PAPO DE SÁBADO

Frentes de trabalho: a proposta dos movimentos populares para criar 30 mil empregos na reconstrução do Rio Grande do Sul

Mauri Cruz e Lurdes Santin explicam proposta de movimentos para que governo Lula implante programa de forma emergencial

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Os militantes sociais Mauri Cruz e Lurdes Santin foram convidados do podcast De Fato - Reprodução/Podcast De Fato

Os movimentos sociais entraram em ação, com uma corrente de apoio prático e solidário, desde o primeiro momento das cheias quando mais de meio milhão de pessoas tiveram que abandonar suas casas no Rio Grande do Sul. Agora, quando centenas de milhares perderam seus bens e muitos os seus empregos, reivindica-se outro tipo de ajuda: as frentes de trabalho para a emergência climática.

O advogado socioambiental e conselheiro do Centro de Assessoria Multiprofissional (Camp) Mauri Cruz é um dos defensores do projeto que custaria R$ 360 milhões ao poder público. “Não chega nem a meio bilhão de reais, sendo que os empresários pediram R$ 100 bilhões”, compara.

Para a militante social Lurdes Santin, do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos (MTD), o governo Lula deveria baixar logo um decreto implantando as frentes, diretamente relacionadas com as entidades da sociedade civil que já estão lidando com a questão e que possuem “capacidade e tecnologia social para atuar com o povo”. Os dois participaram do podcast De Fato onde detalharam a iniciativa. Esta entrevista é um resumo da rica e, por vezes, pungente conversa com eles.

Brasil de Fato RS - O que é o Programa de Frente de Trabalho para a Emergência Climática? Como a implementação deste programa pode ajudar as pessoas que estão desesperadas nesse Rio Grande do Sul cheio de mazelas?

Mauri Cruz - O importante é a gente se dar conta, principalmente nós dos movimentos sociais. A luta de classes nunca esteve tão aguda como está nesse período que vivemos hoje. Há um termo chamado “capitalismo do desastre”. É uma prática histórica do capital. As guerras são uma forma de destruir para vender construção. Vimos isso, por exemplo, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque e o Afeganistão. Ato contínuo, suas empresas estavam lá com recursos internacionais, tentando reconstruir o que eles mesmos haviam destruído. É o debate que acontece hoje na Palestina.

No momento em que acontece uma tragédia, quando toda a mídia trabalha o tema da solidariedade, o capital não vai pra casa. Ele olha aquilo como oportunidade. E uma das primeiras coisas que a gente viu foram os empresários gaúchos apresentarem uma conta de R$ 100 bilhões, não é? Para reconstruir aquilo que é consequência da destruição que eles provocaram e continuam provocando.

Então, as frentes de trabalho aparecem como a nossa proposta para o governo federal nessa luta de classes. Inclusive é uma proposta muito modesta. Não chega a 1% dos valores que estão sendo colocados. Mas o que irá reconstruir o Rio Grande do Sul é o trabalho e não o dinheiro. O que reconstrói, o que constrói, o que muda a vida das pessoas, é o trabalho. E o trabalho humano é feito pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras. Não é pelos empresários.

O que os empresários fazem é acumular riqueza a partir do trabalho das pessoas. Logo, as frentes de trabalho são uma oportunidade para os governos federal, estadual e municipal porque se apresenta como uma política pública. Estão baseadas em uma lei do governo Olívio Dutra, em uma conquista do MTD (então Movimento dos Trabalhadores Desempregados) de 2001, das frentes emergenciais porque a gente vivia o período do desemprego de 2001. A lei foi pensada naquele momento e hoje se encaixa nesse novo momento histórico, o das emergências climáticas. 

Tive oportunidade de coordenar um evento muito semelhante no vale do Itajaí em Santa Catarina em 2008.

Nas fotos, parece que estamos olhando Porto Alegre ou a Mathias Velho e a gente está olhando Itajaí, Pomerode, Blumenau, Brusque. Estamos olhando outras cidades de Santa Catarina mais de 15 anos atrás, com fenômenos idênticos e com a mesma situação. E, pasmem, boa parte dos recursos prometidos não foram entregues no tempo, as casas não foram construídas, as pessoas ficaram em abrigos por mais de cinco anos, que é a grande preocupação nossa.

