Apesar da atenção positiva conquistada pela seleção feminina brasileira de futebol durante os Jogos Olímpicos Rio 2016, não será possível acompanhar os jogos da Copa do Brasil feminina, que teve início nesta semana, uma vez que eles não serão televisionados.
De acordo com a tabela de jogos divulgada, nem mesmo a pública TV Brasil e o canal a cabo SporTV, emissoras tradicionalmente encarregadas da transmissão do Brasileirão feminino, exibirão as partidas da primeira rodada desta edição do campeonato.
A maioria das partidas de futebol feminino no país era transmitida pela emissora pública, que passa por cortes de recursos por consequência de medidas tomadas pelo governo interino de Michel Temer.
A negligência da mídia com o evento acontece em paralelo ao anúncio da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) sobre a potencial extinção da seleção permanente de futebol feminino, justificada pelo quarto lugar nas Olimpíadas, considerado negativo pela entidade. Isso porque a seleção permanente foi um projeto criado em 2015 pela própria CBF para treinar futebolistas exclusivamente para a seleção, tendo como um dos objetivos a conquista do ouro na Rio 2016.
Proibição às mulheres
A luta pelo reconhecimento do futebol feminino é internacional e de longa data. No Brasil, o esporte foi proibido por mais de quarenta anos, de 1941 a 1979, sob justificativa de que não era "apropriado" para a "natureza feminina". O decreto de lei que proibia a prática foi instituído no Estado Novo por Getúlio Vargas. A medida foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Desporto (CND), em 1965, durante a ditadura militar, quando a proibição do futebol, futsal e outros esportes às mulheres se tornou explícita.
O decreto impossibilitou o desenvolvimento da modalidade por todo o país. Em uma época em que o futebol masculino já havia sido tricampeão mundial em Copas do Mundo, as mulheres ainda eram proibidas de praticar o esporte. O fim da medida veio em 1979, e a regulamentação do esporte somente em 1983, quando foram criados alguns clubes pequenos e campeonatos.
Somente em 1991 foi realizada a primeira Copa do Mundo de futebol feminino, organizada pela Federação Internacional de Futebol (Fifa), e até agora só ocorreram sete edições do campeonato mundial. Já a Copa do Brasil de Futebol Feminino está em sua nona edição, com participação de 32 equipes.
O preconceito e a falta de incentivo dispensados ao futebol feminino no Brasil ainda é grande e foram apontados por Marta, capitã da seleção brasileira e eleita cinco vezes melhor futebolista do mundo, em seu discurso após a derrota nesta semifinal olímpica. Na fala, Marta pediu para o povo não deixar de apoiar o futebol feminino e completou dizendo que o time "precisa muito" dos torcedores.
Por ironia, a própria atacante já afirmou, em diversas entrevistas, que decidiu se tornar jogadora profissional de futebol após assistir a uma partida da modalidade feminina na televisão.
Memória
Com o objetivo de estabelecer uma memória acerca da história e atualidade do futebol feminino, o Museu do Futebol, em São Paulo, organizou uma grande exposição chamada "Visibilidade para o Futebol Feminino", que entrou para o acervo permanente da instituição em maio de 2015.
Com curadoria das próprias atletas, árbitras, pesquisadoras e jornalistas do campo, o museu estabeleceu um grande arquivo, também disponível online, sobre a história do futebol feminino no país.
Segundo a pesquisadora do Museu do Futebol, Aira Bonfim, o projeto também foi uma espécie de retratação do museu, que antes não dava qualquer destaque ao futebol feminino.
"A exposição foi uma demanda que surgiu do público que gosta da modalidade feminina, um público formado também por jogadoras que, de certa forma, entravam no Museu e não se reconheciam. O projeto antecedeu o Mundial de 2015, em sequência da Copa do Mundo masculina, e a surpresa é que ninguém sabia que teria uma Copa feminina, ninguém conhecia a seleção. Reconhecemos que essa memória não estava representada no Museu e foi muito grave", confessou a pesquisadora.
Entretanto, a conscientização do público para a modalidade é um processo mais difícil, aponta Aira. "Tem continuidade com os educadores, que têm que lidar com o preconceito aculturado nas crianças e adolescentes, principalmente, e transformá-lo em reflexões. Mas já tivemos devolutivas de atletas que voltaram para o Museu e se reconheceram lá. Conseguimos produzir vários vídeos com depoimentos de ex-jogadoras e, hoje, nos orgulhamos de ter o maior acervo sobre a modalidade no Brasil. Acho que conseguimos reaver essa história que havia sido esquecida, ou nem esquecida, porque não a conhecíamos. Temos muito orgulho de ter aberto as portas do Museu para esses temas que acabam ficando na periferia da memória", afirmou.
Negligência
Na opinião da pesquisadora, a negligência da mídia com a participação das mulheres no futebol é uma causa histórica da falta de apoio da modalidade. "Nas décadas de 20 e 30, a gente já tinha alguns indícios de mulheres praticando o esporte, mas encontrávamos vestígios dessas mulheres somente em publicações policiais, notícias de times que tinham suas ligas desfeitas, campeonatos cancelados, viagens interrompidas. Recorrentes matérias desestimulavam a participação de mulheres nesse esporte. Hoje você ouve os mesmos discursos modificados, modernizados", apontou.
