.833 conflitos, 23% mais que 2018 e o maior número registrado nos últimos 5 anos. 

Passados 24 anos, continuam cravadas na alma e na memória dos que lutam pelo direito a um pedaço de terra os mesmos troncos queimados das castanheiras erguidos em círculo, lá na curva do S, entrada da Vila 17 de Abril. 

A sombra dos troncos queimados e das cruzes plantadas na terra do Pará se estende como mancha sobre todo este país. Como lamento dos injustiçados de sempre. 

*Eric Nepomuceno é autor e jornalista e autor do livro "Massacre - Eldorado do Carajás - uma história de impunidade".

Edição: Camila Maciel