A luta contra o golpe institucional em curso no Brasil e apoio ao fortalecimento democrático foram os principais motivos que trouxeram o Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, ao país na semana passada. Em sua visita a Curitiba na sexta-feira (29), o argentino participou de um ato organizado por juristas do Paraná em defesa da democracia e passou pela manifestação que marcou um ano do “Massacre do Centro Cívico”.
Em entrevista coletiva concedida a alguns veículos de comunicação, Esquivel comparou a situação política atual do Brasil com outros golpes recentes na América Latina, como o caso de Honduras e do Paraguai. “O mecanismo do que chamamos de ‘golpe de Estado brando ou encoberto’ se dá primeiro com um desprestígio sobre os governos pelos meios de comunicação. Depois pelo apoio de setores políticos, empresariais e do Judiciário para derrubar o governo”, explicou o Nobel da Paz.
Esquivel também avaliou o poder que as corporações midiáticas exercem na política, falou sobre a fragilidade das democracias representativas e analisou o afastamento de políticas de integração regional com a retomada de governos neoliberais na América Latina. De acordo com ele, a população unida e “de pé” pode reverter estes processos.
Confira a entrevista:
O senhor poderia explicar os motivos de sua visita ao Brasil?
Esta viagem tem alguns objetivos concretos como trazer apoio e solidariedade ao fortalecimento democrático no Brasil. Estamos preocupados com as experiências da América Latina, com os chamados “golpes encobertos” ou “golpes brandos”, que já foram experimentados em outros países, como no caso de Honduras e do Paraguai. Outras tentativas de golpe de Estado fracassaram no Equador, na Bolívia e na Venezuela.
Não é certo o que estão publicando em alguns veículos, que trago o apoio do Papa. Não tinha falado disso, mas venho como representante de organismos como o Prêmio Nobel da Paz. Eu sei que o Papa tem uma preocupação especial pela situação dos países latino-americanos, mas eu não trago aqui nenhum informe ou aval dele.
Fortalecimento democrático
Em um momento da década de 1970, havia ditaduras militares em toda a América Latina. Depois dos anos 1982 e 1983, iniciou-se um processo de democratização desses países. O processo de construção democrática é muito trabalhoso, pois nenhuma democracia é perfeita. Toda a democracia pode melhorar, pode afirmar-se, e para isso é importante afirmar as instituições do Estado e a continuidade constitucional. Se isso não acontecer, será perigoso para a saúde do nosso povo. Esse é um dos motivos pelo qual estive com a presidenta Dilma e com outros setores, como o presidente da Corte Suprema. Sempre digo que ‘a democracia não se presenteia, mas se constrói’.
Vou fornecer alguns fatos concretos. Eu venho da Argentina, onde há um governo neoliberal e conservador, o governo de Macri que chegou por eleições livres e democráticas ao poder, sem golpe de Estado. Mas há um informe pelo Observatório da Universidade Católica da Argentina de que, em quatro meses de governo, a pobreza endêmica aumentou em 1,4 milhão de pessoas, por conta das políticas de ajuste e controle social. E isso, logicamente, está afetando a vida dos povos, dos mais necessitados, dos mais pobres. Então, o problema é definir se a América Latina vai retroceder ou vai se afirmar na construção de instituições democráticas e livres. Democracia para mim significa direito à igualdade para todas e todos.
O senhor falou sobre a possibilidade de um golpe de Estado no Brasil. O que, em sua opinião, não está sendo respeitado pela Constituição?
Não estamos falando de o sistema utilizar as forças armadas. Hoje, o mecanismo do que chamamos de ‘golpe de Estado brando ou encoberto’ se dá primeiro com um desprestígio sobre os governos pelos meios de comunicação. Depois pelo apoio de setores políticos, empresariais e do Judiciário para derrubar o governo. Isso aconteceu com Manuel Zelaya em Honduras. Estivemos em Buenos Aires conversando sobre essa política. São ‘experiências piloto’ para ver como podem [setores conservadores] ir avançando nesse golpe de Estado. Outro país que passou pela mesma metodologia foi o Paraguai, com Fernando Lugo. Tudo foi fictício, mas foi uma forma de tirá-lo do governo sem possibilidade de defesa alguma.
Os golpes querem acelerar as privatizações das empresas estatais e outras, por controle sobre os movimentos sociais. São mecanismos repressivos. Então, onde fica a decisão de um povo frente a isso? Eu sou sempre um ‘pessimista esperançoso’, porque acredito que quando os povos se unem e se põem de pé, eles podem modificar isso.
Democracias representativas
Não creio tanto nas democracias representativas, nas quais votamos e depois, durante oito anos, seis anos, quatro anos, não temos capacidade de reverter políticas dos governos, gostemos ou não. Então, o problema é como saímos dessas democracias de delegação e partimos para democracias participativas, onde os povos tenham controle sobre o Estado. Nós delegamos o poder, mas o povo tem que ser protagonista de sua própria vida e construtor de sua própria História. Esta é a diferença.
