A expressão “República das Bananas", tão utilizada para caracterizar pejorativamente países latino-americanos considerados instáveis e “atrasados”, foi criada pelo escritor estadunidense Willian Sydney Porter, inspirado no que viu em Honduras no início do século 20. Nesta época, a economia hondurenha se estruturava em torno da exportação de banana controlada por empresas estrangeiras que pouco contribuíam para a arrecadação fiscal do Estado e que muito influenciavam nas decisões políticas do país ao sabor de seus interesses - financiando, inclusive, derrubada de presidentes.
Ainda que muitos desconheçam a origem da expressão, ela voltou à tona desde que Dilma Rousseff foi afastada da presidência da República por meio da farsa do impeachment. Afinal, nossa “vocação” primário-exportadora e a atual instabilidade institucional nos aproxima de uma república bananeira a la hondurenha?
Nas análises sobre a tentativa de golpe de Estado em curso no Brasil é comum a comparação com o golpe civil-militar de 1964. De fato, as semelhanças são assustadoras, mas talvez as diferenças entre os dois eventos tenham mais a nos dizer. E é justamente para melhor entendermos estas diferenças que se torna imprescindível um olhar sobre os fatos de Honduras em 2009.
Atualmente, a reorganização do Estado por meio de um golpe vem atender a outra etapa de acumulação capitalista. Se os golpes de outrora iniciavam um ciclo de experimentos neoliberais na América Latina, como ocorreu no Chile de Pinochet, os golpes do século 21 parecem querer recuperar a hegemonia neoliberal levemente abalada com a ascensão de governos progressistas que buscavam uma política externa mais independente e um novo paradigma de políticas públicas, com o reconhecimento de múltiplos sujeitos (população na extrema pobreza, negros e negras, mulheres, trabalhadores e trabalhadoras da cultura, etc.). Soma-se a isso um contexto de acirramento de crise internacional capitalista, que tem na ofensiva neo-extrativista junto aos países periféricos uma das principais saídas adotas pelos capitais internacionais.
Além disso, o momento atual pede outra metodologia de golpe. Diferente do que ocorreu no século passado, a elite já entendeu que não pode mais contar com o protagonismo dos militares, ainda que estes nunca estejam indiferentes ao processo. A consolidação de uma democracia – mesmo que só na forma política – e a memória viva das atrocidades cometidas pelos militares tornam muito difícil uma aventura verde-e-oliva para a tomada do poder.
A dobradinha judiciário-mídia aliada a um Congresso conservador apresenta-se como a equação perfeita que confere ao golpe “suave” ares democráticos. Arquiteta-se, para isso, um processo liderado por atores supostamente isentos, respaldados por manifestações supostamente espontâneas e “livres de ideologia”. Aparentemente não há partidos políticos na linha de frente, não há militares, não há jogo de interesses pelo poder. Há apenas a luta contra a corrupção, pela moral e pela legalidade. E pela (minha) família.
Guardadas as devidas particularidades, tal estratégia foi usada no golpe que destituiu o presidente Manuel Zelaya em Honduras, em 2009. Sem deixar de considerar as diferenças legais e constitucionais internas e o peso do poder militar no Brasil e em Honduras, podemos identificar semelhanças entre os processos golpistas nesses países, principalmente no que diz respeito à perseguição jurídica à Zelaya e ao Partido dos Trabalhadores (PT).
Desde o momento em que o presidente Manuel Zelaya (inesperadamente) aliou-se à Alba e ao Petrocaribe, aumentou o salário mínimo, desobedeceu as regras do setor financeiro nacional e enfrentou as transnacionais petroleiras, começou a ser hostilizado pela mídia e a perder apoio no Congresso, até mesmo dentro da própria sigla, a do Partido Liberal. Mas, foi quando tentou promover um plebiscito para decidir sobre uma Assembleia Nacional Constituinte - na esteira do novo constitucionalismo latino-americano experimentado em países como Bolívia, Equador e Venezuela - que sofreu uma sistemática perseguição do Congresso Nacional e da Corte Suprema de Justiça, resultando em seu trágico derrocamento (que, ao final, contou com uma trapalhada participação militar).
Com uma rapidez impressionante, o judiciário emitiu uma série de decretos impedindo a consulta popular, alegando que a própria Constituição hondurenha não permitia a reforma total da Carta Magna, pois possuía artigos imutáveis, entre estes, o que trata sobre reeleição. Em paralelo, uma campanha midiática acusava Zelaya de querer mudar a lei para perpetuar-se na presidência.
Ao mesmo tempo, o presidente foi impedido de demitir seu ministro da Defesa, restituído no cargo em menos de 24 horas, por meio de decreto judicial. Por fim, a Corte Suprema de Justiça emitiu, em sigilo, ordem de prisão do presidente a partir de acusações genéricas, como traição à pátria, abuso de autoridade e incapacidade de resolver a crise econômica.
Por outro lado, o ex-presidente insistia na consulta, principalmente por pressão dos movimentos sociais de esquerda, passando a denominá-la “pesquisa nacional de opinião” com a intenção de fugir dos decretos da justiça. Instalou-se uma conjuntura emocionante e difícil de acompanhar. De um lado, uma parcela da população contrária à consulta – formada por organizações empresariais, sindicais e religiosas – foi às ruas (e ao oligopólio dos meios de comunicação) pedir, entre outros absurdos, a intervenção militar. De outro, estava Manuel Zelaya, isolado na macropolítica, contando apenas com o apoio de partidos pequenos e dos movimentos sociais organizados – estes peças-chave para a mudança de conjuntura que se seguiu.
