Quem trafega pela BR-364, nas estradas de Porto Velho, capital rondoniense, precisa ficar atento para notar que Vila Jirau existe. A comunidade, contudo, existe e a existência dela é uma espécie de resistência à política de desenvolvimento implantada na Amazônia por meio de grandes obras como as hidrelétricas. É o caso da Usina de Jirau.
O núcleo urbano de Nova Mutum foi anunciado em 2011 como alternativa para as pessoas que ficariam desalojadas pela construção da Usina de Jirau. Na prática seria uma mini-cidade criada para realocar os moradores de Mutum-Paraná, o distrito original onde moravam as comunidades afetadas pela construção da usina.
Localizada a 102 quilômetros (km) de Porto Velho, capital de Rondônia, e a 10 km do distrito de Jacy-Paraná, a vila teria capacidade para abrigar entre 6 mil e 7 mil pessoas com estrutura de cidade grande: ruas asfaltadas, tratamento sanitário, telefone e internet, energia elétrica, água encanada, coleta seletiva de lixo, escola de ensino fundamental e médio, bons restaurantes e outros serviços, como Correios, casa lotérica e banco, benefícios que não cabiam nos sonhos de viver melhor dos moradores da velha Mutum.
A informação oficial do consórcio construtor da obra, a Energia Sustentável do Brasil, é que o principal objetivo da construção de Nova Mutum Paraná foi atender ao Programa de Remanejamento das Populações Atingidas, recebendo os antigos moradores do distrito de Mutum Paraná e de áreas rurais localizadas no entorno do reservatório da UHE Jirau, que optaram pelo Reassentamento Urbano ou Rural Coletivo. As outras modalidades de remanejamento foram carta de crédito ou indenização. Atualmente, segundo o consórcio, Nova Mutum Paraná também abriga parte dos profissionais que trabalham na Hidrelétrica. Seriam 1.600 casas em uma área total maior que dois milhões de metros quadrados.
Na teoria, um enorme ganho na qualidade de vida dos moradores de Mutum-Paraná. Poucos anos depois, Nova Mutum é quase uma cidade fantasma.
As casas do vilarejo ficam quase escondidas em uma espécie de baixada, atrás de um gramado alto, distante alguns metros das margens da rodovia. Não fossem as pequenas barracas de madeira vendendo farinha, queijo e açaí na tigela, sequer se poderia supor que por lá existem pessoas morando.
Luciana Lima Correia, 34 anos, reside em Vila Jirau desde 2011. Ela conta que ficou pouco mais de seis meses em Nova Mutum.
“Ninguém se adaptou por lá”, diz. Sentada em uma cadeira de balanço na varanda do pequeno mercado montado por ela desde que chegou ao vilarejo, Luciana lembra que o projeto idealizado pelo governo e pela empresa responsável pela construção de Nova Mutum não ia ao encontro da vida levada pelos moradores.
“Meu marido era pescador. A maioria dos moradores de Mutum-Paraná também vivia disso, do garimpo ou da pecuária. Não sabiam fazer outra coisa. Quando eles vieram com esse projeto, nós fomos contra no começo, porque não queríamos sair de lá. Depois disseram que a nossa vida iria melhorar. Como não tinha jeito, nós fomos”, conta Luciana, que trabalhava como manicure na antiga comunidade.
Não demorou muito para que ela e o marido, Jonatas Cândido Soares, 39 anos, se desiludissem com o novo lar. “As casas e os lugares eram bem bonitos, mas não havia empregos. Não tinha pesca, não tinha garimpo, não podia trabalhar com madeira. Não tinha como se sustentar. Ao mesmo tempo, as taxas eram muito altas. Já cheguei a pagar mais de R$ 600 de energia, usando só geladeira e TV”, relata.
