As tentativas de deposição de Dilma Rousseff não são algo inédito na história do país. Presidentes como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart enfrentaram dificuldades para levar adiante seus mandatos, democraticamente conferidos por voto popular. Por que é tão difícil garantir a continuidade do processo democrático? Além do mais, após décadas de construção de instituições democráticas e de incorporação de novos atores, por que o apelo a soluções ditatoriais ressurge com força, exercendo influência sobre parcela expressiva da população?
Para refletir sobre esses e outros temas, o Brasil de Fato conversou com a historiadora Heloísa Murgel Starling, estudiosa do período republicano no Brasil e coordenadora do Projeto República, da Universidade Federal de Minas Gerais. Ela, junto à professora da Universidade de São Paulo e também historiadora, Lilia Schwarcz, são as autoras do livro Brasil: uma biografia (Companhia das Letras, 2015).
Dilma é uma presidenta democraticamente eleita que, desde o início de seu segundo mandato, tem sofrido ameaças de deposição iminente. Isto não é inédito na história do Brasil. Você poderia comentar outras situações semelhantes?
É raro na nossa história republicana um presidente passar o cargo e o sucessor completar o mandato. Vargas, em seu segundo governo [1951 a 1954], não completa, ele se mata. Dutra e Juscelino completam, Jânio renuncia e Jango é deposto por um golpe. Depois da ditadura militar, o presidente Tancredo não chegou a tomar posse e, após Sarney, Collor saiu. Depois desse período, houve uma regularidade: Itamar, Fernando Henrique e Lula completaram o mandato e o entregaram aos seus sucessores democraticamente eleitos. Então, o período recente tem mostrado a vitalidade do processo de sucessão, mas essa sucessão regular não foi uma constante na história do Brasil.
Juscelino, embora não tenha sido deposto, chegou a enfrentar problemas para assumir...
Primeiro, houve uma tentativa de golpe, que consistia em impedir que JK tomasse posse. Foi protagonizada por militares e pela União Democrática Nacional (UDN), partido conservador de oposição. Ocorreu uma conspiração, impedida pelo ministro do Exército, Marechal Lott, que pôs os tanques na rua e garantiu a posse do novo presidente. Esse episódio teve a ver com o período anterior e toda a instabilidade criada no fim do último governo Vargas.
Nos anos anteriores, havia uma campanha muito feroz para depor Vargas, liderada pela UDN. Tentou-se, inclusive, o impeachment, mas a proposta foi derrotada no Congresso. Então, começou, numa ponta, o que talvez tenha sido a ofensiva mais violenta já feita pela imprensa contra o presidente. Na outra ponta, havia uma movimentação muito intensa das Forças Armadas, principalmente na Aeronáutica. Oficiais atuavam como guarda-costas do deputado udenista Carlos Lacerda, um dos líderes da oposição. Lacerda sofre um atentado e, nessa ocasião, morre um oficial, o que serve de estopim para que a Aeronáutica crie um inquérito paralelo contra Vargas. Eles chegaram muito perto, ao apontarem que a guarda do presidente teria organizado o atentado contra Lacerda. Isso dá um protagonismo muito grande à Aeronáutica. Vargas, então, se suicida.
A historiografia fala muito da comoção geral com a morte dele, mas havia mais do que isso. A população saiu às ruas em motins nas grandes capitais. Em alguns momentos, inclusive, jornais foram atacados, o jornal O Globo foi cercado. Há uma cena impressionante, que é pouco contada na historiografia. Um cortejo enorme, com muitas pessoas, leva o corpo de Vargas ao aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. O caixão embarca no avião para São Borja, no Rio Grande do Sul. Quando o avião decola, a multidão olha para o lado e vê o quartel da Aeronáutica, que era a grande protagonista da oposição. A multidão avança em direção ao quartel, ao que a Aeronáutica responde atirando na população desarmada, que recua. Algumas pessoas morrem, há feridos e muitos vão ocupar o centro do Rio de Janeiro, como tantos outros ocupam outras capitais, como Belo Horizonte e Porto Alegre, em defesa da democracia. Quem conta esse episódio é um grande historiador chamado Jorge Ferreira, no texto “O carnaval da tristeza: os motins urbanos do 24 de agosto” [disponível no link: migre.me/tqLDk]. Eu diria que, com sua morte, Vargas parou o golpe, mas quem garantiu a democracia foi o povo na rua.
