Acabo de receber a notícia, tardiamente aliás. Corro para a estante e recolho todos os livros com seu nome gravado no frontispício. Quero saber se cheguei perto de suas obras completas. Confesso, tenho especial mania por obras completas. São exatamente 21 livros (incluindo uma tetralogia). Busco a informação de quantos foram os livros ao todo: números desencontrados, trinta, quarenta obras. Tento lembrar de cabeça mais umas quantas coletâneas de que participou. Desisto dos números.
Passo os olhos por sobre as capas, todas originais. Procuro me concentrar e pensar, pela primeira vez, sobre qual delas me marcou mais. Chego à surpreendente conclusão, para mim mesmo: “Manifesto do povo”, primeiro volume de uma série que não conheceu vida pública para além de o número um.
O “Manifesto”, título ousado e aparentado de tantos congêneres, é um texto eminentemente político. Fala de história, religião, pensamento, cultura e educação, a partir da voz de um anarquista. Sempre o imaginei miticamente, nesse sentido. Um alternativo, intelectual do povo do mar, pensador no isolamento, comunitário do desencaixe e caiçara da filosofia. Autenticamente anarquista, portanto.
Romancista, contista, dramaturgo, ator, jornalista, editor, desportista, marinheiro, pescador, cooperativista e até bacharel em direito. Fincou seu nome definitivamente na literatura brasileira com a tetralogia “Os vivos e os mortos” (ganhou até uma dissertação de mestrado estudando-a; o pesquisador: Cristóvão Tezza). Duas verdades o acompanham: grande literato; sobejamente desconhecido nas terras de Leminski, Trevisan e Kolody.
Surpreendi-me ao me dar conta de que meu título preferido era um ensaio político-filosófico, e não seus incríveis romances e contos: a tetralogia, “A revolução dos homens”, “No mar das vítimas”, “O ato e as origens”, “O sentido dos ventos”, “O menino e o presidente”...
O “Manifesto” é dedicado ao mestre Povo e começa assim: “no princípio, a humanidade era somente Povo”. É um libelo bucólico, crítico da vida metropolitana e da modernidade em geral; defensor da cultura popular como “ato e expressão da prática existencial que decorre da conjunção homem-natureza e do tipo específico de trabalho braçal com instrumentos limitados, rústicos, bem como da produção extraída da terra, do mar, da criação, do artesanato”, logo crítico da aristocratização, da elitização e da exploração da vida, que a seu sentir tem o nome de cidade – “a origem direta da cultura urbana é o mercado”.
Como bom anarquista, critica Marx (por preterir o Povo); mas também o reconhece como o vetor de uma “síntese profunda, a luta contra a exploração”. Filósofo rústico – no melhor e mais popular sentido da palavra – o autor do “Manifesto do povo” me inspirou em vários momentos, em especial quando o conheci por intermédio de seus livros. Apesar de não me considerar anarquista, logo mais marxista, acredito que a síntese popular continua sendo possível.
Li seus textos nos tempos da faculdade. Ele, como eu (que pretensão!), fora um inadequado estudante de direito. Diferentemente de mim, porém, de família aristocrática. Logo após se formar flerta com o esporte (até jogador de futebol fora), mas seu mais arrojado namoro, em verdade, dera-se com o mar. Tornou-se marinheiro, deu a volta ao mundo e retornou ao litoral do Paraná, onde desenvolveu toda sua criatividade. Vale a pena a leitura do “Ensaio da paixão”, para desenhar no espírito uma possível aproximação com este tempo de companhia de teatro amador e encenação contínua de autos cristãos.
Eu também me fui, muito mais modestamente é evidente, para o litoral. Enquanto cursava o mestrado em Florianópolis, debatia-me com a fixação por entrevistá-lo, afinal de contas descobri que ele residia na Palhoça, logo ali, no litoral catarinense. Com João Francisco Kleba Lisboa, idealizamos um projeto de aproximação e abordagem, que chegava ao ponto de se propor audiovisualmente documental. Nunca saiu do papel.
Meia década depois, soube que continuava vivinho da silva. No auge de seus noventa anos de idade. Iria fazer uma aparição pública inusual: distribuir quatro centenas dentre seus livros para os que quisessem lê-lo. No Museu Guido Viaro, em Curitiba, tive enfim a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente (para além de seus livros e entrevistas em jornais) – uma quinta-feira, 16 de abril (duas semanas antes do trágico dia 29 de abril de 2015, marcado por uma batalha campal na praça do Centro Cívico, em que professores foram covardemente agredidos pelo governo estadual – tenho certeza de que ele, um educador do Povo, se horrorizou com o acontecido). Guardei o registro do encontro: alguns exemplares gratuitos de seus livros e mais de uma foto ao seu lado, enquanto autografava, com digital e rubrica, dois volumes de suas obras para mim – “O povo do mar e dos ventos antigos” (primeiro tomo da tetralogia “Os vivos e os mortos”) e “O homem novo”, livro já da década de 2010.
Minha homenagem é para Wilson Galvão do Rio Apa, que desencarna em uma madrugada de 7 de setembro, deixando seus ensinamentos, de intelectual popular, cheio de potencialidades e contradições. Não encontro outra forma de me despedir, senão recordando da introdução de seu “Manifesto do povo”, em que se lê: “toda idéia é experiência e objetivo, tentativa de imposição que só se consolida ao radicalizar-se na ação”. Rio Apa impôs-se à cultura brasileira, mesmo que esta ainda não se tenha dado conta, por ter vivido uma vida radicalizada, alternativa, literária, popular.
*Ricardo Prestes Pazello é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), secretário-geral do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e militante da Consulta Popular.
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