No caso das frentes emergenciais estamos propondo (a criação de) 30 mil vagas por, no mínimo, seis meses. Um salário mínimo, mais ajuda de cesta básica, para que trabalhadores e trabalhadoras que irão reconstruir o Rio Grande do Sul estejam remunerados e remuneradas para isso.

Isto aí é organizado principalmente pelo MTD, o Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Por Direitos, mas com uma rede de organizações e movimentos sociais que sempre estão nessa linha. Estamos nessa batalha. São aproximadamente R$ 360 milhões, ou seja, não chega nem meio bilhão de reais, sendo que os empresários pediram R$ 100 bilhões. Estamos pleiteando dialogar com os governos federal, estadual e municipais para pormos em prática nossas frentes de trabalho.

Já teve alguma reunião? Já apresentaram a proposta ao governo federal, por exemplo? 

Mauri - Tivemos reuniões em Brasília com o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, e com o secretário de Economia Solidária, Gilberto Carvalho. Mas aí o que aconteceu? Naquele momento, estava se criando o Ministério Extraordinário da Reconstrução e acabou que (o tema) foi remetido para cá. Estamos dialogando com a assessoria do ministro Paulo Pimenta para que isso entre na agenda.

É uma proposta de política pública. Não é uma proposta de governo, porque as emergências vieram para ficar. Estamos vivendo a agenda das emergências desde 2004. Não é uma coisa nova. Mas o Estado brasileiro não se organizou ainda para isso.

É preciso registrar que quem pediu R$ 100 bilhões - vamos deixar claro: não foram R$ 100 milhões, foram R$ 100 bilhões - foi a Fiergs, a Federação das Indústrias do RS. Pediu R$ 100 bilhões ao governo federal.  Apenas para comparar: no momento em que a Fiergs pediu R$ 100 bilhões ao governo federal, o próprio governador Eduardo Leite havia estimado o custo da reconstrução do estado em R$ 20 bilhões, cinco vezes menos do que a pedida da Fiergs. Quanto ao capitalismo de desastre é bom lembrar o que aconteceu em Nova Orleans, nos Estados Unidos, após a passagem do furacão Katrina. Houve isso, a doutrina de choque, a destruição, inclusive, a privatização das escolas públicas.

Lurdes Santin - As frentes emergenciais se tornaram uma lei no Estado, certo? Mas o emergencial demora tanto para o povo, o emergencial demora tanto que está se tornando muitos dramas. Nós que estamos no dia a dia, eu mesmo, neste momento, em um dos espaços em que a gente coordena, muitas vezes cozinho para poder fazer rodízio. Estamos atendendo 700 pessoas que estão tentando voltar para casa.

Elas estão em qual abrigo? Estão em vários abrigos?

Lurdes - Estão em vários abrigos, porque em Eldorado do Sul as pessoas não têm abrigo na cidade. Estão em tudo que é lugar, espalhadas em diversas cidades. Elas tentam retornar e encontram um cenário... Bem, nunca estive numa guerra, mas pelas imagens que a gente vê, você vai passando e segue assim. Eldorado do Sul segue assim, em muitos locais, como Sarandi, como em alguns lugares de Canoas também segue, a gente vai passando e vê que nem os animais que morreram foram recolhidos. É uma dor imensa.

O governo tem que entender que a emergência não pode ser daqui a três meses. Então, o que nós estamos achando? O governo Lula deveria fazer um decreto. Decretar as Frentes Emergenciais de Trabalho e fazer uma relação direta com as entidades da sociedade civil que têm essa capacidade, essa tecnologia social para atuar com o povo. Só assim teremos alguma chance. As frentes emergenciais de trabalho estão em pleno vigor em São Paulo. Parece que São Paulo está sempre na emergência, porque eles estão usando...

Funcionando como? Nas periferias?

Lurdes - O próprio governo, o prefeito de São Paulo, usando as frentes para serviços. Tem que ser um decreto do governo Lula, de imediato, um decreto que coloca parceria diretamente com a sociedade civil organizada, com as entidades...

Que já estão fazendo, não é?

Lurdes - A solidariedade, que é mais do que caridade, é ativa, extremamente importante. Mas nós estamos exaustos. As pessoas estão exaustas. Veio muito voluntariado mas eles precisam tocar a vida. E as pessoas estão... E muita gente perdeu tudo, inclusive o trabalho. Quero falar das diaristas. Elas vão fazer limpeza onde? Se já não existe mais nem casa para isso, não tem transporte, as estradas estão interrompidas.