A solução foi a mesma encontrada pela maioria dos antigos moradores de Mutum-Paraná. O casal vendeu o imóvel que recebeu em Nova Mutum e com o dinheiro comprou um pequeno terreno em Vila Jirau onde construiu um mercadinho e a casa aos fundos. Atrás do balcão, ela se recorda da infraestrutura que possuía na “cidade modelo”, mas diz que não se arrepende da escolha.
“Em Nova Mutum, nossa vida piorou muito. Não tínhamos dinheiro e nem como trabalharmos. Lá tinha posto de saúde, uma escolinha e um posto policial. Mas não tínhamos funcionários no posto de saúde, a escola era só até o fundamental e o posto policial vivia fechado. Aqui não temos nada disso, mas pelo menos a gente consegue se virar”, pondera.
Violência cotidiana
Testemunha ocular das mudanças que ocorreram no pequeno vilarejo, Jorge Pereira da Silva, 81 anos, conhece a história de Vila Jirau melhor que qualquer outro. Foi ele um dos fundadores da comunidade, ainda na década de 1960. Eram pouco mais de dez famílias à época. Nada parecido com o êxodo de novos moradores ocorrido depois da debandada do projeto de Nova Mutum.
Ele e outros poucos agricultores chegaram para trabalhar na agricultura em um lugar que não havia nada mais que mato e uma promessa de construção da rodovia que fica em frente à pequena casa de três cômodos em que mora.
Sentado em um banco de madeira, ele conta nos dedos as pessoas que chegaram com ele em Vila Jirau. A maioria já moreeu e os companheiros de longa data que ajudaram a criar a localidade se mudaram para a parte mais rural do vilarejo.
“Depois que construíram a barragem isso aqui cresceu muito. Antes não tinha nem 20 famílias morando e de repente começaram a chegar famílias inteiras aqui, para comprar lote e construir casa”, conta.
O fluxo migratório trouxe alguns problemas desconhecidos até então. Sem policiamento, poucas opções de emprego e com a comunidade isolada de grandes centros, o local começou a ser alvo de constantes roubos.
“A chegada de muita gente estranha trouxe violência. Muita gente que fica vagando por aí e vem parar aqui fugido. Eu mesmo fui assaltado quatro vezes. Não tinha muita coisa, mas o que tinha roubaram. TV, rádio, deixaram só os móveis e a geladeira”, afirma.Como não existe ação do Poder Público na região, a violência começa a fazer parte do cotidiano. Inclusive com hábitos comuns atualmente nas grandes cidades: a justiça com as próprias mãos. “Mataram dois pilantras no mês passado. Agora voltou a ficar tranquilo”, diz Silva, com um estranho senso de humor.
Não é somente do quesito segurança que os moradores de Vila Jirau reclamam. Com o vilarejo já estabelecido, a luta agora é para que o local passe a ser reconhecido de vez pelo Estado.
Arlindo Nunes de Sousa, 60 anos, se tornou um dos principais articuladores da região. Maranhense, foi um dos primeiros a sair de Nova Mutum e procurar Vila Jirau como opção de vida. “Quando começou a desocupação, eu logo pensei em vir pra cá. Peguei a indenização que tinha direito por conta de umas terras que tinha lá e comprei outras aqui em Vila Jirau. Não tinha nada aqui, só muito mato”, lembra.
Na varanda da casa que ele mesmo construiu, o agricultor reclama do esquecimento da prefeitura de Porto Velho em relação ao vilarejo na hora de oferecer alguns serviços públicos à localidade.
“É sempre uma luta trazer o investimento público para cá. Conseguimos que a prefeitura de Porto Velho viesse aqui fazer uma escola depois de quase dois anos tentando. Mesmo eu doando o terreno, a população já tinha feito a limpeza, eles prometiam que vinham fazer a escola e não faziam. Agora a nossa briga é por um posto de saúde, porque aqui também não tem”, reivindica.
