Sr. Presidente, a sua eleição representou a vitória da democracia sobre o obscurantismo bolsonarista que nos últimos quatro anos desprezou a ameaça sanitária da covid-19, autorizou a expansão dos CACs, e celebrou as mortes de civis nas famigeradas operações policiais país afora. O odioso culto ao militarismo foi tão tosco e selvagem que conseguiu reunir condenações morais até mesmo em meios mais à direita do espectro político. Nosso medo, presidente Lula, é que o pêndulo da democracia, levado à extremidade nos últimos quatro anos, nos faça calibrar a balança em um 'ponto de equilíbrio' bem familiar: o da normalidade antinegra.
Presidente, dada sua trajetória humanista, nos urge perguntar: os assassinatos de quarenta e seis jovens predominantemente negros pelas forças policiais da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, no transcurso da primeira semana de agosto de 2023, se qualificariam como ameaça à ordem democrática? Com quantos assassinatos negros se faz um Oito de Janeiro? Até a escrita desta carta, já se contabilizam 19 assassinatos na Bahia, 10 no Rio de Janeiro e 16 no litoral paulista e, dado o apetite por sangue, não há motivo para acreditar que as 'baixas' das atuais 'operações' parem por aí.
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Em São Paulo, as denúncias de moradores das favelas são de que a polícia promete assassinar a sessenta (60!) pessoas. Os movimentos de direitos humanos também denunciam torturas, desaparições e corpos encontrados em outras favelas. Seria essa uma técnica de difusão espacial da violência para evitar a contabilidade macabra? Os ministérios de Direitos Humanos e Justiça/Segurança Pública vão esperar para ver? Nos acostumamos com um silêncio, presidente Lula, não próximo à estupidez, mas sim à covardia.
Enquanto isso, ficamos à espera de algum milagre institucional que faça da 'crise' atual o início de um novo paradigma: uma força-tarefa que acompanhe os familiares de vítimas da violência do Estado, a criação de uma Autoridade Nacional Permanente com poder de polícia que não dependa exclusivamente dos caminhos tortuosos, protelatórios e exaustivos que previnem a federalização dos crimes contra os direitos humanos, uma estratégia nacional de educação popular para o controle público das polícias.
Sabemos que no pacto federativo e no 'jogo democrático' as funções de cada ente são bem definidas e que cabe aos governadores o controle sobre as polícias estaduais. Entendemos que mesmo a federalização dos crimes de direitos humanos depende da boa vontade – chamada no juridiquês de admissibilidade – dos 'homens bons', brancos, bem-nascidos, de toga preta. De fato, embora o Brasil seja signatário de tratados internacionais e tenha previsão legal no estatuto nacional, o instituto jurídico do deslocamento de competência, previsto pela Emenda Constitucional 45/2004, tem um histórico de desempenho risível. Quantos crimes já foram federalizados no país das chacinas?
Mais recentemente, a exceção na federalização das investigações (ainda que tardias) do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes confirma a regra que envergonha o país perante o mundo. Com uma média inacreditável de seis mil pessoas assassinadas pela polícia anualmente, o governo federal não possui um mecanismo emergencial de proteção e controle (quando acionada, a Força Nacional tem cumprido o papel de ajuda as policias estaduais, principalmente durante rebeliões nas prisões) mesmo em situações em que –evocando o título da carta desesperada de um sacerdote ruandês se antecipando ao genocídio Tutsi, em 1994, mas recebida com indiferença pelo presidente estadunidense de então – as vítimas vêm a público alertar que amanhã serão assassinadas.
Como chegamos aqui? Em que 'espelho ficou perdida a face' de Antígona, presidente? Os governos que criaram o Bolsa Família, o Mais Médicos e o ProUni precisam fazer mais do que simplesmente lançar programas bem intencionados – a exemplo do Juventude Viva – sem combater o poder soberano de uma polícia que impõe a ordem racial. Enquanto isso, as mães negras envelhecem lutando contra a violência legal e legalizada que faz de seus filhos e filhas inimigas do Estado. O rótulo de bandido, no boletim de ocorrências, nas estâncias investigativas e nos tribunais, define a Justiça.