Temos muitas pessoas que não estão tendo trabalho para sustentar suas vidas. Sem contar a tragédia que são os abrigos, que é permanecer em abrigos. E agora, toda essa necessidade de uma reorganização. E os governos, na minha avaliação, não estão colocando alternativas dignas. As pessoas não são amontoados de coisas para que você coloque numa dita cidade provisória sem o mínimo de condições dignas. Temos que pensar em um trabalho organizado, remunerado.  É dignidade. As pessoas não querem esmolas. O povo precisa ser sujeito. As frentes são uma oportunidade do governo poder fazer algo digno.

É (um valor) irrisório...

Lurdes - É irrisório diante do que a FIERGS...

Agora, isso está sendo encaminhado para o governo federal. Mas poderia ser encaminhado também para o governo estadual ou não?

Lurdes - Poderia. Esse governo... Fala sério. Com esse, eu não sei nem se dá para fazer. Está difícil. Além disso, no estado tem a lei dos Pontos Populares de Trabalho, que nunca foi colocada em prática. É uma lei assinada por esse governo. Assinou no dia 19 de janeiro.

Neste ano?

Lurdes - Não, ele assumiu dia 1º e, no dia 19 de janeiro, sancionou a lei dos Pontos Populares de Trabalho. Que, digamos assim, é uma evolução do que seriam as frentes emergenciais, no sentido da estruturação.

Ou seja, tem uma estrutura legislativa pronta.

Lurdes - Mas não tem vontade... O governo do estado não tem vontade política. Não tem.

E o governo de Porto Alegre?

Lurdes - Existe governo de Porto Alegre? Para o povo, não tem governo de Porto Alegre. Não estou enxergando.

Você falou do (bairro) Sarandi, na zona Norte. É uma situação cruel.

Lurdes - É uma situação que a gente não tem como descrever.

Há lugares em que as pessoas não conseguem entrar. Pela quantidade de entulho que impede a pessoa de abrir a porta da própria casa.

Lurdes - As casas estão na rua, gente. Não é só no Sarandi.

A Vila Farrapos ali também.

Lurdes - A Vila Farrapos. As ilhas. As casas foram totalmente deslocadas do seu espaço e estão no rio, estão embaixo da ponte. Não existe casa para muitas pessoas.

Quem trabalha são as pessoas, são os trabalhadores que reconstroem. Eu nunca vi o capital ganhar tanto. Eldorado do Sul - vou dar um exemplo da minha vida - tem dois mercados. Fui comprar um alho e uma cebola. Estava em R$ 53 o quilo do alho. A agricultura também foi prejudicada e foi muito porque a minha própria horta acabou. Mas não é só isso. Na desgraça, assim como foi na pandemia, os grandes aumentam a sua riqueza enquanto a gente morre.

A rua onde estamos era conhecida por ter muitos cachorros bonitos, que conhecíamos pelo nome. Conhecia o Negão, o Caramelo, vários cachorros. Estou aí há uma semana e não vejo cachorro. Tinha visto vários mortos. E aí apareceu uma cadelinha. A gente deu comida e água e ela se deitou num tapete e dormia que nem a gente em torno, gritando, a cadela acordava. Isto parece uma coisa boba mas não é, gente. No tamanho da destruição e da morte que se teve até os animais desapareceram.

A quantidade de lixo, de sacolas plásticas pendurada nas cercas que sobraram e nas árvores chama a atenção, sabe? O que estamos fazendo com a nossa vida? O que o capitalismo faz com a vida do planeta faz com a nossa vida, sabe? É até difícil de falar.

Não aprendemos nada com o que aconteceu no Vale do Itajaí. Lá, pessoas ficaram até cinco anos em abrigos. Será que vamos repetir isso aqui no estado?

Mauri - Infelizmente, acho que sim. A gente aprendeu muito pouco com as experiências. Não só essa de Itajaí, em 2008, não só essa que eu tive a oportunidade de participar lá em 2008, mas nas outras. Depois, tivemos Brumadinho, Mariana, o Maranhão, antes de Porto Alegre aconteceu no Maranhão. O ano passado aconteceu na Bahia, cidades que foram destruídas.

