Rio Grande do Sul

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Lugar de pobre é no Centro, mas com dignidade, respeito e política adequada!

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"O trágico incêndio desta semana nos remete à urgência de alterar o rumo da política habitacional no município, voltando a priorizar o direito à cidade e à moradia da população de baixa renda" - Foto: Guilherme Santos/Sul21
O governo Melo está prestes a encerrar sua gestão sem ter dito a que veio na Política Habitacional

Em 26 de abril de 2024 Porto Alegre amanheceu em um profundo luto. Dez pessoas morreram no segundo maior incêndio da história da cidade. O imóvel que pegou fogo era uma pousada que abrigava famílias em situação de vulnerabilidade, que lá estavam em razão de um contrato com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) do município de Porto Alegre.

Impossível não ligar esta tragédia à falência da política habitacional de interesse social (HIS) e ao descaso da PMPA com as pessoas social e economicamente vulneráveis. Quatro meses antes do incêndio, a PMPA havia prorrogado o contrato com a Pousada Garoa que, das 30 vagas disponíveis, 16 operavam através de contrato com o município, mesmo sem dispor de alvará para funcionamento e sem o Plano de Proteção contra Incêndio (PPCI).

Quem são as famílias em situação de vulnerabilidade social morando nas pousadas conveniadas com a Prefeitura? É difícil acompanhar o aumento e perfil da população em situação de rua (PSR), mas há dados importantes no Relatório do Ministério das Cidades (2023), que caracteriza como um grupo populacional heterogêneo, tendo em comum a pobreza extrema; a inexistência de moradia convencional regular; 44% têm como principais motivos desta condição problemas familiares, 39% o desemprego, 29% o alcoolismo e/ou o uso de drogas. Em 2022, havia no país 236.400 pessoas em situação de rua inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais no país, ou seja, uma em cada 1.000 pessoas no Brasil estava vivendo como PSR, sendo Porto Alegre uma das dez metrópoles que possuem maior quantidade no país.

Tais pessoas empobrecidas por desemprego e despejos (situação em grande medida ampliada após a pandemia), ao invés de estarem em um prédio sem condições de habitabilidade e sujeitas à morte, deveriam estar vivendo em domicílios sob orientação do Departamento Municipal de Habitação, atendendo ao direito fundamental à moradia. Não seria favor do governo: promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico é competência comum dos entes da Federação (Constituição Federal, artigo 23, inciso IX), embora Porto Alegre, ao longo de sucessivos governos, venha se omitindo em relação a essa responsabilidade.

Em 2023 apresentamos artigos discutindo o esvaziamento dos domicílios do centro de Porto Alegre, a partir do censo demográfico do IBGE (2022).

Os imóveis vagos, além de não serem mapeados e notificados para aproveitamento adequado, são valorizados por uma aberração jurídica que é a legislação urbanística específica conformada no “Plano Diretor do Centro Histórico”, que propõe maior adensamento do centro e regime urbanístico favorável à construção de imóveis para alta renda, em vez de voltar-se à demanda habitacional social prioritária.

Sequer seria necessário produzir novas moradias, conforme dados do Censo Demográfico do IBGE (2022): bastaria o uso de instrumentos de combate à retenção especulativa de imóveis urbanos prevista no Estatuto da Cidade, notificando proprietários de imóveis vagos na cidade, para atender à função social e com eles realizar, por exemplo, consórcios imobiliários, visando à Habitação de Interesse Social. Assim, o governo Melo está prestes a encerrar sua gestão sem ter dito a que veio na Política Habitacional do município.

O município subverte o princípio constitucional da supremacia do interesse público sobre o particular, favorecendo empresas que apoiaram sua candidatura na eleição passada (Livro Reforma Urbana e Direito à Cidade - Capítulo 4 - Para quem se governa em Porto Alegre?), ao invés de colocar a política habitacional no centro da política urbana.

As precárias condições de moradia, especialmente da população que compõe a “demanda habitacional prioritária”, foram um tema ausente mesmo durante a revisão do PDDUA, cuja apreciação pela Câmara de Vereadores foi adiada para a próxima gestão. Dados da Secretaria do Tesouro Nacional mostram que, em termos percentuais, no ano de 2022, o município gastava com a função “habitação” seis vezes menos do que gastou 20 anos antes, revelando o descaso com o tema.

O prefeito Melo já lançou sua pré-candidatura com ninguém menos do que Cláudio Goldsztein, conhecido empresário da indústria da construção civil, como candidato a vice.

A população de menor renda merece viver em áreas centrais, embora o governo municipal reiteradamente faça inflexões na política habitacional semelhantes ao ideário do período da Ditadura Militar, em que o lugar dos pobres na cidade é sempre na periferia. Exemplo revelador sobre o lugar dos pobres na cidade diz respeito à polêmica envolvendo a alienação do prédio da antiga SMOV na valorizada Av. Borges de Medeiros.

A política de regularização fundiária municipal revela um desempenho ainda pior do atual governo! Deixando para trás a política pioneira de regularização fundiária voltada ao direito à cidade, como dá exemplo a “Vila Planetário” no bairro Santana, regularizada nos primeiros governos da Administração Popular (anos 1990), a PMPA tem apostado em uma política voltada meramente à titulação das moradias, sem urbanização e melhorias da infraestrutura e das moradias atendidas. Sem falar nos riscos do processo de despossessão, entregando as áreas regularizadas ao mercado imobiliário em uma dinâmica perversa que azeita a máquina do crescimento, financeiriza a terra e a moradia sem garantir os direitos fundamentais à moradia.

O trágico incêndio desta semana nos remete à urgência de alterar o rumo da política habitacional no município, voltando a priorizar o direito à cidade e à moradia da população de baixa renda. Fundamental também retomar diálogo com os movimentos por moradia que têm demonstrado compreender melhor que os pobres têm direito ao centro, mas com habitação de qualidade, com política habitacional articulada à Política Urbana e ao planejamento urbano.

* Betânia Alfonsin - Professora do Programa de Pós-graduação em Direito da FMP, Pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre e Diretora de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico. Heleniza Ávila Campos - Professora do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional (Propur) da Faculdade de Arquitetura da Ufrgs e pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.

** Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko