Em 2009, o Brasil contava com quase 50 milhões de mulheres negras, dados do Dossiê Mulheres Negras, do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea). O mesmo dossiê traz dados de que naquele ano o número de mulheres negras era maior do que o de mulheres brancas no Brasil. No entanto, o referencial de beleza, de uma forma mais generalizada no país, é de um cabelo liso. E isso faz com que muitas mulheres negras que no geral tem cabelos cacheados ou crespos a buscar um cabelo que não é o seu.
“Nem sempre me reafirmei como mulher negra, pois não havia nenhuma representantividade nos veículos de mídia, nos brinquedos. Com isso, alisei o cabelo aos nove anos porque eu não deixei minha mãe dormir enquanto ela não o fez”, conta a atriz e cantora Gabriella Freitas, de Caruaru, agreste de Pernambuco. Gabi da Pele Preta, como a artista se apresenta, passou a se autoafirmar como mulher negra também a partir da sua relação com o cabelo. “Aos 21 anos fiz meu primeiro espetáculo de teatro profissional e ele tinha uma abordagem negra, aí tive que deixar o cabelo crescer sem química e foi libertador. Ser mulher negra é carregar uma herança ancestral muito cruel de colonização que persiste na forma do racismo, do machismo, da sexualização e da marginalização. É ter que resistir o tempo todo e das mais diversas maneiras. No cabelo, nas roupas, no discurso, no trabalho”, afirma.
O Brasil vive o mito da democracia racial e o racismo ainda é muito forte e se revela diariamente nas referências criadas e padrões ditados. Mas também se revela na análise de dados sociais. O número de feminicídio de mulheres negras no Brasil cresceu 54% nos últimos dez anos, segundo o Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Nesse mesmo período, os assassinatos de mulheres brancas caíram 9,8%, também segundo o Mapa. No último dia 25 de julho foi comemorado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, data instituída desde 1992. “Essa é uma data de extrema importância que celebramos na sociedade politicamente que formam parte da construção do território brasileiro e latino-americano, que tem origem em África. Tem importância de remontar esse calendário como uma forma de recontar a história”, afirma socióloga e pesquisadora Cecilia Godoi.
“Cresci sendo a morena da escola, a morena da faculdade, a morena da família. E quando decidi passar pela transição capilar foi que realmente caiu a ficha de que sou negra. Não é porque eu tenho a pele mais clara que não sou negra. Essa questão de morena não existe, isso foi uma forma de tentar embranquecer a sociedade. O meu processo de transição capilar foi essencial para minha aceitação enquanto mulher negra, foi a partir do meu cabelo que eu realmente vi que era negra. Foi o cabelo que mostrou quem eu realmente sou”, afirma a estudante de jornalismo, Renata Araujo.
Renata faz parte do grupo Meu Cabelo, Minha Raiz, em Caruaru, um grupo nas redes sociais onde discutem sobre estética negra, racismo e sobre a aceitação do cabelo natural. Atualmente muitos grupos de discussão sobre estética negra, a partir da aceitação do cabelo natural, estão surgindo. Muitos capitaneados por adolescentes e jovens e que passam a se autoafirmar enquanto mulheres negras a partir do cabelo. “Quando assumi meus cachos vi o quanto um cabelo incomoda. Escuto todos os dias comentários pejorativos e olhares tortos. Mas a situação de racismo que mais mexeu comigo foi quando uma foto minha viralizou na internet numa comparação do meu antes e depois”, conta a estudante. No começo deste ano, Renata sofreu ataques racistas na internet, em uma foto dela em uma rede social. Dois meses depois, entrou com uma ação judicial contra a pessoa que fez os comentários racistas e vai levar adiante a ação.
Para Cecilia Godoi a representação é um fenômeno importante e gera a ressignificação do corpo negro. “É de suma importância a representatividade para que possamos criar outros referenciais e pra que a gente possa tanto desenvolver o olhar crítico frente a realidade, quanto que a gente possa ter a possibilidade de escolha. Inclusive entre as mulheres negras, porque a ideia não é dizer como o cabelo deve ser usado, mas que possamos escolher, que não sejamos discriminadas pela escolha que a gente tiver feito do uso do nosso cabelo, seja ao sair na rua, seja ao buscar ocupar um posto no mercado de trabalho”, afirma. Cecilia também integra o Cabelaço Pernambuco, coletivo auto organizado de mulheres negras que existem há quatro anos, fundado na cidade de Olinda.
Mulheres negras tem reescrito suas histórias ao longo dos tempos, a luta delas contribui para que hoje outras mulheres negras tenham cada vez mais força para a busca de seus direitos. “A mulher negra tem direito de escrever a sua própria história sem intervenções, conhecer suas heroínas e romper o silêncio a que foram condicionadas”, afirma Gabriella Freitas.
Edição: ---