"A violência doméstica é um problema estrutural, que acomete a todas as mulheres, independentemente de classe, raça ou orientação sexual", analisa a advogada Ana Paula Braga que, junto a sua colega Marina Ruzzi comentou a denúncia feita pela ex-modelo Luiza Brunet sobre as agressões praticadas pelo seu então namorado Lírio Albino Parisotto, um empresário que figura na lista da Forbes entre os mais ricos do mundo.
Em entrevista publicada nesta sexta-feira (1º) na coluna de Ancelmo Gois, do jornal O Globo, ela contou que o casal estava em Nova York para o evento "Homem do Ano", no qual ele seria premiado. Era dia 21 de maio e, enquanto jantavam em um restaurante, Parisotto começou a agir agressivamente contra a ex-modelo. Segundo Luiza, ao chegarem ao apartamento, ele começou a agredi-la verbalmente e dar socos e chutes pelo corpo. Em seguida, foi imobilizada no sofá e teve quatro costelas quebradas. Só conseguiu escapar depois de gritar por ajuda, se trancando no quarto e voltando sozinha para o Brasil no dia seguinte.
Além da denúncia ao diário, Luiza Brunet representou queixa no Ministério Público de São Paulo com um laudo de corpo de delito do Instituto Medico Legal (IML).
Ana Paula e Marina, integrantes da Rede Feminista de Juristas e sócias do Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas, defendem que a causa de casos como o de Luiza é uma cultura que "coloca a mulher em posição de inferioridade e passividade".
E não são raros: somente no Brasil, dados da pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços Públicos e Privados, divulgada pela Fundação Perseu Abramo em 2010, estimam que cinco mulheres são espancadas a cada dois minutos, sendo o parceiro responsável por mais de 80% dos casos reportados.
"O que define esse tipo de violência é a relação de convívio, afeto ou intimidade. A violência acontece porque existe uma ideia social de hierarquia na família, em que a mulher normalmente ocupa posição inferior ao homem, seja ele pai, companheiro, irmão. Isso torna a violência um processo naturalizado, dificultando que se rompa com essa situação", afirmou Marina ao Brasil de Fato.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato - Hoje foi amplamente divulgado na mídia o caso de violência sofrido pela ex-modelo Luiza Brunet, que foi espancada pelo seu então companheiro, Lírio Albino Parissotto. Por que este tipo de violência acomete mulheres de todas as classes sociais? E o que fazer?
Ana Paula Braga - A violência doméstica é um problema estrutural, que acomete a todas as mulheres, independentemente de classe, raça ou orientação sexual. Isso porque se trata de uma questão cultural, de uma sociedade que coloca a mulher em posição de inferioridade e passividade, o que legitima a violência como forma de dominação.
Quando a violência acontece em classes sociais mais altas ou contra pessoas famosas, a vergonha de denunciar acaba sendo o principal obstáculo. Existe um julgamento na sociedade de que a mulher é culpada pela violência sofrida, além de um tabu de que mulheres que possuem melhores condições financeiras e de educação estariam imunes a esse tipo de violência, o que não é verdade.
É preciso romper com essa ideia. Luiza Brunet foi um exemplo de força e coragem, pois denunciou seu companheiro, rompendo todas as barreiras que esse ato envolve.
Aconselhamos que as mulheres sigam seu exemplo e não se calem diante da violência. Busquem ajuda sempre que preciso, realizando a denúncia de preferência em Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher.
Como vocês lidam com esses casos?
Marina Ruzzi - O que define esse tipo de violência é a relação de convívio, afeto ou intimidade. Ela acontece porque existe uma ideia social de hierarquia na família, em que a mulher normalmente ocupa posição inferior ao homem, seja ele pai, companheiro ou irmão.
Além disso, a violência doméstica, especialmente quando ocorre entre casais, costuma operar em ciclos. Primeiro, vem o acúmulo de tensão, a violência psicológica e o controle de comportamento. Essa tensão vai aumentando até que se iniciam agressões psicológicas mais graves que, por fim, culminam na agressão física. Em seguida, vem a fase da "lua-de-mel", quando o agressor se desculpa por suas atitudes e promete mudança. Não raro ele justifica suas atitudes a partir de um comportamento da mulher, fazendo-a acreditar que é culpada por essa violência que está vivendo.
