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Feminicídio Zero: ação do Ministério das Mulheres quer mobilizar de times de futebol a pastoras evangélicas

Ação integra 'Agosto Lilás', mês de enfrentamento à violência de gênero; Cida Gonçalves detalhou roteiro nesta sexta (2)

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, durante café com jornalistas mulheres nesta sexta (2), em Brasília (DF) - Cristiane Sampaio/Brasil de Fato

O Ministério das Mulheres lançou, neste mês de agosto, o movimento "Feminicídio Zero", uma ampla articulação nacional que busca combater os assassinatos de mulheres através de diversas ações de enfrentamento à cultura da violência. Em um café com jornalistas mulheres, a ministra Cida Gonçalves disse, nesta sexta (2), que, em um primeiro momento, a pasta irá investir em um trabalho de massa para difundir o tema por meio de ações de comunicação digital, palestras e capacitações dirigidas a diferentes profissionais sobre a importância de se enfrentar a misoginia, entre outras coisas. A partir de setembro, a ideia é buscar também ações mais localizadas, como projetos conjuntos com times de futebol e uma maior aproximação com pastoras evangélicas.

O movimento vem à tona em meio a uma escalada nos números de feminicídios no país. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostram que houve aumento de 0,8% em 2023 em relação ao ano anterior. Ao todo, 1.467 mulheres perderam a vida no ano passado por razões ligadas ao gênero. É o maior registro desde 2015, quando o problema começou a ser computado em decorrência da sanção da Lei 13.104/15, conhecida como Lei do Feminicídio. Os dados mais recentes do FBSP foram divulgados em julho.

"O Agosto Lilás começou ontem e, para nós, já chega com os desafios do Fórum Brasileiro de Segurança Pública", disse Cida Gonçalves. A mandatária afirmou que o governo pretende transformar a mobilização sobre o tema em uma pauta de adesão nacional, sensibilizando não só pessoas e famílias, mas também empresas, organizações e demais instituições e atores ligados ao ecossistema da violência, já que a problemática alcança os diversos compartimentos da vida social.

"Precisamos de mobilização nacional pra enfrentar o feminicídio, e trabalhando o feminicídio a partir [da ideia] de que ele é o último ato de violência contra as mulheres em vida porque, depois da morte, também aparecem outros problemas – como se noticia o fato, [as respostas do] Judiciário, etc. Nessa perspectiva, nós trabalhando com o conceito de que precisamos fazer com o Feminicídio Zero o que o [sociólogo] Betinho fez na década de 1990 com o Fome Zero."

A ministra já iniciou, em julho, um diálogo com dirigentes de times de futebol, entre eles Corinthians, Vasco e Botafogo, para tentar formatar projetos conjuntos voltados ao tema. A ideia é que as tratativas avancem no próximo mês para a consolidação de algumas ações ainda em fase de discussão inicial. Cida Gonçalves destacou a preocupação com o aumento de casos de violência contra a mulher em dias de jogos de futebol. O problema foi constatado estaticamente em levantamento feito pelo FBSP em conjunto com o Instituto Avon em 2022: o registro de Boletins de Ocorrência (B.O.) salta 23,7% quando o assunto é ameaça contra mulheres, por exemplo, e 25,9% quando se trata de casos de lesão corporal.

Também está no roteiro do Ministério das Mulheres uma aproximação com pastoras evangélicas do campo mais conservador – Cida Gonçalves já iniciou, na quinta (1º), o diálogo com lideranças do segmento que têm linha de atuação mais progressista. "E estamos trabalhando também com os homens. Precisamos que homens digam pra outros homens que não dá mais. Então, estamos chamando uma grande mobilização nacional. Não é só uma campanha. Vai ter também a campanha televisiva, mas estamos mobilizando as empresas, o esporte. Falei com diversos presidentes de times, falamos com a Confederação Brasileira de Futebol, com movimentos sociais, e ontem falamos com várias pastoras evangélicas pra que a gente possa de fato dar um basta na questão da violência neste país."

Orçamento

A ministra também foi instada a comentar o que pretende fazer diante do contingenciamento feito recentemente pelo governo nas verbas do Ministério das Mulheres, que foi o mais atingido pelo corte em toda a Esplanada. A tesoura fez com que a pasta perdesse 17,5% do orçamento previsto para este ano. Cida Gonçalves ressaltou que o recurso "vai ser descontingenciado aos poucos" e que a pasta ainda não decidiu onde exatamente vai cortar. Ela pontuou, no entanto, que tende a reduzir gastos de ordem administrativa do ministério, e não verbas dirigidas a ações da atividade-fim. "Foi de fato o maior corte que teve, 17%, e sempre é o maior porque temos o menor recurso. É um desafio que a gente tem que enfrentar."

Rede de apoio

Cida Gonçalves também mencionou que o governo pretende entregar 40 Casas da Mulher Brasileira, unidades de atendimento que estão ligadas à rede de apoio a mulheres vítimas de violência. Atualmente, existem sete unidades federais operando no Brasil, além de duas de gestão estadual no Maranhão e seis do mesmo tipo no Ceará, terra natal da farmacêutica Maria da Penha, que dá nome à Lei 11.340/2006.


