O jornal britânico The Guardian vazou nesta quarta-feira (10) 2.116 documentos com registros de casos de violência cometidos contra refugiados detidos num centro de detenção australiano na ilha de Nauru, a nordeste da Austrália.
Os relatórios vazados pelo Guardian, que totalizam mais de oito mil páginas e dizem respeito ao período entre maio de 2013 e outubro de 2015, detalham casos — cometidos, na maioria, pelos próprios guardas — de agressões, estupro, abuso de crianças, tentativas de suicídio e as condições degradantes em que vivem os refugiados detidos pelo governo australiano na ilha de Nauru no que seria um centro de processamento para requerentes de asilo.
Alguns guardas estupram as refugiadas, inclusive crianças, ou pedem que elas tenham relações sexuais com eles em troca de favores. Em casos de tentativa de suicídio, um dos documentos cita o caso de uma mulher que apontou um lápis utilizando uma lâmina de barbear e cortou os pulsos, enquanto outro traz o caso de um homem que perguntou onde poderia comprar balas para então pedir que alguém o matasse.
Também são comuns os relatos de pessoas que acabaram desenvolvendo transtornos mentais devido às condições do centro em Nauru. A falta de higiene e de acesso a assistência médica e a outros serviços básicos provoca alucinações e comportamentos agressivos. Um dos documentos cita o caso de uma mulher que entalhou o nome do marido, que já vive na Austrália, no próprio peito porque queria fazer uma tatuagem com seu nome.
A maioria dos relatórios de ocorrências publicados pelo jornal traz casos que envolvem crianças: 1.086 dos incidentes registrados no centro, o equivalente a 51,3% do total de informações contidas nos documentos vazados. As crianças compõem 18% da população do local, que atualmente abriga 442 refugiados, de acordo com o censo de junho de 2016 do Departamento de Imigração e Proteção de Fronteiras da Austrália.
O país se utiliza de ilhas do Pacífico para deter seus refugiados enquanto processa pedidos de asilo desde 2001. Desde então, organizações de direitos humanos vêm pedindo que o governo australiano pare com a prática.
“Os documentos vazados são consistentes com as preocupações contínuas do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) em relação à saúde mental e às condições em geral em que vivem os refugiados em Nauru”, disse o órgão da ONU ao Guardian.
Um grupo de ex-funcionários da ONG Save the Children divulgou um comunicado dizendo que os relatórios vazados são apenas “a ponta do iceberg”.
Em entrevista ao veículo britânico, o psiquiatra Peter Young, que cuidou de refugiados do centro, descreveu o local como “inerentemente tóxico” e que o Departamento de Imigração australiano causava danos deliberados aos detentos em um processo que “se assemelhava a tortura”.
Em resposta ao conteúdo dos documentos, o governo australiano afirmou que são “alegações não confirmadas ou declarações não corroboradas”.
“Os documentos publicados hoje são prova de um rigoroso procedimento de registro [de incidentes] no centro — procedimentos em que qualquer incidente deve ser registrado e investigado no que for necessário. Muitos dos incidentes refletem alegações não confirmadas ou depoimentos não corroborados”, afirmou o Departamento de Imigração e Proteção de Fronteiras por meio de comunicado oficial.
“O Departamento está examinando o conteúdo publicado hoje para garantir que todos eles tenham sido registrados adequadamente pelos responsáveis, de maneira consistente com as políticas e procedimentos que dizem respeito a esses conteúdos”, acrescentou o órgão.
Austrália, refugiados e centros de detenção em ilhas do Pacífico
A Austrália deu início a sua política de deter refugiados e imigrantes ilegais em ilhas do Pacífico em 2001. O objetivo era desencorajar pessoas que chegassem pelo mar a pedirem asilo no país.
A prática, no entanto, foi caindo em desuso até que, em 2007, praticamente todos os detentos dos centros, localizados no país insular de Nauru e na ilha de Manus, do arquipélago de Papua Nova Guiné, foram admitidos na Austrália.
Os centros voltaram a ser utilizados em 2012, quando o país aprovou uma lei que autorizou a criação de prisões nas ilhas para estrangeiros em situação irregular, o que inclui refugiados, até que a Austrália processe os respectivos pedidos de asilo. Em troca de manter essas prisões, Nauru e Papua Nova Guiné recebem auxílio financeiro da Austrália — que gasta um total de 1,24 bilhões dólares australianos (quase R$ 3 bilhões) por ano somente nisso.
A legislação determina que aqueles que chegarem à Austrália pelo mar nunca poderão se estabelecer no país e devem ser enviados imediatamente para algum dos centros de processamento. Mesmo que seus pedidos de refúgio sejam aceitos, só poderão permanecer no país provisoriamente — cinco anos é o máximo.
O último censo do Departamento de Imigração australiano, realizado em junho deste ano, registrou um total de 442 refugiados vivendo em Nauru, dos quais 49 são crianças e 55 mulheres. Em Manus estão detidos 854 refugiados, todos homens.
Desde que a nova lei entrou em vigor, em agosto de 2012, jornalistas estrangeiros são impedidos de entrar nas ilhas. Somente o pedido de visto de imprensa para esses lugares custa oito mil dólares australianos (aproximadamente R$ 19,2 mil), segundo o Guardian.
As informações do que se passa em Nauru e em Manus vazam por meio de funcionários e dos próprios refugiados, que, apesar do forte monitoramento, conseguem enviar e-mails com mensagens e até vídeos.
Para evitar isso, o governo da Austrália aprovou uma emenda que determina até dois anos de prisão para qualquer funcionário que fale publicamente sobre as condições dos centros.
Edição: ---