A questão que a Lourdes coloca, da gente se indagar por que, entendo que é uma tarefa da esquerda. Há muito falamos que a lógica de acumulação do capital mudou. A mais-valia tinha como base a fábrica. E o capital evoluiu para várias frentes. E uma delas é ganhar dinheiro com as políticas públicas.

Não é por nada que eles estão fazendo de tudo para privatizar a saúde e a educação. Quando fui, durante seis anos, do Conselho Nacional de Saúde, representando a Abong (Associação Brasileira Organizações Não Governamentais), ficava abismado porque 50% de todo o dinheiro do SUS que vinha para o Rio Grande do Sul ia para o setor privado. Que atende menos de 20% da população. É dinheiro do SUS que vai para atender a elite.

Quando a gente fala em capitalismo do desastre é um mercado para o capital. Ele descobre. Os arrozeiros tentaram esconder o arroz para especular. O primeiro movimento foi guardar o arroz para ganhar. Então, assim, eu acho que aí não tem muita saída.

Nós, como movimentos sociais, temos que estar preparados para isso. A crise desorganiza o tecido (social) e cria oportunidades.

Diante do que aconteceu, muitos movimentos sociais, as centrais e os sindicatos no dia seguinte já estavam na linha de frente. Como acontece sempre, como aconteceu na pandemia. Cada um fazendo a sua ação de solidariedade.

Uma coisa que é um aprendizado de Santa Catarina, da experiência de 2008, é a importância da Defesa Civil. Olhem só: o nome é Defesa Civil, não é defesa militar. Tem um lado comunitário, articula-se com todas as secretarias, tem os comitês voluntários, uma metodologia, uma dinâmica, tem orçamento. No geral, é uma área com que a gente não se envolve e ela é e cada vez será mais importante. Nós, como campo democrático popular, não temos um projeto para defesa civil em nível nacional.

Quem ocupa esses espaços, geralmente, são os setores oriundos da área militar, ótimos, valorosos, cumprem um papel muito importante de solidariedade. Também tem esse processo de organização comunitária, das várias dimensões da vida. Não é só uma enchente. A vida inteira se desorganiza. Não tem mais escola, não tem mais posto de saúde, não tem mais rua, não tem mais água, não tem mais o mercadinho, não tem mais a creche, você não tem mais nada. E aí, neste ponto de vista, quem vai organizar a vida é aquele que de sempre: o Estado. Não existe sociedade sem Estado.

Não tem saída para se construir uma sociedade necessária para a população gaúcha e brasileira sem se alterar as bases do capital. É ilusão nossa achar que vamos criar uma sociedade de bem-estar dentro do capitalismo. Ainda mais nesse momento do capitalismo. Que é um momento em que o capitalismo não tem nenhum interesse na paz. Não tem nenhum interesse em criar harmonia entre os países. Pelo contrário, o interesse do capital hoje é desorganizar a sociedade. Para aumentar a sua acumulação. Estou dando esse recado para todos os atores sociais, políticos e governamentais do nosso campo. É uma ilusão achar que tem conserto dentro do sistema. E é um risco deixarmos a ruptura do sistema na mão da extrema direita.

 Estes momentos vão se repetir. Temos que usar esse aprendizado não como uma coisa pontual. Temos que usar esse aprendizado como uma visão de mudança de estratégia e de processo. A experiência de Itajaí demonstrou que boa parte do dinheiro não foi para onde tinha que ir. Até hoje tem casas a serem construídas. O tempo da emergência do Estado não é o mesmo nosso. Por isso que nós, como sociedade civil, chegamos primeiro. Porque, quando acontece uma coisa, largas tudo e vais lá. E o burocrata vai entrar para saber como é que está o processo andando...

É importante vincular isso com o Fórum Social Mundial. Desde 2001, quando o FSM se instala em Porto Alegre já vem com essa visão crítica do que a gente chama “esquerda institucionalizada”. Da necessidade de construir uma visão de ruptura democrática. É uma necessidade de se pensar numa lógica de ruptura. E as políticas públicas que a nossa militância deve implantar quando está à frente de um governo tem que apontar a ruptura e não para a manutenção do que está aí.

Então, quando o governo federal escolhe fazer a reconstrução repassando recursos para os municípios na minha opinião, está fazendo uma escolha completamente errada. Está fazendo uma escolha para manter o sistema para botar dinheiro na mão das empresas que foram as mesmas que desmataram e que geraram o caos para ter a enchente. Está alimentando o monstro.

