A Rússia chegou à cúpula do BRICS com palavras de ordem bem definidas: multipolaridade e transformação da ordem mundial. Do ponto de vista do Kremlin, a ideia de fortalecer o bloco que surge como alternativa à hegemonia do Ocidente é uma forma de conquistar aliados em meio à guerra da Ucrânia.
Isso ficou claro na participação do presidente Vladimir Putin, que usou a cúpula como plataforma para justificar as ações na Ucrânia e culpar o Ocidente.
“Somos contra qualquer tipo de hegemonia, contra a exclusividade promovida por alguns países e contra a nova política baseada neste princípio, a política de continuidade do neocolonialismo”, afirmou.
Participando da cúpula de forma remota, por vídeoconferência, devido ao mandado de prisão emitido contra ele pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), o presidente russo declarou que “o desejo de alguns países de manter esta hegemonia levou à grave crise na Ucrânia”.
“Estamos gratos aos nossos colegas do Brics que estão ativamente envolvidos na tentativa de pôr fim a esta situação (conflito na Ucrânia) e alcançar uma solução justa através de meios pacíficos. Caros colegas, o principal é que todos somos unânimes a favor de uma ordem mundial multipolar que seja verdadeiramente justa e baseada no direito internacional”, destacou.
A confirmação da adesão seis novos membros ao Brics - Argentina, Irã, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos e Etiópia - dá à cúpula uma conotação histórica. Agora com 11 países, o bloco representa uma força geopolítica que não se alinha às sanções do Ocidente contra a Rússia. Esse motivo faz com que a cúpula tenha tido uma importância particular para Moscou no contexto da guerra da Ucrânia.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor de Relações Internacionais da Universidade de São Petersburgo Victor Jeifets diz que a cúpula teve uma importância particular para a Rússia no sentido de, em primeiro lugar, demonstrar que a ela tem aliados, “e não somente países como, por exemplo, a Nicarágua, mas influentes, que no PIB agregado, ultrapassam o G7”.
A guerra da Ucrânia foi citada apenas uma vez na declaração final da cúpula do Brics, e de forma branda e sem novidades. De acordo com o documento, os cinco países-membro manifestaram “com apreço propostas relevantes de mediação e bons ofícios que visam a resolução pacífica do conflito através do diálogo e da diplomacia, incluindo a Missão de Paz dos Líderes Africanos e o caminho proposto para a paz”.
Diferente de outros líderes presentes, o presidente Lula deu mais atenção ao conflito em seu discurso, criticando a guerra, mas sem condenar a Rússia diretamente. Ele afirmou que, em poucos anos, o mundo retrocedeu “de uma conjuntura de multipolaridade benigna para uma que retoma a mentalidade obsoleta da Guerra Fria e da competição geopolítica”.
“Essa é uma insensatez que gera grandes incertezas e corrói o multilateralismo. Sabemos bem onde esse caminho pode nos levar. A guerra na Ucrânia evidencia as limitações do Conselho de Segurança. Muitos outros conflitos e crises não recebem a atenção devida, mesmo causando vasto sofrimento para as suas populações”, afirmou.
Para o analista Victor Jeifets, os discursos de Lula e Putin evidenciaram que os países-membro não compartilham uma mesma visão em relação à guerra. As divergências também aparecem na concepção de multipolaridade. De acordo com ele, há uma concepção russa de multipolaridade que também é muito utilizada pela China, mas na América Latina, por exemplo, “é mais comum o uso do termo multilateralismo”.
Aqui a divergência não é só uma questão de terminologia, mas de visão de mundo e projeção de como tomar decisões no âmbito da governança global. Jeifets observa que a concepção russa de multipolaridade está mais vinculada a uma “redistribuição de esferas de influência no mundo”, e a visão brasileira de “multilateralismo” seria mais voltada para encontro de convergências para alcançar acordos entre Estados.
“Aquilo que o Lula fala diz respeito a esforços de várias partes, esforços conjuntos para chegar a certos acordos. Isso é mais próximo da moderna concepção do direito internacional do que o termo multipolaridade utilizado por uma série de países (incluindo Rússia), que quer dizer redistribuição da esfera de influência. Então a Rússia aqui tem base para um entendimento mútuo com os países, mas ao mesmo tempo existem limites objetivos”, argumenta.
Essa distinção nos leva para a diferença estratégica que o próprio agrupamento do Brics tem para ambos os países. O professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Fernando Brancoli observa que, para o Brasil, o Brics funciona “quase como uma chancela de que agora o país está ocupando espaços de maior prestígio e influência do sistema internacional”.
Desta forma, o ingresso de mais seis países no Brics, de acordo com o cálculo brasileiro, era visto com receio “na medida em que existiria uma espécie de diluição de poder do Brasil dentro dessa estrutura”. “Rússia e China não. Queriam a expansão. E nesse caso eu acho que foi uma derrota pro Brasil sim. Apesar de obviamente o discurso oficial dizer que não”, destaca Fernando Brancoli em entrevista ao Brasil de Fato.
Já no caso da Rússia, depois do início da guerra da Ucrânia, o Brics “ganha uma dimensão muito mais importante, porque é a plataforma principal em que a Rússia de modo geral pode argumentar que não está isolada”. Nesse sentido, o analista observa que a expansão do Brics reforça ainda mais essa narrativa. Para Brancoli, essa expansão representa “uma vitória russa”, pois “faz com que a Rússia soe muito menos isolada”.
Vale lembrar que toda a estratégia do Ocidente em apoio à Ucrânia logo após o início da guerra em 24 de fevereiro foi - e ainda é – baseada no isolamento político e econômico da Rússia para minar a capacidade do país de sustentar a operação militar no Leste Europeu. Assim, fica claro que a 15ª Cúpula do Brics representa um marco para Moscou e um êxito no sentido de contrariar a narrativa ocidental de isolamento da Rússia.
“Com a expansão desses países, pensando inclusive com a inclusão de aliados muito próximos dos Estados Unidos que é o caso da Arábia Saudita, é mais um reforço narrativo. Fica explícito que a gente está falando de uma Rússia que dialoga, uma Rússia que é recebida, uma Rússia que consegue fazer acordos. Então é uma vitória russa essa expansão”, completa Fernando Brancoli.
Edição: Rodrigo Durão Coelho