Os golpes de Estado vão se impondo hoje, porque as grandes empresas, os grandes interesses, inclusive dos EUA, vão em busca dos bens e recursos de nossos povos, como a água e os aquíferos. Quando se analisa a situação internacional, vemos que já há hoje 32 países que não têm água. Então, temos que começar a pensar que tipo de democracia queremos e para quê. Não é só colocar o voto na urna e dizer que vivemos a democracia. Temos exemplos de golpe de Estado que votaram.
Aqui no Brasil acreditamos que um dos responsáveis pelo golpe seja a própria mídia corporativa, por isso chamamos de ‘golpe midiático’. Qual é a relação entre o monopólio da mídia na Argentina e o monopólio aqui no Brasil?
Vocês sabem que há monopólio informativo, nenhum meio de comunicação é neutro. Todos têm suas ideologias, seus interesses políticos e econômicos. Porém, os monopólios são dominantes, porque tem a possibilidade de levantar ou tirar qualquer governante, de acordo com os interesses que tenham. O monopólio no Brasil é exercido, fundamentalmente, pela Rede Globo. Na Argentina, a rede do Clarín e La Nación, era a que monopolizava todos os meios, não só da imprensa escrita, mas também canais [de televisão] e rádios. Isso quer dizer que tinham poder de decisão em tudo. Na Argentina, o parlamento sancionou a lei de meios e eu fui apoiá-la na Câmara de Deputados, porque era importante terminar com o monopólio e ter a diversidade informativa. Mas também creio que o governo argentino de Cristina [Kirchner], promoveu a concentração de meios estatais, o que não é superar os monopólios. Recentemente, Macri cancelou a licença da Telesur, e deve abrir uma CNN na Argentina. Isso causa uma sensação econômica e não política. Uma seleção não é correta, pois é intencional esse controle do meio informativo, e esses são os perigos dos monopólios. O que temos que antes não tínhamos são os meios alternativos que agora jogam um papel fundamental.
São muitas coisas que estão pensando em nossa época. Assim como Jean Jacques Rosseau, na sua época, lança o Contrato Social em que vivemos, hoje temos que repensar em outro contato social vigente com a mentalidade da nossa época. Não há saída. É o poder econômico, político e a decisão das grandes corporações no controle. Vou assinalar muito brevemente, porque preciso pensar com mais tempo de análise: esses tipos corporativos levam ao pensamento único. E simplesmente expressemos o que nos dão do ponto de vista ideológico, político, econômico e cultural. Esse é o pensamento único. E temos que trabalhar o inverso disso, que é o pensamento próprio. É preciso que os povos tenham pensamento próprio, porque hoje estamos vivendo aquilo que leva a muitas deformações que vemos nessa sociedade, que é a manipulação informativa.
O que o senhor acha que é possível fazer no âmbito do Mercosul e da Unasul para reverter esse processo?
Não reconhecer governos que surjam de golpe de Estado ou governos não democráticos. O não reconhecimento significa a suspensão desses países no âmbito do Mercosul e da Unasul. É uma medida que já se aplicou e que teve o seu efeito. Não sei se pode passar o mesmo com Brasil.
O que vemos na Argentina e também no Brasil, com programa de Michel Temer, é a tentativa de restauração neoliberal na América Latina. Como o senhor avalia esse processo?
A América Latina avançou em alguns objetivos de integração regional, e isso é importante. Mas agora está se deixando de lado o Mercosul, Unasul, a Celac, assim como políticas de direitos humanos e políticas culturais. Macri, por exemplo, não fala de Unasul, nem de Celac, nem de Mercosul, mas de acordos econômicos com os EUA, Tratado do Pacífico e acordos com a Europa, como se a América Latina não existisse. O que está acontecendo é uma desintegração daqueles avanços, da unidade regional. Hoje os países latino-americanos não têm decisões próprias. Por exemplo, quem define os preços dos nossos produtos no mercado internacional? Não são os latino-americanos, são os grandes centros do poder. E isso sempre será uma forma de colonização.
Os comentários sobre a votação pela admissão do impeachment na Câmara dos Deputados são de que não houve argumentos técnicos. O que o senhor pensa sobre isso?
Não estive com os deputados, mas o que sei é que a presidenta Dilma aplicou um procedimento que outros governos anteriores haviam aplicado. Não é uma coisa que ela inventou. Agora, não nos enganemos, porque todos esses procedimentos empregados para destituir a presidenta não são assépticos. Isso não se faz porque não se gosta da presidenta, mas porque há intenções políticas e econômicas, como as privatizações das empresas estatais. Os países do norte, centrais, hoje estão esgotando os recursos e a América Latina é uma fonte que ainda conserva muitos recursos, assim como a África que foi saqueada. A África não é um continente pobre, mas empobrecido. Sacaram ouro, minerais, diamantes, petróleo, etc. Poderíamos falar muito disso, porque integrei faz alguns anos uma comissão na Namíbia e na África do Sul pelas Nações Unidas para avaliar os grandes interesses sobre esses países. Podemos ver isso acontecer na América Latina. Mas se queremos ver países soberanos e livres, temos que pensar sobre isso.
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