E os governos que aprovaram, os governos que executaram, os legislativos que aprovaram as leis para possibilitar tudo isso.

Mauri - Não tem compromisso nenhum com o equilíbrio ambiental, com a inclusão social, com a superação da fome. É uma ilusão acharmos que vai se construir o novo a partir dessa situação. Não critico porque a gente sabe os limites do governo Lula. É um governo de coalizão com a direita portanto tem muitos limites. Mas não tem sentido ser governo em coalizão se tu não podes, nesses momentos agudos, fazer a disputa de paradigmas. Aí perde o sentido.

E o governo está sentindo na pele também o que é fazer coalizão com a direita.

Mauri - Uma coisa é fazer aliança para implementar a parte do programa possível. Outra coisa é fazer aliança para ser instrumentalizado, certo?

A proposta de frentes de trabalho não é algo inventado por vocês. O presidente Franklin Roosevelt, na época da Grande Depressão dos Estados Unidos, nos anos 1930, movimentou frentes de trabalho que ajudaram a superar aquele momento. É uma coisa de dentro do próprio capitalismo. Mas o governo parece não estar percebendo isso, porque eu lembro que o vosso Eduardo Leite...

Lurdes - Ah, tá bom. 

Uma das primeiras coisas que o Leite disse foi que o Brasil precisaria de um novo Plano Marshall, através do qual os EUA despejaram um monte de dinheiro, visando lucros também, na Europa Ocidental do pós-guerra. Foi uma grande oportunidade de negócio, para reconstruir a Europa. Mas tem antes essa questão do Roosevelt, que mobilizou as frentes do trabalho e ajudou a superar aquele momento difícil. Está caindo de madura essa proposta das frentes de trabalho. Parece uma coisa boa, barata, eficiente, que vai dar trabalho, mobilizar o comércio...

Mauri - Como estávamos falando, é necessária a reconstrução e ela só será feita com trabalho humano. Qual é o nosso risco? Pegar R$ 100 milhões e botar na mão de empresas. Essas empresas vão receber R$ 2 mil por trabalhador/mês, vão pagar R$ 400 ou R$ 500 e embolsar o resto, entendeu? Este é o risco: pegar dinheiro público para gerar mais acumulação do capital. E esse dinheiro não vai aquecer a economia.

O grande mérito do projeto democrático liderado pelo Lula foi o reconhecimento de que tu aqueces a economia aumentando os salários, botando o dinheiro a circular. Não é botando muito dinheiro na mão de meia dúzia. É botando um pouquinho de dinheiro na mão de milhões de pessoas. As frentes de trabalho têm esse sentido. As pessoas vão receber, vão comprar arroz, batata, cenoura e tal e a economia vai voltar a girar.

Porto Alegre é muito amada pelo Fórum Social Mundial, pelo Orçamento Participativo. O que acontece em Porto Alegre impacta. Está todo mundo discutindo o que aconteceu em Porto Alegre e essa ideia de que é uma virada. É dar-se conta de que 2024 é o ano da mudança climática. É o ano em que a sociedade mundial se dá conta que não tem volta. O ponto de não retorno já começou. Não vai começar em 2030. E vai continuar por muitos anos. Se pararmos de poluir hoje, os efeitos do que já poluímos continuarão por 30 anos.

Viveremos situações de emergência todos os anos. É inevitável. Não só no Rio Grande do Sul, como em outros lugares do Brasil. E o Estado brasileiro, e os movimentos sociais brasileiros, sabem que a gente só muda isso superando o capitalismo. Temos que pensar que isso é a nossa agenda.

Se aprovadas as frentes de trabalho, começariam imediatamente? Tem já um plano? 

Lurdes - Não é nem começar. Nós já começamos. As entidades já estão trabalhando. O plano é continuar agora com mais condições. Estou cozinhando para 700 pessoas, tenho um fogão e quatro panelas e assim... 

Onde está a cozinha de vocês? 

Lurdes - Uma delas está na Cidade Verde. Mas temos cozinhas em diversos lugares. Na verdade, não é continuar com um pouco mais de condições. Uma das coisas importantíssimas são os EPIs (equipamentos de proteção individual). Um decreto do governo contrataria emergencialmente as entidades que já atuam. Por quê? Porque elas têm a expertise, a tecnologia social.

