No último mês, entrou em vigor uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que que determina que a cesariana a pedido da grávida só pode ser realizada a partir da 39ª semana de gestação. Apesar de, aparentemente, ser uma vitória para os militantes da saúde da mulher, boa parte dos movimentos que lutam pelo parto humanizado viu como uma medida que beneficia principalmente os médicos.
“Se tem alguma coisa que dá pra comemorar é, talvez, a diminuição das taxas de prematuridade iatrogênica, que são os nascimentos muito antes do tempo ideal por conta de cesáreas agendadas”, ponderou a obstetra Juliana Giordano, membro do Coletivo Feminista de Saúde e Sexualidade de São Paulo, e doutoranda na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sobre Parto Humanizado.
Ela defende que a falta de informações ao longo do pré-natal das brasileiras limita a autonomia da paciente de que trata a resolução.
“O médico ainda é a pessoa detentora das informações durante o pré-natal. Então, na verdade, é uma escolha que não é feita com todas as informações necessárias para legitimar uma escolha, de fato, da mulher”, argumentou Juliana.
Confira a entrevista na íntegra:
Saúde Popular – Na sua opinião, essa resolução minimiza os riscos para a mulher?
Juliana Giordano – Ela é polêmica. Em um contexto geral, não minimiza, porque a autonomia da mulher sobre a escolha da via de parto é muito prejudicada porque o médico ainda é a “pessoa detentora das informações” durante o pré-natal. Na verdade, é uma escolha que não é feita com todas as informações necessárias para legitimar de fato uma escolha da mulher.
Quais são as limitações deste documento?
Essa resolução previne prematuridade iatrogênica. O principal ganho dessa resolução é o não agendamento de cesária eletivas abaixo de 39 semanas, que existe atualmente com frequência e, muitas vezes, não se sabe a idade gestacional correta. Ou seja, você acha que teve um bebê de 38 [semanas], mas às vezes você pode ter tido um bebê de 35, 36 semanas. Então, sob esse ponto de vista, é uma resolução que realmente protege esses fetos.
Por que os médicos e pacientes marcavam antes do tempo?
Por vários motivos, não há uma resposta simples, é uma conjuntura de coisas. Tem essa cultura de que muitas vezes a mulher já acha que está pronto, que, já que vai fazer cesárea, para que esperar mais? Tem uma sobrecarga no final da gestação, e ela é pouca informada sobre os prejuízos que podem acontecer com o bebê com essa decisão de querer fazer a cesárea antes.
E para o médico também são vários motivos: conveniência, para conseguir agendar mais pacientes no mesmo dia… Então, se ele tem cinco pacientes, uma de 37, uma de 38, uma de 39 e duas de 40 [semanas], ele agenda todas no mesmo dia e tem um dia de cirurgias e com isso a rotina do consultório vai mais fácil. Nunca é uma questão simples.
Alguns criticam que a resolução continua priorizando o médico e não a parturiente, principalmente até no uso da palavra “paciente”. Você concorda? Em que sentido o médico é priorizado?
Eu concordo, porque já têm estudos aqui no Brasil que mostram que no início do pré-natal 80% das mulheres querem um parto normal. Dessas, nem 30% chegam ao final da gravidez querendo parto normal. Essa mudança da escolha, que teoricamente é dela, tem a ver com o pré-natal e com as informações que são dadas à mãe.
Em nove meses, o que acontece para que 50% das mulheres desistam do parto normal? Na minha opinião, são informações errôneas passadas durante o pré-natal. “Esse bebê é muito grande” ou “é muito pequeno”, “tem muito líquido”, “tem pouco líquido”, “a bacia é estreita”, “não dilatou até agora, não vai dilatar mais”, “passou de 40 semanas e pode ser perigoso para o seu bebê”, “talvez você não aguente”.
Tem uma série de informações, não só do médico que está fazendo o pré-natal, mas de todo o sistema de saúde que atende essa mulher. Elas não passam com enfermeiras obstetrícias, nem com grupos de incentivo ao parto normal. A vizinha, a tia, a mãe, todo mundo fez cesárea.
Na verdade, essa resolução foi feita para beneficiar os médicos do setor privado, onde mais de 80% dos partos são cesáreas atualmente. Basicamente é isso: a autonomia sobre a qual o texto fala se refere a uma escolha feita sem todas as informações possíveis.
Existem países em que as mulheres que optam por cesarianas são levadas para avaliação psicológica, porque a cesárea é vista como uma cirurgia, que salva mães e bebês de riscos quando bem indicada, mas que tem seus riscos cirúrgicos comprovados. O índice de mortalidade pela cesárea é três vezes maior que o de parto normal. Então, não faz sentido uma mulher escolher uma cesárea sem nenhuma justificativa.
Você falou que essa resolução atende principalmente o sistema privado… O que motivou o CFM a publicar essa resolução? Qual o contexto?
Não sei te dizer exatamente, só posso fazer conjecturas. Existe toda essa pressão do Ministério da Saúde para diminuir [o número de cesáreas], com a PNH [Política Nacional de Humanização, o PAISM, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, dentro da Rede Cegonha, que vem para tentar fazer com que as taxas de cesárea diminuam, porque nós somos campeões mundiais. E, internacionalmente, é fato que o aumento da taxa de cesárea leva à maior mortalidade materna.
Então, existe uma pressão e a resolução é uma maneira de justificar. “Ah, a mulher assinou um termo concordando com a cesárea”, e pronto. Então ela está livre para fazer a cesárea após 39 semanas, sendo que o médico está protegido por essa decisão.
Por fim, você avalia que essa resolução é uma vitória pro movimento de mulheres que lutam contra a banalização da cesárea e pelo empoderamento feminino durante a gravidez, ou não?
Eu sou super a favor da mulher escolher a via de parto dela de fato. O que é difícil é fazer com que essas mulheres que escolhem a cesárea estejam bem informadas.
Primeiro, que se a gente pegar aqueles números são só 20% que fazem o pré natal realmente já querendo uma cesariana. Mas essas acho que realmente têm a informação de todos os reais riscos e benefícios do parto normal versus cesariana, e que estão fazendo uma escolha consciente. Ainda assim é muito baixa a porcentagem de mulheres que estão bem informadas.
Então, não. Eu não acho que [essa resolução] é uma vitória. Acho que serve para manter essa banalização [da cesárea]. Se tem alguma coisa que dá para comemorar é, talvez, a diminuição das taxas de prematuridade iatrogênica, que são os nascimentos muito antes do tempo ideal por conta de cesáreas agendadas. Do ponto de vista da autonomia da mulher, não.
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