Nos últimos dias, o programa Escola Sem Partido vem tomando conta das discussões dentro e fora das redes sociais, já que esbarra diretamente na liberdade de expressão de educadoras e educadores em sala de aula. O projeto, se aprovado, pode restringir e limitar a atuação de professores no processo de ensinamento dos alunos.
Para ampliar o debate, o Senado Federal lançou uma consulta pública pedindo a opinião de toda a sociedade brasileira sobre o programa, enquanto o Projeto de Lei do Senado (PLS) 193/2016, que trata sobre a questão, é discutido na Casa Legislativa. Até a madrugada desta quinta-feira, 28/7, já eram 185.952 contrários ao projeto e 175.668 a favor. Se aprovado, o projeto pode mudar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em 1996.
Entenda. Criado em 2003, o Escola Sem Partido é um movimento idealizado pelo procurador de Justiça do estado de São Paulo Miguel Nagib, que defende que o modelo educacional brasileiro é um espaço de doutrinação, pois, para ele, as professoras e professores estão multiplicando suas ideologias e posições partidárias junto aos estudantes.
O movimento prega que deve haver, em toda sala de aula, um cartaz ditando regras ao exercício dos educadores. Entre as sugestões estão “não promover suas concepções e preferências ideológicas, políticas e partidárias”, “não incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas”, entre outros itens que excedem os limites entre o profissional e sua atuação fora da sala de aula.
Em 2014, em meio a outras movimentações no cenário nacional, como a não inclusão das discussões sobre gênero na grade escolar, por exemplo, a ideia ganhou peso e chegou às mãos do deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSC-RJ) e se transformou em projeto de lei na Assembleia Estadual do Rio de Janeiro. Posteriormente, ganhou os parlamentos nacional, estaduais e municipais.
Diversos especialistas e movimentos ligados à educação e a própria Procuradoria Geral da República já se pronunciaram contra o projeto. Levando-se em consideração que a escola ainda é um dos poucos espaços onde crianças e adolescentes podem ter acesso a outros referenciais e modos de pensar, o Nós, mulheres da periferia escutou educadoras que atuam nos bairros periféricos da cidade de São Paulo, para entender como o projeto Escola Sem Partido pode afetar diretamente no território, e de como isso, na opinião das entrevistadas, pode gerar retrocessos em temas muito sensíveis às reivindicações ligadas à questão de gênero e também à questão de raça.
Confira abaixo os depoimentos das educadoras Carolina Ferreira (zona norte), Solange Amorim (zona sul), Tamires Martins (zona leste), Gislaine Macedo (zona norte) e Sara (centro).
Carolina Ferreira: A proposta de Lei da Escola Sem Partido é inconstitucional. E deve ser tratada como um grande retrocesso sim, pois tira a liberdade de cátedra [professor que tenha preenchido determinados requisitos para partilhar conhecimentos] do profissional de educação, bem como restringe os temas a serem abordados pelo docente em sala de aula. Não há aula sem ideologia, o docente tem uma formação, e boa ou não, é embutido de valores e ideais que irão fazer parte da sua aula e de como fará o processo de ensino – aprendizagem com os alunos. É um projeto que censura, e que portanto priva a liberdade e o direito à escolha. Desde que leciono, há sete anos, trabalho com a questão de gênero em sala de aula. E nós evoluímos muito pouco nessas questões. Nesse ano mesmo, todos os planos de educação, municipal, estadual e federal não tiveram como item a questão de gênero para ser seguida como currículo e meta. Ainda há muita resistência em se trabalhar com esses assuntos e pouco incentivo. O plano municipal de educação, por exemplo, é uma lei que vigora a partir deste ano, e com proposta válida para 10 anos. Mas só “passou ” e virou lei quando foi retirado esse termo “gênero ” das metas. A bancada evangélica, com grande poder de votos, não permitiu. O que há, são metas para se trabalhar com a “diversidade e diferenças . A escola, por ser um espaço de formação de um cidadão, já que esse passa grande parte do seu tempo dentro deste ambiente, é responsável, também, pelos valores e ideias que este sujeito terá de si, do mundo e das pessoas ao seu redor. A importância de alguns temas virarem leis é disso virar currículo, e ser obrigatório, portanto, passar aos alunos, mesmo que no papel. Pois, quando não se tem no currículo, e isso inclui livros didáticos e materiais de apoio, cabe ao sujeito docente trabalhar com esses temas. Não menos importante, a formação docente irá refletir na visão de mundo e sociedade que esse professor irá passar aos seus alunos. Mas será barrada, em algumas instâncias privadas, por exemplo, caso essa visão divirja do currículo imposto. Nesse quesito, as escolas particulares estão mais fechadas e propensas a seguir o currículo. Já as escolas públicas, em sua maioria que atendem jovens pobres e periféricos, os professores têm, ainda, aqui no Estado de São Paulo, por exemplo, autonomia em sala de aula. O que significa que ele ainda escolhe o que é importante, dentro de um currículo, para se passar. E pode, ainda, passar suas ideologias e trabalhar sim com temas transversais. E, com uma base forte evangélica no congresso, país em crise, falta de perspectiva, um sistema capitalista ferrenho que aprisiona o trabalhador, questões como gênero acabam sofrendo muito ataque sim. É mais fácil continuar numa sociedade machista e homofóbica, do que trabalhar com naturalidade e respeito à essas questões. (Carolina Ferreira, 31, professora de Português da Rede Municipal de São Paulo, atua na zona norte de São Paulo).
