Luta que segue

CCJ suspende votação do Marco Temporal e povos indígenas pedem mais participação no debate

Senadores marcaram apreciação do tema para outubro; Apib quer garantias de que comunidades sejam ouvidas até lá

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
PE foi apresentada no Senado mesmo depois de tese ser considerada inconstitucional pelo STF - Câmara dos Deputados

A votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabelece o Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas foi suspensa na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Marcada para essa quarta-feira (10), a discussão deve ser retomada para deliberação somente em outubro.

Segundo a PEC, o processo de demarcação só poderá acontecer em territórios que já estavam ocupados por indígenas em outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. O texto é visto como uma ameaça potencial a áreas já homologadas e aos direitos fundamentais das comunidades que já habitavam o Brasil antes da invasão portuguesa.

A decisão da CCJ ocorreu pouco mais de uma semana depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) marcar a primeira reunião de uma comissão de conciliação para tratar do assunto. O encontro está agendado para o dia 5 de agosto. Nesse período, representantes dos povos indígenas reforçaram o movimento para que o assunto fosse retirado de pauta no Senado.

Em abril, o ministro Gilmar Mendes determinou a suspensão dos processos judiciais que discutem a constitucionalidade da Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023) até que o Tribunal se manifeste definitivamente sobre o tema.

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Dinamam Tuxá, advogado e coordenador executivo da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), afirmou que, durante a audiência desta quarta-feira (10) a presença de representantes das comunidades foi limitada na Comissão de Constituição e Justiça. A APIB pede que o tema seja discutido em pelo menos uma audiência pública antes da votação.

"Conseguimos apoio de alguns senadores para propor pelo menos mais uma audiência pública para tratar sobre o tema. Para que haja um amplo debate e que nós consigamos dar oportunidade para os povos indígenas se manifestarem. Além do acesso limitado a essa discussão, nós não temos o direito de fala", alertou ele.

A liderança afirmou ainda que em nenhum momento houve um debate qualificado sobre o tema, que envolvesse as comunidades indígenas. "Nós sabemos que existem vários preceitos, inclusive, internacionais, que resguardam o direito de serem consultados aos povos indígenas. Mas, infelizmente, o rito, até esse exato momento, exclui a participação dos povos indígenas e tenta atropelar o debate."

Que PEC é essa?

A Proposta de Emenda à Constituição foi apresentada em setembro do ano passado pelo senador Dr. Hiran (PP-RR), conhecido por defender atividades de garimpo em terras indígenas. Ele protocolou a PEC um dia depois de o STF declarar a tese do Marco Temporal inconstitucional.

Além de Hiran, outros 26 senadores assinaram a PEC, todos ligados ao campo da direita e a maioria com ligações com o agronegócio e a mineração. Entre eles estão Hamilton Mourão (Republicanos-RS), Marcos do Val (Podemos-ES), Sergio Moro (União-PR), Tereza Cristina (PP-MS), Marcos Pontes (PL-SP), Damares Alves (Republicanos-DF) e Flávio Bolsonaro (PL-RJ).

A PEC foi uma segunda ofensiva do Congresso Nacional para instituir o Marco Temporal. Quando ela foi apresentada, o parlamento já discutia um Projeto de Lei (PL) que tratava exatamente do mesmo tema. O PL foi aprovado mesmo com a definição de inconstitucionalidade.

O que está em jogo?

A Constituição brasileira reconhece textualmente o direito originário dos indígenas sobre terras tradicionalmente ocupadas, sem mencionar nenhum critério de tempo para demarcações. Para mudar esse cenário - corroborado pelo STF - é necessário mudar o texto constitucional, algo que só é possível com a aprovação de uma PEC. 

Na prática, a criação de um marco temporal coloca em xeque as demarcações de terra e traz insegurança inclusive para povos que já tiveram suas áreas tradicionais formalmente reconhecidas.

Dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) mostram que há, no país, 137 áreas em situação de estudo, fase inicial dos processos administrativos de demarcação. O número total registrado pela autarquia de territórios que estão em alguma fase desse processo ou que já têm seus terrenos devidamente regularizados é de 761.

De acordo com a Apib, o número de terras que podem ser impactadas pela aprovação da tese do marco temporal é de mais de 1,3 mil. Isso porque a entidade contabiliza também as áreas que ainda não entraram na lista oficial da Funai por não terem iniciado o processo administrativo de demarcação.

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Em setembro do ano passado, o STF concluiu a apreciação do marco temporal e fixou, entre outras teses, que “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”.

Porém, antes de a decisão do STF ser publicada, o Congresso Nacional editou a Lei 14.701/2023 e restabeleceu o marco temporal para incidir somente sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros e por eles habitadas em 5/10/1988, salvo as hipóteses de persistente conflito devidamente comprovado.

A lei teve diversos de seus dispositivos vetados pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, mas o veto foi derrubado pelo Congresso Nacional, com promulgação das partes vetadas. Diante desse cenário, diversos partidos políticos e entidades de defesa dos direitos dos povos indígenas acionaram o Supremo. 

Edição: Nathallia Fonseca