Paralelo à disputa das ruas e do âmbito da justiça estava o golpe parlamentar. A Constituição hondurenha não prevê o instrumento do impeachment como forma de julgamento de um presidente, mas foi formada às pressas uma Comissão que investigaria a conduta do mandatário. O informe do “júri” foi dado a conhecer na fatídica sessão de 28 de junho, quando se consolidou o golpe. Dentre os “crimes” que recaíam no mandatário constava até “pouca atenção a problemas substanciais como a gripe AH1N1”, a “crise financeira que ocasionou a perda de mais de 100 mil postos de trabalho” e o problema da “insegurança que afugenta o investimento estrangeiro”.
Ainda mais reveladora do grau de bizarrice da sessão do Congresso foi a falsa carta de renúncia do presidente apresentada ao plenário e aceita pelos parlamentares, o que deu o argumento supostamente legal para chamar o ocorrido de “sucessão presidencial” e não de golpe. Zelaya, no entanto, não havia renunciado.
Naquela madrugada, em vez de cumprir a ordem de prisão emitida pela Corte, os militares sequestraram e deportaram o presidente. Não sem antes fazer um “pit stop” na base militar estadunidense localizada nos arredores de Tegucigalpa. O argumento utilizado foi o de que era necessário manter Zelaya longe de sua “rede violenta” de apoiadores.
Tanto esforço para barrar as propostas de Zelaya revelam que o que estava em jogo não era a realização de uma simples consulta popular e sim projetos políticos diferentes para a sociedade hondurenha.
Um exemplo de que os fatores que levaram ao golpe contra o presidente Zelaya tiveram muito mais motivações econômicas e ideológicas do que disputas normativas e apego à Constituição é o fato de que, passado um pouco mais de um ano da sessão que destituiu o presidente Zelaya, praticamente o mesmo Congresso abre mão de seu maior argumento contra o ex-presidente: a acusação de que este pretendia reformar totalmente a Constituição para permitir a reeleição. Em 11 de janeiro de 2011, o Congresso Nacional de Honduras aprovou uma reforma no artigo 5 da Constituição liberando as consultas populares orientadas a reformar o artigo 374, aquele que anteriormente restringia a forma de governo, o período presidencial e a reeleição.
Podemos observar que esta metodologia do golpe suave foi “sofisticada” no Paraguai, em 2012, quando o presidente Fernando Lugo foi submetido a um “rito sumário” no Congresso Nacional, sem qualquer participação militar. No Brasil, a presidenta Dilma enfrenta um processo ainda mais detalhado e longo, revestindo o golpe com um verniz de legalidade mais eficiente.
O assustador na ofensiva das direitas na América Latina é que nenhum desses governos que sofreram golpes rompeu de fato com o modelo do neoliberalismo. Ainda que possuíssem expressões de resistência ao imperialismo e que promovessem políticas de diminuição da pobreza, estas gestões apostavam na combinação de exportação de commodities e exploração desenfreada de recursos naturais. Sendo assim, o que leva as elites a lançarem mão de um instrumento com um custo político tão alto, como o golpe de Estado?
No caso de Honduras, todos os esforços em derrocar o presidente Manuel Zelaya resultaram no fortalecimento de um Estado neoliberal típico, muito mais confortável para as elites que não estão dispostas a ceder um centavo da sua margem de lucro. Passados sete anos do golpe em Honduras, o distanciamento histórico já nos permite avaliar as consequências. As promessas de um futuro próspero feitas pelos governos neoliberais que se seguiram aprofundaram ainda mais a pobreza e desigualdade social, resultando no triste índice de país mais desigual do continente latino-americano em 2015, de acordo com o BID, e de país mais violento do mundo (90,2 mortes para cada 100 mil hondurenhos em 2012).
Desregulamentação do mercado e das leis trabalhistas, programas de proteção ao investimento estrangeiro, aumento das privatizações e expropriação de terras de camponeses e povos originários constituem o modelo adotado, aliado à uma crescente militarização e repressão aos movimentos sociais, principalmente os organizados na Frente Nacional de Resistencia Popular (FNRP). Quadro semelhante já é possível observar nas primeiras semanas de governo interino de Michel Temer no Brasil.
O crime de Zelaya, um latifundiário, político tradicional do partido Liberal, não foi de “traição à pátria” e sim de traição a sua classe de origem ao querer, entre outras coisas, ampliar a participação popular na política, historicamente um reduto de poucos em Honduras. Apesar de Manuel Zelaya ser a vítima-símbolo do desfecho da crise, o golpe real, como o próprio nome sugere, foi dado contra as instituições do Estado. Capturou-se o aparato estatal para que este funcionasse em favor da perpetuação do privilégio de poucos em detrimento da capacidade de garantir o bem-estar da maioria.
O aguerrido povo em resistência não conseguiu derrotar o golpismo por nenhuma das vias a que se propôs – nas ruas e nas urnas - até o momento. Este é um desafio que está posto para todas as esquerdas latino-americanas, se quisermos nos livrar, de uma vez por todas, da pecha de repúblicas bananeiras.
(*) Sílvia Alvarez foi repórter do Brasil de Fato em Honduras. É mestre em Ciências Sociais pela UnB.
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