O ciclo da violência doméstica é bastante difícil de se romper por diversos motivos, como medo, vergonha, dependência econômica, existência de filhos em comum e pelo próprio carinho e afeto que a mulher tem pelo agressor.
É bastante difícil lidar com esses casos pois cabe à própria mulher entender o processo da violência e decidir romper esse ciclo. Não podemos decidir por ela. O que podemos fazer, enquanto advogadas, é informá-la de seus direitos, caso decida entrar com alguma medida protetiva pela Lei Maria da Penha ou processar seu agressor. A partir dessa consciência de direitos, a escolha é exclusivamente da mulher. Damos o suporte jurídico necessário para que ela concretize essa escolha.
Qual a importância dessa consciência para evitar relacionamentos abusivos e denunciar situações de violência?
Marina Ruzzi - Com seu empoderamento, a mulher consegue perceber que os comportamentos agressivos de seu companheiro ou parente e a situação de violência em que ela vive não são naturais nem aceitáveis. Ela consegue romper o ciclo da violência, que é algo que exige muita força interior. Ela sabe que tem direitos garantidos por lei e se encoraja a buscar ajuda e reparação.
Sobre a lei Maria da Penha: ela está ameaçada pelo PL n. 07/2016, correto? Quais serão os prejuízos para as mulheres que sofrem violência doméstica se esse projeto for aprovado
Ana Paula Braga - O PL n. 07/2016 apresenta uma grande ameaça aos direitos das mulheres por propor a inclusão de um artigo que prevê que os delegados de polícia tenham o poder de conceder medidas protetivas de urgência.
Atualmente, quem as concede são os juízes, num prazo de 48 horas contados do pedido feito na delegacia. Por serem conferidas por um juiz, essas decisões possuem força jurídica e executoriedade, ou seja, quem descumprir pode sofrer consequências. Além disso, algumas medidas protetivas podem trazer sérios impactos na vida dos envolvidos, como interferir no direito de ir e vir, de ver os filhos, no patrimônio e até mesmo implicar em prisão.
Por isso, a Constituição Federal estabelece a separação de poderes e garante que medidas que interfiram em direitos fundamentais devem ser apreciadas pelo Poder Judiciário, e não serem conferidas por mero ato administrativo. Assim, entendemos que esse artigo, além de tudo, é inconstitucional.
Caso seja aprovado, vai gerar uma grande insegurança jurídica, pois existe alta probabilidade de ser declarado inconstitucional pelo STF, prejudicando todas as mulheres que tiverem suas medidas protetivas conferidas pelas autoridades policiais.
Marina Ruzzi - O relator do PL argumenta que essa mudança daria maior rapidez ao processo e que as mulheres sofreriam menos, já que o Judiciário é muito lento, e esse prazo de 48h nem sempre é respeitado. Bem, se existe essa demora, ela deve ser combatida. Autorizar uma mudança irresponsável que poderá prejudicar as mulheres não é a solução.
As polícias do país, em sua grande maioria, ainda são despreparadas para lidar com a violência de gênero. É comum ver as mulheres terem seus depoimentos questionados, menosprezados, além de serem culpabilizadas pela violência que sofrem, muitas vezes saindo da delegacia sem sequer conseguir registrar boletim de ocorrência, quem dirá ganhar as medidas protetivas de que necessitam. Por isso, conferir a uma autoridade policial despreparada o poder de decidir sobre a necessidade das medidas protetivas poderá ser mais um obstáculo para a Justiça.
Já os outros dispositivos que o PL prevê são ótimos (na teoria) e de fato são reivindações dos movimentos de defesa dos direitos das mulheres. Esses novos artigos preveem protocolos de atendimento adequado à mulher, como a não revitimização durante a escuta de seu relato; o funcionamento 24 horas das delegacias especializadas em atendimento à da mulher [hoje elas só funcionam em horário comercial; e a garantia de que atendimento será feito por profissionais do sexo feminino, todas capacitadas para lidar com violência de gênero.
O problema é que querem colocar isso na lei sem qualquer previsão orçamentária que consiga garantir o seu cumprimento, e só colocar no papel é insuficiente. Se hoje as delegacias da mulher estão sucateadas, é justamente por falta de recursos. Assim, a inclusão dessa previsão sem que haja orçamento para implementá-la traz o risco de se criar mais uma letra morta.
Edição: Camila Rodrigues da Silva
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