Estávamos falando em 30 mil mas queremos que seja uma política pública. Temos muito mais pessoas impactadas. Vamos ter que ver uma normatização, de como se faz. Como é que se contrata? Todas as pessoas que estão impactadas diretamente. As pessoas contratadas, além do salário, poderão ter os EPIs. Temos muita necessidade de limpeza. Tenho uma preocupação muito grande com a saúde das pessoas. Estou atendendo gente que chega lá. Olha, gente, não é barro...

Não, é esgoto. É um troço horrível. 

Lurdes - Só quem está limpando para saber o que é o negócio. Não é barro, gente. Não temos botas, luvas. É a sociedade civil que está ajudando. Não enxergo os prefeitos, sabe, colocando lá bota, luva, máscara. Não tem. Lava jato? As pessoas estão limpando com vassoura, com rodo comum. É um negócio que não tem cabimento.

O estado está deixando as pessoas morrerem, estão adoecendo, tendo leptospirose.

As pessoas estão cansadas, não é? Até quando vão suportar? Uma emergência, geralmente, se esgota em alguns dias. A pessoa pode ser voluntária por alguns dias mas não pela vida toda. 

Lurdes - Uma empresa muito grande, de comida, estava distribuindo muitas marmitas. Em um dos nossos espaços entregava 200 por dia. Aí recebi um whats dizendo “Olha, estamos nos retirando. Só vamos entregar até segunda. Já cumprimos nossa missão aqui”. Caramba! Na fila a gente tinha umas 300 pessoas nos sábados e domingos. Até quando vamos precisar fazer comida? Um mês, dois meses, três meses?

A gente espera que, através das frentes, através das entidades, possamos ter um respiro. Com as pessoas recebendo um valor. Como é que vamos nos reconectar para viver daqui para a frente? As pessoas estão chegando esgotadas. Nós também vamos ficando esgotados. Saí de casa no dia 2 de maio e não consegui mais voltar. Não havia mais os acessos para a minha casa. 

Moras em um assentamento, não é?

Lurdes - Sim, saí para o socorro em Eldorado do Sul. Pensei em resgatar uma amiga que estava do outro lado do viaduto que caiu. Não consegui retornar. Acabei vindo para Porto Alegre e a ponte trancou. Fui para Canoas que o caos já estava iniciando lá, o dique ia estourar e estourou à noite. Fui para a cozinha lá. E até hoje. Me levanto às cinco e meia da manhã, organizo mais ou menos as crianças e vou e volto às nove, dez da noite, a hora que der. Mas não sou (só) eu! Tem quanta gente fazendo esse trabalho? Os que vieram estão se retirando, as pessoas que estavam ajudando vão retomando a vida.

As frentes de trabalho seriam um fôlego para as pessoas terem um recurso, mas também para terem um espaço para reorganizar a vida.  È mais do que só distribuir um pouco de dinheiro. É uma possibilidade das pessoas se reconectarem consigo próprias, com um coletivo. A solução não é individual. Se não pensarmos coletivamente não vamos dar conta. Porque esse sistema, ele coloca assim: se tu és bem sucedido, é porque tu és o cara. Agora, se tu não destes certo na vida, é porque tu és burro. Essa culpabilização individual é própria para deixar as pessoas escravas desse jeito de viver que destrói.

Temos que pensar a vida. Não existe normal. Eu não quero pensar “Ah, nós temos que voltar ao normal”. Mas que normal? Não. Tem que tirar essa palavra. Não existe voltar ao normal. Porque isso que está dito como normal, não é normal. É anormal. É algo que destrói. Temos que pensar em outro jeito de viver. A pessoa não tem casa para voltar. Ou está morando mal Ou não tem alimentação. As crianças fora da escola. É um caos. As crianças deviam ter oportunidade de estar em espaços de sociabilização. A escola é mais do que ir lá aprender o ABC. É a   oportunidade também de ter um lanche, de ter uma vida sociável.

Para muitas crianças a válvula de escape é a escola. E as frentes também são para isso. Para pequenos reparos, para limpeza, para organização, para cuidar das crianças, para brincar com as crianças. As frentes de trabalho são a possibilidade de pensar a vida.

Este é um recorte da entrevista de Mauri e Lurdes veiculada no podcast De Fato. Também participou Dão Real Pereira dos Santos. Abaixo, assista à edição na íntegra:


 

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira