Uma polêmica envolvendo os movimentos da causa agrária e o Tribunal de Contas da União (TCU) vem afetando a vida de milhares de famílias de todas as regiões do país que haviam sido beneficiadas pela reforma agrária. O motivo é o Acórdão 775/2016, publicado pelo TCU em abril, que torna irregular o cadastro de 578 mil pessoas já assentadas.
O documento trata de uma medida cautelar que suspende a concessão de benefícios da reforma agrária para as referidas famílias, após um processo de cruzamento de dados dos beneficiários.
De acordo com o Tribunal, o levantamento apontou que haveria indícios de irregularidades na seleção dos candidatos ao Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), o que resultaria, ainda segundo o órgão, num cenário de prejuízos financeiros da ordem de R$ 2,8 bilhões para os cofres públicos.
Entre os motivos apontados para a irregularidade, o TCU argumenta que não estão aptos a concorrer aos lotes os candidatos com os seguintes perfis: proprietários com área maior do que um módulo rural; aposentados por invalidez; portadores de deficiência física ou mental; titulares de mandatos eletivos; pessoas com idade inferior a 18 ou maior que 60; pessoas com renda superior a três salários; pessoas cujo lote recebido fica em local diferente do de residência; servidores públicos, entre outros.
Após a publicação do acórdão, as famílias que foram consideradas irregulares estão impedidas de acessar as políticas públicas agrárias, como a aposentadoria rural, a assistência técnica e o Plano Safra. Além disso, a medida suspendeu os processos de seleção de novos beneficiários para o programa e o assentamento de novas pessoas.
“Eles pararam a reforma agrária por conta desse acórdão. (...) Os técnicos do TCU não conhecem a fundo essa questão e aí o Tribunal toma uma decisão que simplesmente paralisa a economia rural. Em muitas regiões, estamos perdendo o ano agrícola por causa dessa medida dramática”, disse Alexandre Conceição, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).
A novidade pegou de surpresa o agricultor João Luís Vieira de Sousa, que vive num assentamento em Teresina, no Piauí. Assentado pela reforma agrária desde 2006, ele não só questiona os critérios utilizados pelo Tribunal como afirma que foi vítima de um engano.
“Eles bloquearam meu cadastro dizendo que minha companheira tem menos de 17 anos, mas, na verdade, ela tem 27. O TCU alega também que ela é assistente administrativa, mas ela nunca teve vínculo empregatício em lugar nenhum e eu não faço ideia de onde eles tiraram isso. Ela é assentada e filha de assentados. (...) Outra coisa que eles disseram é que ela não mora aqui no local do assentamento, mas isso é porque eu morei quase três anos em Brasília uns anos atrás, atuando na luta agrária, e uma vez ela foi passar um tempo comigo, aí um dia precisou de atendimento médico e nós tivemos que tirar um cartão do SUS pra ela. Por conta desse cartão que foi tirado em Brasília, o TCU alega que ela não mora aqui no Piauí”, relata o agricultor, que se diz preocupado com a situação das mais de 10 mil famílias que também estão passando pelo mesmo problema no estado.
“Tenho em média 22 mil kg de macaxeira pra colher na roça e estou impossibilitado porque, como o TCU bloqueou meu cadastro, não posso nem vender os produtos”, desabafa o agricultor, que tem 40 anos e sempre viveu da roça e da pesca.
Desdobramentos
A situação provocou uma reação por parte do Núcleo Agrário do Partido dos Trabalhadores (PT) na Câmara Federal, que oficiou o Ministério Público Federal (MPF) no último dia 26, pedindo providências por parte da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF).
“Esta é a primeira vez que vejo um trabalho do TCU tão mal amparado em termos de metodologia. Se olharmos para os critérios que eles apontaram, é como se o Tribunal estivesse dizendo que assentado não pode, por exemplo, ter vida política, já que não pode se eleger, não pode progredir social nem economicamente, entre outras coisas, senão deixa de ser beneficiário da reforma agrária. (...) Essa é uma visão conservadora, liberal, além de ser um descalabro e um excesso de poder por parte do TCU”, classificou João Marcelo Intini, que atua na assessoria do Núcleo.
Como resposta à iniciativa do Núcleo, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat solicitou ao procurador-geral de Justiça, Rodrigo Janot, que ingresse junto ao Supremo com um pedido de inconstitucionalidade do acórdão.
Entre outras coisas, ela reforça que as conclusões do TCU que resultaram na edição do acórdão provêm somente de cruzamento de dados, sem a realização de trabalho de campo e sem o contato prévio com os beneficiários.
“Trata-se de meros 'indícios de irregularidade', contestados, em sua grande maioria, pelo próprio Incra, que critica a metodologia utilizada e, especialmente, a interpretação conferida à legislação de regência da reforma agrária”, diz a procuradora.
O pedido foi encaminhado na última terça-feira (6) e o procurador-geral ainda não se manifestou.
TCU
O Brasil de Fato procurou o TCU para tratar do assunto. Em nota, a instituição afirmou que o acórdão resulta da falta de evolução do Incra na melhoria dos controles internos relacionados ao PNRA.
“No entanto, no mesmo Acórdão (item 9.4), o TCU autorizou o Incra a restabelecer os processos de pagamentos de créditos da reforma agrária e de remissão dos referidos créditos, na forma da Lei, bem como o acesso a outros benefícios e políticas públicas concedidos em função do PNRA aos beneficiários com indícios de irregularidades apontados, na hipótese de comprovação espontânea, por parte do beneficiário, mediante documentação idônea e verificação por parte do Incra. Assim, cabe àquela autarquia tomar as medidas administrativas cabíveis para regularização e retomada do PNRA”, diz a nota.
Incra
O Brasil de Fato também procurou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para tratar do assunto. A instituição informou que tem realizado reuniões com a Casa Civil e o TCU, no intuito de resolver o impasse e restabelecer o acesso das famílias às políticas públicas do Plano Nacional de Reforma Agrária.
Edição: Camila Rodrigues da Silva
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