“Nasci na lona, vivi na lona e vou morrer na lona”. Não, a afirmação não é de um campesino na luta pela terra, mas de um artista que resiste para manter vivo o circo tradicional. André Luis, seu autor, pertence a uma das cinco gerações de Zanchettinis que, há mais de 80 anos, correm chão e vencem distâncias levando sobressaltos, risadas e cultura aos mais improváveis rincões do Brasil e além.
Como ele, dezenas de homens e mulheres fazem de escritório o picadeiro e têm por paradeiro a estrada. “Estamos sempre nela. Nossa casa é o circo.” Nessas palavras de Bruno Henrique Zanchettini, uma só tristeza: “É que fazemos amigos e temos que partir”. Se a companhia já atravessou mais de uma vez a Ponte da Amizade, não são todas as amizades que atravessam a ponte da despedida.
De vez em quando, o adeus se converte em boas-vindas e algum novo afeto se soma à família. É o caso de Anaíse Zanchettini, “a moça da cidade que se apaixonou pelo trapezista e fugiu com o circo”. Sua paixão só fez crescer, mas a hoje Palhaça Magali relata também os duros bastidores do cotidiano circense: “É uma vida difícil, porque ainda há muito preconceito. Se me perguntam, eu sou palhaça de profissão. Com muito orgulho! É uma das profissões mais lindas e dignas, fazer as pessoas rirem.”
Mas, no intervalo dos risos, o estigma cerca a vida no circo, chegando até às escolas, onde não faltam situações de discriminação entre colegas e mesmo por parte dos professores. Mais doloroso, contudo, certamente seria desistir: “sair é ser um peixe fora d’água”, confessa Márcio Zanchettini.
Nem tudo são cores. “Você tem que ser forte para ser circense. Sofremos muitas represálias e abalos nacionalmente. A perseguição das ONGs protetoras dos animais chegou até nós”, conta Erimeide Zanchettini. Uma gama de ações judiciais e projetos de lei tratam da regularização do trabalho com os animais, porém os direitos do povo de circo continuam numa espécie de limbo.
Nesse sentido, armar o Circo da Democracia nunca foi tão providencial: “Como o circo é o berço das artes, ele tem também esse papel”, reforça Erimeide, em relação à urgência de se debaterem também as necessidades e especificidades de uma tradição milenar. À sua luta aderiu até a princesa de Mônaco, num movimento que ganhou expressão internacional.
Dentro do país, reivindica-se maior reconhecimento do estado e políticas de cultura. “Não é dinheiro o que queremos e sim apoio para levar nosso circo itinerante de lugar em lugar”, declara Silvio Marcos Zanchettini, também conhecido como Palhaço Ligeirinho. São altos os custos de manutenção da estrutura e enorme a burocracia para seu funcionamento. Alvarás, vistorias, taxas e impostos são dificuldades que tornam “cada cidade um novo desafio e uma conquista”.
A especulação imobiliária também aqui montou seu cerco: o preço dos aluguéis dos terrenos – não raro esperando para serem capinados à foice – é outro obstáculo a se enfrentar. Mas afinal, “o circo sobrevive pelo público”, como reforça Silvio. Não apenas pelo público enquanto plateia. Fundamentalmente, por um espírito de compartilhamento, um sentido de comunidade e de igualdade que o move, tanto literal como figurativamente.
“Quem nos critica não sabe o que é o circo. Senão, jamais agrediriam uma arte humilde e nobre. Por onde artistas de circo andam no mundo, a humildade segue junto. Porque chama e acolhe a todos, do mendigo ao Papa”, confirma Erimeire.
Foice e lona, portanto, não são somente símbolos das lutas do campo, mas do povo de circo no seu papel de guardião de um inestimável patrimônio cultural. A tradição aprendida, quase um século atrás, com os irmãos ciganos Marques, pulsa no sangue e na veia (artística) de toda a família. E seu nomadismo poético revela-se um modo de vida político.
Aos trancos e solavancos dos caminhos, a lição dos Zanchettini a todo o “respeitável público” é a de pautar sua própria existência na causa em que acreditam. Uma luta, sim - e ao contrário do que teime o senso comum - por uma sociedade com mais pão, mais circo e mais democracia.
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