Golpe

Turquia: por que os militares tentaram tomar o poder?

Após uma série golpes militares reais no passado, o povo turco agora reage a qualquer sinal de intervenção militar

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Tentativa de golpe militar na Turquia
Tentativa de golpe militar na Turquia - Flickr: @Eser Karadağ

O que aconteceu? O que precisamos saber?

Na noite de 15 de julho, um grupo de soldados turcos assumiu o controle de várias instituições em Istambul e Ancara, no que parece ter sido uma tentativa de golpe mal planejada. As forças policiais – auxiliadas por um grande número de cidadãos ordinários turcos– conseguiram frustrar o golpe. Chamados às ruas pelo presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, enormes grupos de homens tomaram as ruas para impedir as unidades do exército de entrarem em prédios governamentais. O golpe foi declarado encerrado na manhã do dia 16 de julho.

Então, o povo turco apoia o presidente Erdogan?

Graças a uma longa história de golpes militares, o ódio do povo turco a intervenções militares é muito maior do que sua aversão ao seu líder autocrático. Turcos de todos os espectros políticos compartilham o mesmo sentimento de que até uma péssima democracia é melhor do que um governo militar.

Por que os militares tentaram tomar o poder?

A explicação muda de acordo com em quem você escolhe acreditar.

Uma declaração supostamente feita pelos militares alega que seu propósito era “reinstituir a ordem constitucional, a democracia, os direitos humanos e as liberdades”. Porém, o presidente Erdogan e sua rede midiática pró-governo bombardearam o povo turco com alegações de que o golpe foi obra de um grupo clandestino, que teria infiltrado todos os órgãos estatais, organizado por um clérigo muçulmano chamado Fethullah Gülen, que é aposentado e vive na Pensilvânia. Pouca evidência sólida dessa conspiração foi apresentada até o momento.

Gülen negou qualquer envolvimento. De fato, ele e outros grupos oposicionistas alegam que o golpe foi, na verdade, orquestrado por Erdogan como desculpa para subjugar a oposição política e definitivamente mudar o sistema governamental da Turquia para uma presidência executiva (o que, na prática, tornaria Erdogan um sultão moderno). Essa explicação também não é inteiramente convincente – a alegação de que Erdogan planejou um falso golpe contra seu próprio governo para extirpar a oposição de dentro do exército e do Supremo Tribunal é muito grande para se levar em conta.

O que o povo turco acha?

A Turquia está extremamente polarizada. Metade a população acredita em qualquer coisa que o presidente diga, enquanto a outra metade tende a acreditar no oposto. Posições a favor e contra o regime de Erdogan tornaram-se tão enraizadas que não há como convencer qualquer lado com evidência e lógica.

Erdogan é como quiabo: algumas pessoas o amam intensamente; para outras, ele é nojento. Ninguém na Turquia é imparcial quando se trata do presidente.

De onde vem essa divisão na opinião pública?

Clivagens sociais tradicionais na Turquia incluem religiosos contra laicos, turcos contra curdos e periferias pobres contra centros urbanos ricos. Junto com a Primavera Árabe e a investigação de corrupção de 2013, surgiu uma nova cisão: pró-Erdoganismo e anti-Erdoganismo.

O ponto culminante dessa separação ocorreu em maio de 2013. Erdogan queria demolir um parque da era republicana na praça Taksim de Istambul e reconstruir um quartel da era otomana, que também incluía uma mesquita. Apesar de a Praça Taksim ser um símbolo do kemalismo secular de esquerda, muitas pessoas religiosas juntaram-se ao que, depois, ficou conhecido como a Revolta do Parque Gezi para preservar o parque como ele é. Naquele momento, secularistas, kemalistas, curdos, alevitas e grupos religiosos – incluindo o Movimento Gülen – cristalizaram sua coalizão contra Erdogan.

Infelizmente, esse setor da sociedade turca só é capaz de concordar em sua oposição a Erdogan, e em nada mais. Portanto, eles não foram capazes de criar uma aliança política que pudesse diminuir o forte controle dele sobre o poder.