Nesse cenário, a UDN é forçada a aceitar as eleições. Eles passam a procurar um candidato de consenso. Porém, os dois partidos que sustentavam o projeto de Vargas, PSD e PTB, lançam uma chapa com Juscelino e Jango, que ganha as eleições. A UDN não aceita, dizendo que a chapa não ganhou por maioria absoluta [pelo menos metade mais um dos votantes]. Ora, a Constituição não dizia que era preciso ter maioria absoluta, dizia apenas que era preciso ter mais votos e não havia segundo turno. Então, a oposição tenta uma revolta em 1959, que é a Revolta de Aragarças. Oficiais da Aeronáutica entram na base do Galeão, roubam aviões e tentam estabelecer uma base guerrilheira no Brasil Central para criar comoção, ter apoio do restante das forças armadas e impedir a posse. Juscelino assumiu nesse clima de muita instabilidade.
Que atores sociais estavam vinculados às tentativas de golpe nesses contextos que você narrou? Podemos traçar paralelos entre esses atores e os que estão envolvidos na tentativa de deposição de Dilma?
Não há uma repetição da história, mas há similitudes. No final do último governo Vargas, havia uma campanha muito violenta de órgãos da imprensa contra o presidente, capitaneada pelo jornal Tribuna da Imprensa, um veículo que não dava nenhuma notícia com o mínimo de isenção e que não se importava com o fato de uma acusação ser verdadeira ou falsa. O importante era emparedar a Presidência da República. Nesse jornal estava Carlos Lacerda.
Havia o projeto nacional-desenvolvimentista de Vargas, que tentava criar as bases para uma maior autonomia do desenvolvimento industrial, frente às empresas internacionais, principalmente dos Estados Unidos. Obviamente, esse projeto colidia com os interesses de setores empresariais associados ao capital multinacional. Por fim, havia um protagonismo dos militares, o que não vemos hoje.
Também é preciso lembrar que, naquele momento, a sociedade brasileira não tinha a mesma preocupação que hoje nós temos com a democracia. Veja a esquerda, por exemplo. A democracia era muito mais um meio para chegar ao Socialismo do que um fim em si mesmo. A ideia da democracia como finalidade é uma construção posterior à ditadura militar. Só a partir daí, a sociedade brasileira começa a entender que a construção democrática é um processo sem fim e que ela própria é um fim em si mesmo, e não apenas um modo de se chegar a outro lugar. Hoje, por exemplo, o Brasil não tolera mais declarações como a do Carlos Lacerda, que chegou a dizer publicamente que, se o candidato adversário ganhasse, não poderia tomar posse. Quer dizer que o cara vai para a imprensa e prega o golpe de Estado? Naquele contexto, isso era aceito de uma maneira que nós não aceitaríamos hoje.
Então, os sucessivos ataques à democracia contribuíram para que a esquerda colocasse a questão democrática em seu horizonte?
Sem dúvidas. Nos anos 70, houve uma guinada, com a esquerda pressionando os militares. Quando os militares pensaram o “final” da ditadura, a partir de Geisel, eles não pretendiam promover uma transição democrática. Pensaram a passagem da ditadura militar para uma ditadura comandada por civis. Isto, inclusive, foi dito de diversas maneiras. A partir do assassinato de Alexandre Vanucchi, em 1973, a vitória do MDB, em 1974, e o assassinato de Vladimir Herzog, em 1975, o campo das esquerdas se reorganizou, colocando em cena a luta pela transição democrática, tendo em seu centro a democracia como um valor final. A partir desse momento, tem havido muitos avanços e recuos, mas a democracia nunca mais saiu do centro da discussão das esquerdas. Isso significou, em primeiro lugar, a consolidação da cultura democrática no país. Pensemos no catálogo dos direitos. Nos últimos 30 anos, tivemos um avanço relevante na luta pelos direitos das mulheres, dos direitos dos LGBT’s, dos negros, etc. Além disso, os últimos governos produziram uma grande inclusão, o que modificou a qualidade da nossa democracia. Muitos direitos foram estendidos a grupos cada vez maiores da população. Outro avanço foi a criação de mecanismos de combate à corrupção e de condições para que esses mecanismos sejam aprimorados.
Após esses avanços, por que chegamos à situação política atual, com o crescimento de forças conservadoras, a emergência de grupos extremistas de direita e um crescente apelo a soluções antidemocráticas, com influência sobre parcelas expressivas da população?
Primeiramente, porque a democracia é o espaço onde as divergências vão aparecer. Assim como nós, da esquerda, os grupos conservadores também vão exercer a liberdade de manifestar as ideias com as quais não concordamos. Por isso, a democracia é tão difícil. Por outro lado, é preciso pensar sobre como consolidaremos uma cultura democrática no país. Isso leva tempo. Se para algumas pessoas essa cultura é evidente, para outras nem tanto. Há um processo em jogo.
Nem todas as pessoas que se manifestaram contra o governo Dilma são de direita ou estão propondo soluções autoritárias, da mesma forma que, quando nós da esquerda vamos para a rua, não significa que estejamos a favor da corrupção, como algumas pessoas alegam. O que talvez seja similar àquilo que aconteceu em 1964 é que o debate público tem sido substituído pela intolerância, que é o momento que antecede o ódio que, por sua vez, produz a violência e põe fim à política.
