Em pouco mais de cem dias do início do mandato presidencial do empresário Mauricio Macri, a Argentina vive uma verdadeira mudança, tal como indicava o partido, Cambiemos – que na tradução para o português, significa “mudemos” –, que o levou a ganhar as eleições em 2015. Quase 100 mil demissões no setor público e privado, aumento no preço da cesta básica e dos serviços, retração dos salários e aumento da repressão aos protestos são algumas das medidas que indicam uma tendência à liberalização da economia.
Essa é a análise do economista e professor universitário argentino, Julio Gambina, presidente da Fundação de Investigações Sociais e Políticas do país sul-americano. Ele também comenta a aprovação, pelo Congresso Nacional argentino, no último dia 31, de uma lei que garante o pagamento da dívida com um grupo de credores, conhecido como "fundos abutres, que reivindica, em Nova York, o pagamento de títulos em moratória.
Na quarta-feira (6), a Argentina fechou novos acordos no valor de cerca de US$ 12,5 bilhões com os "fundos abutres", de acordo com comunicado do mediador judicial Daniel Pollack. O caso está sendo conduzido pela Justiça dos Estados Unidos. Ele se refere ao pagamento de credores que possuem títulos da dívida argentina em moratória desde o final de 2001 e que não aceitaram as reestruturações de 2005 e 2010.
Com grande trajetória nas discussões em torno da dívida externa, Gambina participou dos últimos debates parlamentares sobre o tema e afirmou que o pagamento aos “fundos abutres” aprofunda a perda de soberania da Argentina, e indica o curso que poderão tomar outras economias da região.
“Há uma forte ofensiva do capital transnacional para reverter a situação de mudança política que há na região. O governo de Macri, na Argentina, é o exemplo a imitar, o exemplo a induzir para o conjunto dos países América do Sul”, afirma.
Brasil de Fato – O que são os “fundos abutres”?
Julio Gambina - Para compreender o que são os “fundos abutres”, temos que pensar o momento atual da econômica capitalista mundial. Quando falo atual, não me refiro a 2016, mas a um ciclo histórico dos últimos 40 anos, no qual a tendência mundial da ordem capitalista é aprofundar e potencializar os negócios especulativos. Inclusive, temos uma divulgação de papéis do Wikileaks em que aparecem denúncias de paraísos fiscais [o que ficou conhecido como Panamá Papers]. Falo de um ciclo dos últimos 40 anos, porque a America Latina, a Ásia, a África e, agora, os países capitalistas desenvolvidos – da Europa e os Estados Unidos –, vêm desenvolvendo com muita força o endividamento público.
O problema atual dos “fundos abutres” está associado a um fenômeno estrutural de desenvolvimento da especulação financeira, realizado deliberadamente por organismos financeiros internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial; ou seja, pelos bancos que dominam o sistema financeiro mundial.
Nesse contexto, temos que pensar num forte endividamento público da Argentina, que entra em crise no ano de 2001, quando o país declara a suspensão de pagamentos, o default. A dívida pública argentina deste ano era de aproximadamente US$ 141 bilhões, e o default foi parcial sobre os detentores particulares desses títulos. Grande parte desses detentores de títulos eram argentinos – praticamente a metade – e grande parte disso estava em mão dos fundos de previsão, que eram investimentos dos trabalhadores argentinos, que tem a ver com os benefícios de aposentadorias. A suspensão dos pagamentos prejudicou credores internacionais e credores na Argentina.
No ano de 2005 e de 2010 [durante as presidências de Néstor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner], o governo argentino fez uma proposta de troca de títulos que não haviam sido pagos por uma nova dívida. Isso permitiu que praticamente 93% dos credores trocassem seus títulos. Esse 7% que não ingressou na troca da dívida, processou a Argentina nos Estados Unidos. E aí, chega-se ao fato que uma parte desses credores não são os que originalmente tinham pego os títulos, mas fundos especulativos.
Esses grandes investidores especulativos são os “fundos abutres”. Eles compraram os títulos num preço muito baixo, 30%, 20% de seu valor, porque a Argentina estava com os pagamentos suspensos. Ou seja, compraram títulos de dívida que eram “lixo”, títulos que não valiam praticamente nada, e, , nos últimos anos, com a cumplicidade da Justiça dos Estados Unidos, iniciaram um processo pelo qual pretendem cobrar o 100% do valor.
Chamam-se “fundos abutres”, justamente por isso, pois atuam como uma carniça internacional sobre títulos de baixo valor. Isso vem acontecendo desde a sentença do juiz estadunidense Thomas P. Griesa, em 2012, até hoje. O governo argentino anterior atrasou essa situação, e o atual governo de Macri apresentou a necessidade de pagar aos “fundos abutres”.