Para Aira, a maior gravidade da falta de transmissão do Brasileirão feminino é o fato da TV Brasil não apoiar o campeonato: "Isso vem acontecendo cada vez mais e faz com que as mulheres e meninas se distanciem dessa prática, não entendendo que ali é um espaço também feito para elas. A própria transmissão do futebol masculino, como estamos acostumados, é feita e falada para homens".
Em relação ao saldo das Olimpíadas, Aira acredita que, mesmo com a derrota, foi muito positivo, por ter aproximado a seleção feminina do público. "Em duas semanas muita gente conheceu as representantes da seleção, com nomes e posições. Até isso é inédito. Elas acabaram pegando o embalo de um movimento feminista muito forte, que está pulsante desde 2015. Mas de quatro em quatro anos elas são lembradas e esquecidas”, avaliou.
“O comentário da Marta na semifinal foi muito pertinente, inclusive, ela deveria se expor mais sobre o cenário do futebol, sendo a maior representante da modalidade. É muito importante quando as jogadoras assumem essa luta, e não é sempre que o fazem, para que outras jogadoras e meninas se espelhem e vejam o futebol como uma possibilidade lúdica e profissional. O cenário é sim ainda muito machista, mas a gente vê algumas modificações, grupos e coletivos lutando para desconstruir isso, tanto no âmbito mercadológico dos contratos, como entre os próprios torcedores", analisou a pesquisadora.
A ex-zagueira da seleção brasileira Aline Pellegrino é um exemplo de futebolista que luta pela maior visibilidade da modalidade feminina. Capitã do time que levou a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, ela afirma que o incentivo ao futebol feminino tem melhorado nos últimos anos.
"Até alguns anos atrás era quase impossível, por exemplo, conseguir ter acesso a informações sobre futebol feminino no Brasil. Com a internet e redes sociais isso mudou bastante. Ainda há muito o que avançar, mas temos mais visibilidade e um apelo maior dos próprios clubes e federações", disse a ex-futebolista.
Aline assumiu o comando do novo Departamento de Futebol Feminino da Federação Paulista de Futebol, criado em julho deste ano, com o objetivo de dar mais visibilidade e condições para os clubes e as atletas do Paulistão Feminino, além de aprimorar o calendário e buscar novas ideias.
"Obviamente, quanto maior a quantidade de transmissões de jogos e produção de conteúdo relacionado ao futebol feminino, melhor. Mas entendo que estamos no caminho para ampliar essa visibilidade. Esse discurso de 'mais apoio' sempre vai caber e estar presente em qualquer situação positiva ou negativa da modalidade, mas acredito que o cenário ideal é ela conseguir andar com as próprias pernas, precisamos buscar nossa identidade", afirmou.
Seleção permanente
A discussão sobre os benefícios da seleção permanente de futebol feminina divide a opinião das especialistas e atletas. Na visão de Aira, o projeto, a médio prazo, é paliativo, tendo um claro objetivo de criar uma seleção que representasse o futebol brasileiro nos grandes campeonatos que ocorreram nos últimos anos.
"Esse projeto tinha sua extinção premeditada. Então, na verdade, é uma seleção permanente que atua como uma espécie de clube para dar respaldo aos megaeventos. Os clubes de futebol feminino que devem ser aportados a partir de então, pensando que parte das jogadoras da seleção permanente já atuam no exterior e conseguem dar uma manutenção para suas estruturas, e que os clubes que se dedicaram e financiaram um projeto de futebol feminino nos últimos anos foram os mais prejudicados com a criação da seleção permanente, tendo suas melhores jogadoras retiradas dos grupos", explicou.
A opinião de Aira é complementada por Aline, que acredita que, mais importante do que discutir a seleção permanente, é falar sobre as condições para os clubes no dia-a-dia, "e não apenas a cada quatro anos em ciclos olímpicos ou Copa do Mundo". "Os clubes formam a base para uma seleção forte. Sem competições de alto nível e um calendário adequado, o desempenho das atletas se reflete também na seleção brasileira".
Em relação à justificativa da derrota olímpica para extinção da seleção permanente, ambas acreditam que a conquista de uma medalha de ouro não traria grandes mudanças. "É ingenuidade pensar que a medalha de ouro desmistificaria essa modalidade, diminuiria o preconceito e machismo sobre o futebol feminino", afirmou Aira.
Já Aline destaca que os principais resultados da Seleção Brasileira Feminina vieram de um cenário não ideal, do ponto de vista financeiro, "e nem por isso os resultados deixaram de vir. Amanhã podemos ter um cenário financeiro próximo do ideal e os resultados podem não vir. O que estamos buscando de fato? Acredito que é um processo com início, meio e fim, que passa por desenvolvimento de modalidade, visibilidade, criar o hábito, atrair os patrocinadores etc", concluiu.
Questionada pela reportagem, a CBF não se pronunciou sobre a extinção da seleção permanente até a publicação da reportagem.
Edição: Vivian Fernandes
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