As políticas de acesso ao ensino formal desenvolvidas ao longo dos últimos anos no Brasil trouxeram novos desafios no campo da Educação, como a garantia de perfis mais diversos entre as pessoas que acessam essas oportunidades. Na avaliação da ex-ministra de Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos do governo Dilma Rousseff, Nilma Lino Gomes, esse processo, que avançava na perspectiva da universalização do acesso e na luta pela permanência desses estudantes nas escolas e universidades públicas, está agora ameaçado diante das propostas do governo interino de Michel Temer.
Nilma participou, em Curitiba, de debate sobre Igualdade de Direitos e Educação, que também teve a presença da professora Maria Rita Cesar e da estudante de psicologia Nyg Kuitá Kaingang, ambas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). O diálogo foi mediado pelo professor Luis Allan Künzle durante o Circo da Democracia, evento que ocorre desde sexta-feira (5), shows, intervenções culturais e debates contra o golpe no país, na Praça Santos Andrade, no Centro da capital paranaense.
A análise dos avanços obtidos por meio das políticas públicas de inclusão durante os governos do PT e a preocupação pelos retrocessos que estão em curso, como os projetos de lei inspirados no movimento “Escola Sem Partido”, foram destacadas durante a conversa. As falas de Nilma, Maria Rita e Nyg, evidenciaram, contudo, que a investida conservadora terá resistência dos sujeitos e coletivos em defesa do direito à diversidade dentro das instituições de ensino.
Direito à diversidade
“O grande avanço na relação entre igualdade de direito e educação conquistado nos últimos anos é o reconhecimento da diversidade como um direito. Antes havia uma separação, como se o direito à educação se resumisse ao financiamento. A grande inflexão trazida pelos sujeitos e coletivos diversos foi o entendimento de que o direito à diversidade faz parte da educação ou que o direito à educação não se realiza sem diversidade”, afirmou Nilma Lino Gomes.
Para a ex-ministra, esse respeito à diversidade que foi conquistado, mesmo que ainda pouco se comparado ao que o campo progressista deseja, só foi possível devido à presença dos negros, dos índios, das pessoas LBGT e das mulheres dentro das instituições educacionais. “Esses sujeitos vêm com corpo e alma e tensionam a gestão para que a educação seja ofertada de maneira coerente com o que eles representam. Por isso, não se pode ter um currículo amordaçado como quer o 'Escola Sem Partido'”, reforçou Nilma.
Uma dessas pessoas que entraram de corpo e alma nos espaços de ensino para transformá-los é Nyg Kuitá Kaingang. “Nós, povos indígenas, sofremos desde a chegada dos invasores e ainda não conhecemos o que é democracia, mas lutamos ao lado dos companheiros, pensando no futuro das crianças que vem aí. Eu, indígena, não tenho como pautar a educação sem pautar a territorialidade, que é a nossa forma de viver e pensar. Precisamos discutir território, inclusive nas escolas”, afirmou a estudante.
Reconhecer os avanços
Segundo a ex-ministra, a investida conservadora no campo da educação se coloca contra às conquistas dos últimos anos, que ela identifica em quatro eixos: o fato de a escola ter se tornado mais pública devido às políticas de inclusão; a participação social para pensar os rumos da educação; a questão do financiamento que possibilitou, entre outros, a abertura de novas vagas no ensino superior e a criação do Fundo Nacional da Educação Básica (Fundeb); e ainda a visibilidade dos novos sujeitos que entraram nas instituições de ensino.
“Isso [a presença de novos atores] mexe com o saber científico, mexe com a formação de professores, mexe com a licenciatura, a pedagogia e as outras áreas de conhecimento também são indagadas. Sei que tivemos problemas e que ainda faltou avançar, mas quero me ater a uma fala afirmativa de olhar para trás, ver e reconhecer nossas conquistas”, disse Nilma.
“O gênero do golpe e o golpe no gênero”
Maria Rita Cesar apresentou o que ela chama “de o gênero do golpe e o golpe no gênero”. Para a professora, o gênero do golpe ficou estampado na foto que o presidente interino Michel Temer tirou ao lado de outros homens de terno e gravata ao assumir o governo. “Muito interessante se compararmos com a foto de posse da presidente afastada Dilma Rousseff”, apontou. Segundo ela, o atual governo colocou “homens de ética duvidosa nas estruturas governamentais e que buscam produzir racismo, machismo e LGBTfobia de Estado”.
O golpe no gênero, por sua vez, extinguiu o Ministério de Mulheres, de Igualdade Racial e de Direitos Humanos e tem provocado inúmeros ataques à diversidade, como os projetos de lei inspirados no movimento “Escola Sem Partido”. “Há um conjunto muito conservador de ações do Executivo e de projetos de lei que colocam em risco uma série de conquistas que tivemos nos últimos anos. São perspectiva muito distintas das políticas de inclusão”, opinou.
Maria Rita destacou um parágrafo do projeto de lei federal inspirado no Projeto “Escola Sem Partido” que evidencia o entendimento de que o sexo é um dado biológico e de que a “ideologia de gênero” não estaria em conformidade com essa ideia.
O parágrafo a que a professora se referiu diz: “O Poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer ou direcionar o natural desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da ideologia de gênero”.
Segundo Maria Rita, do ponto de vista do Legislativo, a igualdade de gênero e a racial são alvos de ataques há muito tempo. Ela citou as derrotas nos casos do “kit gay” e da perspectiva de gênero nos planos nacionais, estaduais e municipais de Educação. “A resposta da bancada conservadora do Congresso, em defesa do que eles entendem como família, se concretiza agora no 'Escola Sem Partido' que pretende alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, avaliou.
Enfrentamento
“Quando falamos de educação escolar estamos falando do processo educacional do cotidiano. Esse processo que vivemos hoje no Brasil, de ameaça à democracia, é um processo de reeducação, de entendimento de muitas questões. Mas esse processo pode tanto educar como deseducar. Uma ‘escola sem partido’ deseduca”, afirmou Nilma. Ela ainda chamou a atenção para o fato de que “uma boa forma golpista de matar uma política é matá-la por inanição. Por isso, não sejamos ingênuos. Já sabemos algumas das estratégias desse avanço conservador, temos que nos organizar”.
Maria Rita também chamou a plateia para a necessidade de organização: “Certamente não vamos nos intimidar, vamos continuar trabalhando e militando a favor da igualdade de gênero, pelo acesso e permanência da população LGBT, índia e negra dentro das escolas. Não vamos parar, pois somos fortes e somos muitas e muitos”.
Edição: Camila Maciel
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