O que explica que o governo de Macri tenha tomado essa atitude?
A situação econômica da Argentina não é boa e, em certo sentido e com algumas diferenças, pode se comparar com a situação brasileira. O Brasil está em um processo de recessão muito profundo. A Argentina faz três anos que está em desaceleração econômica, com perspectiva recessiva, e, no diagnóstico do atual governo argentino, para fazer funcionar o capitalismo no país, faz falta investidores. Não há investidores locais, privados, com condições de dinamizar a economia; não há recursos públicos excedentes pra dinamizar os investimentos na Argentina; e o diagnóstico do governo é que faz falto o ingresso de capitais externos, seja como investimento externo direto ou como capital de empréstimo.
Para que ingresse capital de risco, como investimento direto, ou para que ingresse capital de empréstimos à Argentina, é necessário sair da suspensão de pagamentos de 2001, e o que é preciso para sair desta situação é pagar esse 7% que não ingressou na troca de dívida de 2005 e 2010, aos “fundos abutres”. Para isso, o que tem se apresentado é uma modificação legislativa, eliminando a “Lei fechadura” [Ley cerrojo, em espanhol] e a “Lei de Pagamento Soberano”, que estão associadas às trocas de dívida de 2005 e 2010. Com essa derrogação, autorizar a partir do Parlamento ao Poder Executivo o pagamento da dívida.
A hipótese é que se a Argentina sai da suspensão dos pagamentos, então o país se abre para receber investimentos externos ou empréstimos do exterior. É uma hipótese difícil de provar êxito, devido às condições de funcionamento da economia mundial. Os Estados Unidos não terminaram de superar a crise econômica que começou em 2007-2008; a Europa está em um processo de recessão importante; a China tem iniciado uma desaceleração, já não cresce ao 10% acumulativo anual, mas em uma média de 6% a 7 %, e a previsão até 2020 é entre 4% e 5%.
Que impactos pode ter essa nova dívida para a população argentina?
O tema é a prioridade da política pública na Argentina atual. Priorizar o pagamento aos “fundos abutres” é privilegiar esta inserção internacional subordinada da Argentina no lugar de outras demandas, como satisfazer a demanda de saúde, educação, promoção do emprego, porque tudo isso se faz num marco de generalização das demissões em órgãos públicos e privados. Estima-se que nos últimos três meses foram mais de 100 mil trabalhadores demitidos. Há uma quantidade de trabalhadores que estão tendo suas atividades de trabalho suspensas [conhecido como lay off] pela tendência regressiva da economia argentina.
Por isso, o impacto será muito negativo para a maioria da população argentina, porque se evidência um claro privilégio da economia especulativa sobre qualquer política social, para os trabalhadores, os setores pequenos e médios da economia. Há um privilégio em direção à inserção internacional subordinada sobre qualquer desenvolvimento do mercado interno e de satisfazer as necessidade da maioria da população.
Como repercutiu esta medida no empresariado nacional e no setor do agronegócio argentino?
Apoio. O que tem é apoio, porque tem se gerado um sentido comum de que a Argentina tinha que acabar com essa história. O sentido comum é que a Argentina tem que pagar. Por isso muitos de nós que intervimos no debate parlamentar falamos que as dívidas se pagam, mas as trapaças não. A opinião que tem se gerado a partir dos meios de comunicação massivos é que não tínhamos mais opção que não a de pagar. Gerou-se um sentido comum em pagar. Inclusive teve parlamentares, alguns da banca majoritária conformada pelo bloco kirchnerista, que votaram favoravelmente, dizendo que o faziam “com dor”, que lamentavam ter que votar por esta situação, favorecer este novo endividamento da Argentina; mas que não tinham mais remédio, pois não pagar significaria isolar a Argentina do sistema financeiro mundial.
Muitos de nós, os que temos manifestado a crítica a essa situação, temos sinalizado que o que a Argentina tinha que fazer seria aprofundar uma investigação da dívida pra determinar a legalidade ou ilegalidade da mesma, acabar com a prorrogação da jurisdição [que permite a justiças estrangeiras ter incidência em processos locais] e, enquanto se faz a investigação da dívida, suspender os pagamentos, porque isso não é uma trapaça de agora, mas que já tem 40 anos de história. Claro que isso supõe todo um debate político, faz falta uma consciência social hegemônica que se pronuncie por uma confrontação séria, não só com os “fundos abutres”, senão também com a economia especulativa.
Edição: Vivian Fernandes
Edição: Vivian Fernandes