Talvez estejamos pessimistas por demais e devamos apenas esperar para ver, mas a verdade, presidente Lula, é que sendo Vossa Excelência vítima dos usos da lei para matar politicamente os opositores, se espera(va) um compromisso contra a vingança institucional organizada pela ditadura jurídico-policial contra os pobres. Afinal, a luta contra o lawfare não pode servir apenas à proteção de quem dedica a vida à nobre arte de travar o bom combate na arena representativa. O senhor sabe, a juventude negra, trans, pobres, favelada é assassinada por seu status político como pobre, negra, trans e favelada.
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Os assassinatos de jovens com "passagens pela polícia" não podem ser aceitos como normais. Gritamos, não é normal que uma das maiores democracias do mundo conviva com uma polícia que organiza bandos para 'vingar' a morte de colegas de profissão. Polícia não é mafia nem seita secreta. Policiais são funcionários públicos. A periculosidade é, infelizmente, parte da sua função e, como agentes públicos policiais não podem utilizar a estrutura do Estado para interesses privados. Qual é o interesse público das operações-vingança? Vingança não é justiça e, qualquer acomodação discursiva que busque estabelecer equivalência falsa entre a morte de um servidor público e chacinas organizadas contra as comunidades pobres é imoral e cruel.
Essa crueldade normalizadora, que nos últimos quatro anos apareceu de maneira assustadora na personalidade doentia do ex-presidente capitão, se revelou de maneira sanitizada nas últimas semanas: um ministro condenou a morte do agente público, expressou confiança nas investigações estaduais, lamentou a morte de civis, repetiu a justificativa do 'confronto' e fez uma concessão: "possíveis abusos". Desautorize, presidente Lula! Autoridades constituídas não precisam de preâmbulo humanitário temerosamente calculados para estar 'bem' com a polícia. Que Brasília busque outras estratégias que não a falsa equivalência entre vidas negras e vidas policiais para conter o peso eleitoreiro da aliança fascista evangélico-militar que assombra o país. E que Brasília expresse, sempre, a solidariedade justa e necessária para com a família enlutada de trabalhadores da segurança pública, mas que também não se esqueça da mãe negra cuja relação com o Estado não é de servidora pública, mas sim cidadā. Como desabafa Debora Silva, "com nossos impostos, pagamos pela bala que mata nossos filhos".
Talvez, presidente, a maior dificuldade dos movimentos sociais e das vítimas do terrorismo de Estado não seja tão somente lutar contra as estruturas locais/estaduais que inviabilizam qualquer investigação independente, em uma espécie de federalismo policial antinegro, mas também lograr convencer "os do lado de cá" que a democracia é ameaçada com o terror diário que as populações empobrecidas, negras e enegrecidas sofrem nas mãos dos agentes de segurança pública em tempos de normalidade institucional. Se lográssemos um protagonismo progressista do governo da "união e reconstrução", todos os percalços institucionais e amarras legais seriam superadas em torno de uma mesa de concertação nacional com movimentos sociais, familiares de vítimas, Congresso Nacional e Justiça Federal contra o terror policial.
Nos custa muito escrever, mas a verdade é que o presidente Lula que emociona a todos nós em sua luta intransigente contra a fome, falhou miseravelmente, nos seus dois primeiros mandatos, em criar um mecanismo nacional de proteção contra a violência policial. Em dada semana de maio de 2006, quando centenas de pessoas foram assassinadas e PSDB e PT governavam respectivamente São Paulo e o Brasil, a ordem democrática seguiu seu rumo, tranquila e serena. Naquele maio sangrento de então não houve Oito de Janeiro; no agosto de 2023 tampouco. Nos quatorze anos dos governos do Partido dos Trabalhadores, o crescimento econômico e a inclusão social conviveram harmoniosamente com o terror policial. Particularmente o governo Lula, como nenhum outro na história deste país, garantiu direitos e, como todos os que o antecederam, negou a vida!
Agora que a favela cumpriu mais uma vez seu compromisso com a história, salvando o país do bolsonarismo, resta saber se o operário nordestino, vítima da vingança institucional do lawfare, 'com passagem pela polícia' e eleito para um terceiro mandato, terá a coragem de proteger a democracia para além do direito de votar e ser votado. Que Zumbi dos Palmares lhe dê saúde e mais que boa vontade, querido presidente!
Respeitosamente,
*Jaime Amparo Alves, antropólogo e professor da Universidade da Califórnia, Santa Barbara
**Rosangela Martins, advogada e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo
***Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires