América Latina

37 anos da Revolução Nicaraguense: “O desafio das revoluções é o desafio do presente"

O Brasil de Fato entrevistou Mónica Baltodano, uma das guerrilheiras que derrotou décadas de ditadura

São Paulo (SP) |
Mónica é dirigente do Movimiento por el Rescate del Sandinismo e ex-deputada federal
Mónica é dirigente do Movimiento por el Rescate del Sandinismo e ex-deputada federal - Reprodução/La Prensa Nicarágua

Após quase duas décadas de lutas, em 19 de julho de 1979 a Frente Sandinista de Libertação Nacional da Nicarágua (FSLN) vence a Guarda Nacional e ocupa a cidade de Manágua, capital do país, pondo fim à ditadura da família Somoza, que permaneceu 45 anos no poder.

Uma das guerrilheiras que atuou nessa luta é Mónica Baltodano, que ingressou como militante da Frente Sandinista ainda como secundarista e, depois na clandestinidade, organizava redes de apoio à revolução pela Nicarágua. Foi presa em 1977, mas libertada a tempo de integrar o grupo que dirigiu a insurreição na capital, Manágua. “A guerrilha mantinha a chama e um ideal, mas o que garantiu uma transformação no país foi a participação do povo”, declara.

Quando triunfa a revolução, Mónica é nomeada Comandante Guerrilheira, além de ter atuado em distintas tarefas do primeiro governo sandinista. Hoje, ela lidera correntes sandinistas de esquerda, que desejam que a FSLN retome os seus ideais originários e possa voltar a provocar transformações profundas no país centro-americano.

“Temos que ser capazes de construir propostas alternativas, ou seja, defender de fato os governos populares, se não, manter vivas as demandas, as lutas, as reivindicações, as resistências, independente do governo. Enquanto exista desigualdade e injustiça, o desafio das revoluções segue sendo o desafio do presente”, afirma a militante.

Confira a entrevista:

Brasil de Fato - Como você entrou na FSLN?

Mónica Baltodano - Fui parte de uma geração de jovens que se incorporaram desde muito cedo à luta. A princípio dos anos 70 eu era uma adolescente, e nos incorporamos desde o colégio, como secundaristas, na defesa dos direitos dos professores, aos quais acompanhamos em sua luta reivindicatória. E essas lutas estavam alinhadas com a transformação revolucionária, que, naquele momento, tinham na luta armada o meio para chegar ao poder e eliminar uma ditadura que tinha mais de 40 anos na Nicarágua, e iniciar a construção de uma sociedade diferente.

Nesse ambiente, muitos de nós reivindicávamos uma sociedade socialista, com referência nos países socialistas. Isso não só na Nicarágua, mas em toda a América Latina. Tínhamos a Revolução Cubana como uma referência que indicava um caminho e a possibilidade real de construir uma sociedade sem classes, uma sociedade em que alguns seres humanos não exploram a outros. Esse ideal, essa bandeira, esse propósito estava presente em muitas partes do planeta e foram reivindicados com muita força na América Central, onde ocorriam muitas ditaduras repressoras como a ditadura de Somoza.

Os jovens socialistas, influenciados pelos marxistas da época, encontraram eco nas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, que também reivindicavam a justiça social; na Teologia da Libertação na metodologia de educação popular de Paulo Freire, que tinham um conteúdo político e social muito forte, e que também chegaram em nosso país e estavam no dia a dia do movimento cristão.

Assim, nós compreendíamos que para mudar a situação, nós tínhamos que fazer desaparecer a ditadura. Nós queríamos construir uma sociedade diferente daquela de um governante ditatorial, que se mantinha através das armas, que representava os interesses dos Estados Unidos e das companhias transnacionais.

E isso foi um dos fatores que gerou a nossa militância, que estava na nossa militância na Frente Sandinista de Libertação Nacional, que havia sido fundada pelo revolucionário marxista Carlos Fonseca, e na qual acabamos nos envolvendo, a maioria dos jovens dessa geração da Nicarágua.

O que a luta na revolução nicaraguense significou em sua vida?

Primeiro, nós acreditávamos em valores de solidariedade e que o motivo central sempre esteve vinculado à situação de exploração que vivíamos a grande maioria das pessoas da Nicarágua. O que motivou nosso despertar de consciência foram as condições econômico-sociais do povo, e a urgência de transformar essa realidade. E, por isso, o que distinguiu o movimento guerrilheiro nicaraguense de outros movimentos que tinham o mesmo propósito, é que entendemos rapidamente que não se tratava apenas de uma luta militar, “voando balas” como se diz popularmente, mas que era necessário um trabalho de conscientização e organização popular, para que as próprias massas assumissem a liderança de sua própria libertação.

E creio que isso foi o que aconteceu, ainda que nos custasse muito, porque foi o que definiu nos anos de 1978 e 1979 que houvesse a incorporação massiva do povo e conquistássemos uma etapa que era derrubar as instituições, no que era uma insurreição popular, o levantamento do povo. Nós nunca tivemos superioridade militar, e a história só foi possível porque em determinado momento grande parte da população se incorporou à luta, ajudando, construindo barricadas, em ações guerrilheiras.

Havia espaços de participação para que essa fosse uma luta massiva. A guerrilha mantinha a chama e um ideal, mas o que garantiu uma transformação no país foi a participação do povo.

Como a luta na Nicarágua se vinculou a outros processos latino-americanos?

Nós entendíamos que fazíamos parte de uma grande corrente de transformações na América Latina. Efetivamente, desde 1975 começaram a organizar comitês de solidariedade em todo o continente, inclusive nos Estados Unidos, além de Venezuela, Panamá, Costa Rica, México, onde foram muitos fortes. E isso foi muito importante porque mobilizava as pessoas nesses países, com atividades de solidariedade. E isso permitiu que nos anos de 1976 e 1977, os próprios congressistas norte-americanos, e quando subiu ao poder [o presidente dos Estados Unidos] Jimmy Carter – já que aquele país apoiava através de armas, na economia e na política a ditadura de Somoza –, houve uma pressão mundial muito forte para que o governo norte-americano e de outros países rompessem com o governo ditatorial da Nicarágua.

Além disso, com esse movimento, já em 1979, presidentes da região como [Lázaro] Cárdenas – no México –, [Carlos] Andrés Pérez – Venezuela –, e o presidente da Costa Rica foram até Fidel Castro – de Cuba – para pedir que ele enviasse armas aos guerrilheiros nicaraguenses, com mais de 3 mil fuzis, para que houvesse um equilíbrio material entre as forças na Nicarágua.

Então, não somente a luta do povo nicaraguense que permitiu a vitória, mas a solidariedade de outras partes do mundo, de povos e governos, que terminaram por contribuir na fase final da luta e fazer com que o ditador Somoza fugisse da Nicarágua, em 17 de julho, dois dias antes da vitória.

Nesses 37 anos de triunfo do processo revolucionário, quais são os avanços e os retrocessos?

A revolução se manteve no governo durante dez anos. Quando chega ao governo dos Estados Unidos Ronald Reagan [em 1981], ele representa uma corrente contrarrevolucionária hegemônica muito forte no mundo e toma a decisão de aniquilar a Revolução Popular Sandinista. Esta linha de mudanças que de forma recente se estava desenvolvendo, com ações no campo, como nas jornadas de alfabetização e outras coisas, começa a sofrer agressões. E no ano de 1990, com a guerra dos “contras” [em referência aos contrarrevolucionários impulsionados pelo governo norte-americano], na qual morreu muito mais gente do que no conflito contra Somoza, nós fomos retirados do governo por uma via democrática do processo eleitoral [em 1984 já havia sido eleito democraticamente o líder da FSLN Daniel Ortega].

Para mim, em 1990 foi a derrota da revolução, que foi uma derrota eleitoral [quando a Frente Sandinista perde o pleito para uma coalizão anti-sandinista liderada por Violeta Chamorro]. Porque, nessa época, a Frente Sandinista, que sempre se pautou por ser uma organização revolucionária, começa a sofrer desvios de suas lideranças. E isso permite que muitas das coisas que haviam melhorado, comecem a retroceder.

Lamentavelmente, foi uma derrota política e ética quando a condução da Frente Sandinista decidiu empreender o caminho do pragmatismo, tratar de regressar ao poder com um programa político que nem sequer pode ser chamado de progressista. E quando o secretário-geral colocou o tema da tomada do poder de lado e fez um pacto com setores da direita, do Partido Liberal Constitucionalista, e esse pacto de repartição das instituições de governo, do Parlamento. Esse pacto, para mim, é o que representou a derrota da revolução.

Essa revolução, para mim, não existe mais como símbolo de uma geração que lutou pela libertação, e que agora se transformou em algo manipulado ideologicamente e usado para ser símbolo de uma revolução que hoje não representa mais. Hoje estamos vivendo a etapa da restauração, executada com discurso e ícones revolucionários por Daniel Ortega [atual presidente, eleito em 2006 e 2011], mas que são só artifícios de sua construção.

Passados anos de diversos processos revolucionários na região, como você analisa a situação da América Latina hoje?

A América Latina tem vivido, nesses últimos anos, em uma situação de muita convulsão. Porque ainda que tenham ganhado em muitos países governos progressistas, como o Partido dos Trabalhadores, no Brasil, com raízes populares profundas e sérias, que reivindicavam transformações, muitas dessas transformações não foram feitas. Governos que tiverem discursos frágeis, que muitas vezes se confundiam com discursos da direita. Isso acompanhado de programas e políticas populistas, de soluções aos problemas da pobreza, e que isso gerou uma grande mobilização social. Mas o que gerou também uma grande confusão, pois isso hoje é aproveitado também pela direita, porque os adversários aproveitam de nossas debilidades, o que faz com que tenhamos que levantar também outras bandeiras.

E estamos em meio a uma onda reacionária que vem tomando força em toda a América Latina, como na Argentina, Brasil, e outras partes. Isso gera uma grande confusão, porque será que nós revolucionários temos que defender esses governos progressistas custe o que custar, passe o que passe? Ou temos que ser capazes de construir propostas alternativas. Ou seja, defender de fato os governos populares, ou se não, manter vivas as demandas, as lutas, as reivindicações, as resistências, independente de governo.

Esses são temas de todo o continente que desafiam a todos. Desafiam a mim, que já tenho 60 anos, ou àquele adolescente que está lá do outro lado. Esse é um desafio das novas gerações, dos jovens, e de todos, o desafio de procurar novas alternativas a esse mundo que segue sendo muito desigual, injusto, de concentração de riqueza em minorias. Enquanto exista isso, o desafio das revoluções segue sendo o desafio do presente.


 

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