Qual é a história por trás disso?

Até a Primavera Árabe, Erdogan era um líder admiravelmente democrático. Porém, após o início da Primavera Árabe em 2011, ele começou a acusar a Europa, a América e Israel por seu envolvimento no mundo muçulmano. Ele agradou às multidões descontentes nas ruas árabes e começou a se comportar como um líder não eleito do mundo muçulmano – ele era quase um califa não declarado. O eixo da Turquia começou a se mover para longe do Ocidente em direção às ditaduras do Oriente Médio.

Em dezembro de 2013, um grupo de procuradores públicos e policiais começou uma grande investigação de corrupção relacionada à lavagem de dinheiro iraniano e à evasão de sanções internacionais contra o Iran. Reza Zarrab, um turco-iraniano que, no momento, está detido nos EUA sob acusações de conspiração para violar sanções contra o Iran, estava supostamente envolvido.

Erdogan afirmou que essa investigação foi uma conspiração contra ele orquestrada por “poderes estrangeiros” e pelo movimento religioso liderado pelo clérigo muçulmano Fethullah Gülen, e lançou uma caça às bruxas contra traidores dentro da polícia e do Judiciário. Nos três anos seguintes, novos tribunais, com apenas um juiz, foram criados para simplificar os processos contra figuras críticas e dissidentes, jornais e canais de televisão foram tomados, e cerca de 3.000 jornalistas perderam seus empregos.

De onde vêm todos esses golpes e teorias da conspiração?

Após uma série golpes militares reais no passado, o povo turco agora reage a qualquer sinal de intervenção militar com a mesma preocupação imediata de um paciente pós-câncer que descobre um pequeno nódulo.

A alergia deles a ações militares no governo tem sido explorada por Erdogan – ele tende a enquadrar qualquer agitação pública como tentativa de golpe. Em 2001, Erdogan foi preso pelo regime laico por causa de um poema recitado por ele, isso fez dele um herói nas ruas. Porém, muitos afirmam que essa prisão foi um show desenhado para torná-lo popular aos olhos do público. Em 2007, os militares tentaram interferir nas eleições presidenciais por meio de um e-memorando, e Erdogan venceu. Ele é um homem cuja reputação cresceu em cada adversidade aparente.

Em 2013, ele acusou a Revolta do Parque Gezi de ser uma tentativa de golpe. Ele disse o mesmo sobre a investigação de corrupção daquele ano. E até afirmou o mesmo, em fevereiro deste ano, quando aldeões de uma remota cidade de Artvin protestaram contra a abertura de minas de ouro em seu vilarejo. Dessa vez, Erdogan está manipulando os mesmos sentimentos para demonizar seu arqui-inimigo, Fethullah Gülen.

O que vai acontecer agora?

Com o governo aparentemente de volta ao controle, Erdogan já ganhou. Sem dúvida, há esforços sendo realizados para silenciar todos os grupos de oposição em nome da segurança nacional, incluindo qualquer mídia local ou nacional que não é abertamente pró-governo.

A partir de agora, não haverá qualquer oposição significativa a essa caçada a grupos oposicionistas. Em 16 de julho, o Ministro do Interior declarou que 2.839 oficiais militares que supostamente eram membros do Movimento Gülen, incluindo dezenas de generais, foram presos. O Supremo Conselho de Juízes e Procuradores demitiu 2.745 juízes e procuradores, incluindo dez de seus próprios membros. O Chefe do Estado-Maior, que havia resistido a pedidos anteriores de Erdogan para limpar o exército, agora cedeu. Abundam rumores de outras detenções.

Uma coisa é certa: o número de pessoas detidas chegará a dezenas de milhares até o fim da próxima semana.

(*) Kerim Balci é editor do Turkish Review, uma revista acadêmica bimestral. Ele também é colunista dos jornais Zaman, que têm ligação com o movimento Hizmet, de Fethullah Gülen. Este texto foi originalmente publicado em inglês aqui.

 

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