O fato de termos tantos grupos se manifestando contra o governo indica algumas coisas. Por exemplo, que esse governo é ruim porque não conversa com a sociedade. Não há debate. Nós da esquerda também não estamos conseguindo debater. Um ensinamento de 2013 foi que aquelas manifestações tinham um enorme bom humor, além de uma série de reivindicações com relação a transporte, saúde, educação, etc. Naquele momento, havia um nítido buraco entre o governo e a sociedade. Não foram criados canais que permitissem transformar aquelas demandas em políticas públicas. Isso produz acirramento. As manifestações agora deixaram de ter bom humor, elas são muito agressivas. Estamos perdendo a possibilidade de gerar canais institucionais que permitam responder a essa insatisfação, que em 2013 ainda estava difusa. Então, há um descompasso que nos ajuda a entender por que, no lugar do debate, caminhamos para o confronto.
Esse descompasso entre uma grande pressão por direitos e um Estado que não consegue dar repostas é um problema inerente às nossas instituições, ao ponto de ser preciso, imediatamente, realizar reformas profundas?
É claro que nós precisamos fazer reformas, como a reforma política. Já se perdeu muito tempo não executando essas reformas, num momento em que isso seria muito menos difícil. Mas também há uma dificuldade deste governo em escutar o que a sociedade está falando. Uma coisa são as reformas estruturais, outra são as demandas que já podem, agora, gerar políticas públicas. Qual é a disposição de quem administra a coisa pública para escutar e transformar? Só escutar é fácil, mas precisamos pensar no passo seguinte: como transformamos tudo isso em políticas? E como, de maneira muito transparente, dizemos à sociedade que temos um cronograma, não temos recursos para tudo? Determinadas coisas são inegociáveis, como saúde e educação, não abrimos mão delas. Essa conversa, pelo que sei, não foi feita. Essa seria a postura efetivamente republicana do governo. O ex-presidente Lula parece ser muito bom nisso, é um cara politicamente preocupado para gerar consenso e fazer as coisas avançarem.
Qual a diferença entre a república e a democracia? Você acredita que as instituições republicanas e democráticas vão suportar essa crise política ou estamos caminhando para uma refundação da república e da democracia?
A democracia coloca em cena a questão da igualdade. Todos somos iguais e, porque somos iguais e temos igual direito de emitir nossas opiniões, a democracia produz a tolerância com relação àquele que discorda de mim. A divergência vai ser resolvida democraticamente. No campo da república, eu construo a lei e obedeço a essa lei que garante que eu não serei julgada por minha condição social ou por minhas ideias, mas por ter feito algo que vai contra a lei. A república também diz que quem participa e define as regras da vida pública é o cidadão, não é o juiz. A república diz que o gestor tem que administrar bem a coisa pública, criando as condições para que a sociedade defina o que é o bem comum, aquilo que interessa à sociedade. O que a sociedade brasileira define como inegociável? Saúde? Educação? Combate à corrupção? Quais são os procedimentos que precisam ser adotados para responder às demandas da sociedade? Qual é a agenda política que melhor responde à sociedade?
Uma coisa tem me preocupado muito. Se nós avançamos na democracia, não avançamos na república. Existe uma postura de produção de acusações sem gerar provas contundentes. Esse procedimento é antirrepublicano, lembra o tribunal jacobino. Um sujeito dizia: “Fulano é ligado à nobreza”. O Fulano era levado à presença do tribunal e não havia provas, porque o tribunal tinha virtude. Ele falava, era o virtuoso e, portanto, podia julgar a partir do critério da pureza de sua virtude.
Este é o risco que corremos. Se o procedimento levantado pela Lava Jato não gerar provas contundentes e, mesmo assim, houver condenações, estarão abertas as portas para a destruição da república. Não se pode acusar com base em delações, sem apresentar provas contundentes. Você não é mais inocente até que provem o contrário. Há uma inversão ameaçadora que faz com você seja culpado até que prove o contrário. Além disso, na república, ninguém tem o monopólio da virtude. Portanto, não há um juiz que possa determinar o que é ou o que não é. Quer dizer que amanhã eu digo que o governo é ruim e vamos tirá-lo? Governo ruim a gente resolve com eleição.
Ou se institui mecanismo para revogar mandatos.
Sim, mas aí a sociedade brasileira tem que se manifestar. Se a questão é instituir uma regra parlamentarista, então, vamos fazer plebiscito e perguntar à população. O problema é que a população já se manifestou duas vezes sobre isso e nas duas ela foi contra. Não dá para o Congresso definir isso sem ouvir a população, pois não se pode resolver uma questão sobre a forma da república com uma solução tirada do bolso do colete do parlamentar.
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