Para o agricultor, a solução oferecida pelo Estado não atendia às necessidades dos moradores de Mutum-Paraná. “Na verdade o que quiseram foi vender algo que não era possível”, afirma. “Não queriam que o morador da ‘Velha Mutum’ apenas mudasse de um lugar para o outro, queriam que ele mudasse de estilo de vida que ele nunca teve acesso”, avalia.
Da teoria à prática
A Energia Sustentável do Brasil (ESBR), concessionária da Usina Hidrelétrica Jirau, informa que cumpriu todo o processo de licenciamento e remanejamento da população conforme a legislação vigente e exigências dos órgãos ambientais e reguladores do setor elétrico. Ainda segundo o Consórcio, atualmente a ESBR continua atendendo a todas as determinações dos órgãos que inclusive monitoram periodicamente as ações praticadas pela empresa.
Uma dessas ações atende pelo nome de Reassentamento Rural Coletivo. A ideia era atender ao Programa de Remanejamento das Populações Atingidas. Localizado na BR-364 entre Nova Mutum Paraná e a Usina Hidrelétrica Jirau, previa que cada reassentado rural recebesse cerca de 75 hectares de terra, sendo aproximadamente 15 hectares cercados e destinados à produção agrícola e em torno de 60 hectares de Reserva Legal. Todos os terrenos contariam com poço artesiano, fossa séptica, galpão com banheiro e filtro de água industrial, por exemplo.
A questão que permanece, como em praticamente todos os grandes empreendimentos na Amazônia, é que muitas das coisas que ficam bonitas no papel não funcionam na prática como planejadas. Isso porque há um pequeno detalhe que atrapalha as boas intenções. O fator humano. É o que pensa, por exemplo, o professor e pesquisador da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Artur Moret, especialista em planejamento energético.
Ele diz que são vários os equívocos na construção de Nova Mutum. Primeiro, porque a cidade não foi construída para o público que deveria atender. “Os moradores de Mutum-Paraná eram essencialmente rurais e eles foram colocados em um lugar com estrutura urbana. Se de um lado você tem o atrativo de ter estrada e ar condicionado, por outro não tinha trabalho para que aquilo pudesse ser sustentado”, diz.
A questão financeira também foi uma das que mais tiveram impacto na decisão dos moradores em abandonar Nova Mutum. “Não havia trabalho para essas pessoas. Enquanto durou o período em que a empresa ajudava no custeio da vida das famílias com um salário mínimo, elas ficaram na cidade. Quando esse período terminou, simplesmente não havia emprego para os moradores. Não havia o que fazer, a não ser buscar trabalho fora dali”, avalia.
O pesquisador afirma que o deslocamento para Nova Mutum quebrou uma estrutura social no qual os moradores estavam acostumados. “Eles tinham um senso de solidariedade muito forte na comunidade. Eram vizinhos. Se precisava cuidar do filho do outro, de um copo de arroz, de um pouco de sal, eles cuidavam uns dos outros. Em Nova Mutum isso não existia mais”.
Procurados pela reportagem, a assessoria de comunicação da prefeitura de Porto Velho não atendeu as ligações para falar a respeito da ausência de serviços públicos em Vila Jirau. Em uma das ligações, o repórter foi informado que o expediente já havia se encerrado. Eram 15h.
Brutalidade
Na última terça-feira (21), nesta mesma região, foi encontrado o corpo de Nilce de Souza Magalhães, liderança do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Rondônia.
A militante, desaparecida desde o dia 7 de janeiro deste ano, estava com as mãos e pés amarrados por uma corda e ligada a uma pedra no lago da barragem da Usina Hidrelétrica (UHE) de Jirau. Ela foi encontrada por trabalhadores da hidrelétrica a 400 metros de sua antiga casa, em um acampamento de pescadores no rio Mutum.
A liderança era conhecida na região por denunciar as violações de direitos humanos cometidas pelo consórcio responsável pela UHE de Jirau, chamado de Energia Sustentável do Brasil (ESBR).
Edição: Luiz Felipe Alburquerque.
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