Em fevereiro deste ano, a imprensa noticiava mais uma morte seguida de “resistência seguida de morte” em uma operação policial no Parque União, no Complexo da Maré, Rio de Janeiro. Segundo a polícia, Igor Firmino da Silva, de 19 anos, foi socorrido com vida e faleceu a caminho do Hospital Geral de Bonsucesso, Zona Norte da cidade. Um vídeo, no entanto, desmentiu a versão oficial ao mostrar o corpo do jovem, aparentemente já morto, sendo recolhido por policiais da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), o grupo de elite da Polícia Civil, e jogado na caçamba de uma viatura.
As imagens deram artifícios para abrir um processo de investigação no Ministério Público, devido à alteração da cena do crime por parte dos policiais, que impediu que a perícia fosse realizada com o local preservado, contrariando a Portaria 553 da Polícia Civil - que prevê a obrigatoriedade da autoridade policial isolar a área e chamar imediatamente a polícia técnico-científica. O Ministério Público instaurou um procedimento administrativo de apuração, no qual a 23ª Promotoria de Investigação Penal foi designada para acompanhar o caso.
O vídeo, registrado de um celular por um morador da Maré, foi publicizado através de uma nova ferramenta, na época ainda na versão de teste, chamada DefeZap, lançada em sua versão consolidada na semana passada. O projeto, implementado pela Rede Nossas Cidades, através da organização Meu Rio, é uma plataforma que se propõe a ser um canal rápido e seguro para denunciar repressão a manifestações e ocupações, operações violentas em favelas, blitz duvidosas, repressão a camelôs e outros casos de uso e abuso da violência de Estado. O envio pode ser feito pelo site ou através do Whatsapp e a organização garante não ceder dados do informante, que não precisa se identificar.
Para Guilherme Pimentel, jornalista e um dos coordenadores da plataforma, o grande diferencial do DefeZap é que as denúncias são feitas exclusivamente por meio audiovisual. “Para envio de vídeos, ainda não existe um canal oficial. Existe disque-denúncia, a plataforma online das delegacias e do Ministério Público também recebem algum tipo de comunicação, mas não identificamos nenhum canal que fosse apenas feito por vídeos. É um déficit sentido, inclusive, pela população que tem nos procurado” . O autor da denúncia acompanha, através do DefeZap, o destino dado às informações compartilhadas.
O sistema está em desenvolvimento desde 2014. O coordenador conta que a ideia foi baseada na observação empírica do crescente uso dos aparelhos celulares para filmar abusos e violência de estado e divulgação através das redes sociais. "A gente decidiu fazer este projeto para potencializar a capacidade coletiva que as pessoas têm com um celular na mão, quando elas conseguem mostrar determinado problema, desfazer uma versão oficial, que às vezes é deturpa a realidade e mostrar o que de fato aconteceu e denunciar isso".
Além de existir um comitê técnico formado por especialistas que acompanham o trabalho, a equipe também é responsável por um blog, onde são publicadas produções jornalísticas com base no material recebido. "A gente quer devolver para a sociedade as informações que chegam até nós", disse. Mas, segundo o jornalista, a grande preocupação da organização era com a continuidade das denúncias feitas por vídeos. "Se essa exposição destes vídeos não gera uma consequência, ela acaba fortalecendo como efeito colateral desse processo, a naturalização do problema. Se você abre o Facebook e todos os dias vê um caso de abuso e nada acontece, tem um momento que você acredita que isso é normal", problematiza o coordenador.
Por isso, ele pontua que outra funcionalidade importante do DefeZap é o acesso à Justiça, que faz com que o vídeo "vá além da viralização" e cada um deles se torne um caso oficial. Uma vez enviado, o material é analisado por uma equipe de colaboradores que destinam a denúncia aos órgãos de correção de conduta e controle externo da força policial. No caso do assassinato de Igor, o material que chegou através da plataforma foi também enviado para a Corregedoria Interna da Polícia Civil, com cópia para a Ouvidoria de Polícia e Corregedoria Geral Unificada. As vítimas de ocorrências ou seus familiares também são encaminhadas para o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública, onde contam com assistência jurídica para buscar indenizações do Estado.
Financiada pela OpenSociety Foundation, a ferramenta não trabalha em regime de parceria, mas de diálogo com o Poder Público, segundo Pimentel. Ele afirma que o sistema é totalmente autônomo e independente de partidos políticos.
O coordenador do projeto conta ainda que ainda não se fez um relatório com o número de denúncias recebidas neste primeiro mês de plataforma consolidada, mas que a ferramenta tem recebido informações até mesmo de policiais militares, denunciando suas condições de trabalho.
O projeto, a priori, só atende os municípios da região metropolitana do Rio. Pimental afirma, entretanto, que existe a possibilidade de expansão da plataforma. “Por enquanto estamos a passos lentos, vamos sentir como está a implementação aqui, que é uma das cidades que faz parte da Rede Nossas Cidades, que está em expansão... Então temos [esse] horizonte”, finalizou o jornalista.
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