Brasil tem apenas sete unidades federais da Casa da Mulher Brasileira / Leo Rizzo/SPM

"Nós já estamos com nove em construção. Temos três ou quatro em que a gente repassou o recurso pro estado executar [o projeto de construção], que foram as de Dourados (MS), Corumbá (MS) e Marabá (PA), e agora está vindo um outro recurso pra gente executar mais 17. Na hora em que terminarmos de executar essas 17, a gente vai pras outras. E a proposta é, sim, entregar as 40 Casas da Mulher Brasileira até 2026", disse Cida Gonçalves.

Olhando para fora do Poder Executivo federal, a mandatária destacou ainda que tem como meta até 2026 o alcance de um patamar de 2 mil secretarias municipais de mulheres distribuídas pelo país. Segundo o ministério, atualmente existem menos de 700. O Brasil tem um total de 5.568 municípios. "Ter mais secretarias significa ter mais mulheres nos espaços de poder", disse Cida, ao pontuar ainda que atingir a meta traçada seria uma forma de fazer com que as políticas públicas sobre equidade de gênero tivessem maior capilaridade no território nacional.

Congresso

O tema do aborto legal foi outro assunto que entrou na pauta desta sexta. A ministra demonstrou preocupação com o Projeto de Lei (PL) 1904/2024, que gerou grande polêmica nos últimos meses por equiparar a pena para a interrupção da gestação depois de 22 semanas à pena imposta a homicidas, que é de 20 anos. A proposta, que prevê essa responsabilização inclusive para vítimas de estupro, chegou a ter a urgência aprovada na Câmara dos Deputados.


Deputadas de esquerda durante protesto no Conselho de Ética / Lula Marques/ Agência Brasil

"Eu não sei se esse projeto volta. Acho que eles sofreram – não pelo governo, mas pelo movimento de mulheres – uma derrota muito grande. Mas acho que isso vai ser uma polêmica inclusive no processo eleitoral. A frase que o movimento usou de que 'criança não é mãe e estuprador não é pai' dividiu inclusive os evangélicos, segundo os dados. Isso tem um efeito sobre o Congresso porque eles são conservadores, mas não são burros. As questões polêmicas eu tenho tentado evitar. Tenho tentado trabalhar de uma outra forma, mas também não tenho problema [em falar]. Na questão do PL 1904, eu pedi várias vezes pra conversar com o Lira e ele não me atendeu, aí depois me liga pra dizer 'eu estou apanhando muito das mulheres'. Eu falei 'bem feito, vou fazer o quê?'", contou Cida Gonçalves.

Declarações machistas

Na conversa com as jornalistas, a ministra também comentou outros assuntos correlatos ao guarda-chuva administrativo da pasta. Ao falar sobre a importância de se combater a cultura da violência contra as mulheres, ela foi questionada, por exemplo, sobre declarações do presidente Lula (PT). No mês passado, durante uma reunião no Palácio do Planalto, o petista tentou fazer uma piada ao comentar o fato de a violência contra as mulheres aumentar em dias de jogos de futebol. "Se o cara é corintiano, como eu, tudo bem, mas eu não fico nervoso quando perco. Eu lamento profundamente", afirmou, em uma declaração que recebeu críticas em diversas frentes. Cida Gonçalves lamentou o episódio.


Machismo estrutural é visto como fator de influência contra relutância de muitas mulheres em seguirem carreira política a / Jefferson Rudy/Agência Senado 

"O que eu vejo? Que as pessoas – e eu quero incluir aqui todos nós, inclusive o presidente da República –, quando um tema incomoda muito, decidem fazer uma piadinha porque acham que, com isso, melhoram as coisas, diminuem o impacto da notícia que se está dando. E eu tenho dito que piadinha, nem do presidente da República. Não dá pra aceitar piadinha de nada nem de ninguém. Eu vou falar [isso] pra ele quando encontrar com ele. Acho que Janja já falou, muitas outras mulheres já devem ter falado. É por isso que nós precisamos fazer uma mudança de comportamento e de cultura."

Ainda dentro do tema de declarações de teor machista, a ministra lamentou os ataques sofridos nos últimos dias nas redes sociais pela boxeadora argelina Imane Khelif, que disputa os Jogos Olímpicos de Paris. As manifestações partiram de internautas de perfil reacionário e vieram acompanhadas de uma onda de desinformação. A atleta sofreu ataques transfóbicos quando, na verdade, ela pertence ao segmento das pessoas intersexo, aquelas que desenvolvem características biológicas não necessariamente relacionadas às ideias de sexo masculino ou feminino.

"Acho discriminador, violento e agressivo", disse a ministra, que relata ser constantemente interpelada por internautas pedindo que a mandatária se manifeste publicamente sobre qual seria o conceito de mulher. Cida Gonçalves afirmou que evita entrar nesse tipo de debate, típico do ambiente político de guerra cultural. "O debate do Ministério das Mulheres não é o que é ser mulher. É quais são as políticas que vamos implementar pras mulheres. É outra discussão", encerrou.

Edição: Nicolau Soares