Solange Amorim: Escola sem partido: a mordaça contra a escola pública de qualidade. A escola pública, gratuita, laica, para todos e todas é uma importante conquista social, associada a um conjunto de avanços históricos, resultantes da luta pela democratização do país. Hoje, a batalha de muitos educadores, estudantes e pais, compromissados com a escola pública, é para que ela seja de fato democrática, inclusiva e com qualidade social. O projeto Escola Sem Partido significa o retrocesso nesse sentido. Retira da escola pública o direito à autonomia de elaborar livremente o seu projeto político-pedagógico, de acordo com sua identidade, necessidades e interesses locais. Constitui um ataque direto à profissão professor, uma vez que retira dela a liberdade didática de escolha, seleção, expressão e organização livre do pensamento, entendendo o ato de pensar como condição sine qua non (do latim: “sem a/o qual não pode ser”) para a produção de conhecimento. O paradigma da construção do saber inverte-se para a simples reprodução, sem o direito à criticidade e à diversidade de pensamento. O projeto amordaça o professor, mas o objetivo político é servir aos interesses da classe dominante, calando gerações, através do controle ideológico rígido, autoritário, e criminalizando profissionais que não se encaixarem no perfil estabelecido. É a estratégia encontrada pelos setores conservadores para o desmonte da educação pública, visando à privatização e ao atendimento da agenda neoliberal. Cerca de 80% das crianças e jovens brasileiros da educação básica estão matriculados em escolas públicas. Há um interesse privado mercadológico em abocanhar essa fatia. Mas, para isso é preciso acabar com toda e qualquer forma de resistência; pôr fim às históricas greves do magistério e, recentemente, às ocupações estudantis que clamam por melhores condições de trabalho e de aprendizagem. É aí que o Escola sem Partido perde sua máscara e revela de que lado de fato está, e que a história do sem-partido é mera jogada de marketing, nos moldes da campanha de combate à corrupção que impetrou o golpe de estado atual. Pela educação pública de qualidade para todos e todas como direito, e não mercadoria, e como um dever do estado; pela liberdade de pensar e pelo direito autoral do estudante e do professor na produção do conhecimento, devemos ocupar as ruas e denunciar a falácia da escola sem partido. Exigir que a Constituição seja respeitada, que qualquer decisão sobre os rumos da educação sejam tomadas pela população usuária da escola pública, não por políticos que legislam para o mercado e para o sistema financeiro. (Solange Amorim, diretora da rede municipal de ensino de SP, na zona sul).
Tamires Martins: Tal projeto tem como mote ( segundo seus propositores) retirar dos âmbitos escolares as chamadas “doutrinações político- partidárias” que ocorreriam cotidianamente em aulas da educação básica, fragilizando, portanto, ainda mais xs educandxs que estão em processo de formação e que teriam, por conseguinte sua liberdade “tolhida” por maus professores e más “professoras” . Entretanto, o que se vê é uma clara opção de cerceamento do conhecimento crítico e das respectivas proposições de debate que podem ocorrer em cenário escolar. O próprio texto que tramita no Senado deixa claro que podem ser acionados dispositivos legais e instituições, tais como o ministério público, por exemplo, contra xs professorxs e educadorxs que praticarem a chamada “doutrinação”; observando claramente tais pontos elencados, fica pontuado que há uma inconstitucionalidade na proposta, a qual fere, por conseguinte, o Art 5º , inc. IX da Constituição Federal de 1988, no qual se diz: “ é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” . O problema se dá justamente porque, em âmbito escolar, a clarificação do que seria ou não “ doutrinação” até mesmo nos moldes explicitados no projeto ( que elenca questões referentes à religiões e religiosidades, elementos políticos e históricos), se coloca em um “limbo” uma vez que , justamente por estarem em formação e receberem influências de diversos cenários e instâncias socializadoras, xs jovens podem opinar com veemência sobre algo, mas sem ter acesso a outros pontos de vista, perdendo, com o possível aprovar da lei, um ambiente de debates e proposições por excelência, o qual a escola, ainda no sonho de se constituir realmente democrática, seria”. (Tamires Martins dos Santos, professora de História nos ensinos fundamental e médio, nas redes municipal e estadual de São Paulo, na zona leste)
Sara Siqueira: Discutimos gênero na escola para garantir que nossas crianças sejam educadas para um mundo em que homens e mulheres sejam iguais em deveres e direitos, e que as mulheres não sejam maltratadas pelo simples fato de serem mulheres. Discutimos raça na escola porque nossos alunos são majoritariamente negros e não devem naturalizar as (tantas!) abordagens policiais, nem a morte de muitos jovens pelo simples fato de serem negros. Queremos que nossas meninas reconheçam seus cabelos crespos e tranças como belos, e, que acima de tudo, exijam o respeito de ser como quiserem. “Escola sem partido” não deve nos calar!
Sara Siqueira, é professora do ensino fundamental I da Rede Municipal de São Paulo, atua na região do Glicério, centro de São Paulo).
Gislaine Borges: A aula é dialogada, então como e de que forma vou trabalhar com a discussão em sala de aula, se existe uma regra determinada e imposta a nós educadores? Acredito que fica muito mais fácil manipular uma sociedade através do professor, pois ele é um formador de opiniões, porém, ele só faz seu aluno refletir e entender quais são os melhores caminhos e daí ele é que expõe e desenvolve sua própria opinião! Acredito que aqueles alunos que não têm pais ou colegas que tenham conhecimento sobre diversos assuntos da nossa sociedade vão ser prejudicados, pois o único contato que eles tem de um entendimento dessa sociedade é através desses professores que levam essa bagagem q ninguém q está ao seu redor é capaz de inserir ou fazer com que ele repense no porque estão passando por momentos tão críticos. (Gislane Borges Teodoro Macedo, leciona Matemática/Física) na rede Estadual, na região norte da cidade).
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