O ar na França está envenenado. O país que persegue mulheres muçulmanas de burquíni nas praias – em alguns casos obrigando-as a despirem parte de suas roupas diante dos filhos – joga areia em qualquer projeto de reconciliação e de integração de suas minorias. As tentativas de autoridades de cidades costeiras da França de determinar a vestimenta de mulheres muçulmanas nas praias estão embrulhadas no contexto histórico da dominação da França em suas ex-colônias: o desvelamento das mulheres muçulmanas era uma “tarefa” à qual as autoridades francesas se dedicaram com afinco no Norte da África.
Há 57 anos, Frantz Fanon (1925-1961), psiquiatra, filósofo e militante do movimento de libertação argelina, explicou isso no texto “Argélia Desvelada”. Na Argélia, dominada a ferro e fogo de 1830 até a década de 1960, os colonizadores franceses davam importância primordial às argelinas para alcançar a subjugação do país.
“As forças de ocupação aplicaram atenção psicológica máxima sobre o véu usado pelas mulheres muçulmanas”, escreveu Fanon, que focava seu trabalho na psicopatologia da colonização. A cada mulher desvelada, as autoridades coloniais francesas sentiam-se fortalecidas na sua convicção de que as argelinas apoiavam a dominação ocidental, constatou o pensador martinicano que viveu e trabalhou na Argélia.
Frantz Fanon é um dos autores preferidos do físico franco-argelino Adlène Hicheur. O cientista vive hoje na cidade de Vienne, próxima a Lion, no sudeste da França. Lá, a 9 mil quilômetros de distância do Rio de Janeiro – onde morou até meados de julho – Hicheur conta que mal consegue respirar. “A atmosfera aqui está muito pesada, tensa”, lamenta.
O professor-visitante da UFRJ não queria estar lá. Foi levado à força pela Polícia Federal de seu apartamento no Rio para o aeroporto internacional no dia 15 de julho, poucos dias antes do início das Olimpíadas, em uma operação que colegas dele compararam aos sequestros da Operação Condor, a colaboração das ditaduras militares do Cone Sul. Hicheur embarcou – também à força – em um avião rumo a Paris, sem poder recorrer da decisão do governo, então interino e hoje efetivo (o que era seu direito). Tudo isso aconteceu sob protestos do reitor da UFRJ, da vice-reitora e dos colegas físicos, que divulgaram uma carta em apoio ao professor com mais de 100 assinaturas, inclusive a do ex-ministro da Ciência e Tecnologia Sergio Rezende.
A ordem de deportação sumária de Hicheur, sem maiores explicações, foi assinada pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. No aeroporto, a PF ignorou os apelos de Hicheur (que tem passaportes francês e argelino e entrou no Brasil com visto concedido neste último). O físico pediu para que respeitassem seu direito de escolher seu destino. Não foi ouvido. Se fosse deportado (mesmo que julgasse a ação injusta e sem motivos), estava decidido a ir para o seu país natal, a Argélia, e não para a França do estado de emergência. Ou então teria decidido ir para o Uruguai, onde tirou o seu visto brasileiro.
Ao desembarcar em território francês, ele foi avisado de que teria sua liberdade restringida na casa de seus pais, em Vienne, uma pequena cidade com cerca de 30 mil habitantes no sudeste da França, e obrigado a comparecer três vezes por dia à delegacia local para assinar um livro de presença. Se no Brasil Hicheur não recebeu explicações, na França tampouco. Uma ação não explicada alimentou a outra do outro lado do Atlântico. O labirinto do absurdo no qual Hicheur foi jogado foi descrito em uma matéria recente publicada pelo site francês Lundimatin, intitulada “Quem quer estar na pele de Adlène Hicheur? Ou a infinita vingança do contraterrorismo”.
“O meu cotidiano é de estresse e de pressão das assinaturas (na delegacia local). Desde 2013, a atmosfera piorou enormemente aqui, é um inferno mesmo. Parece que todo mundo perdeu a esperança”, desabafou ele em um email enviado a alguns de seus colegas no Brasil, quando completou 30 dias como refém na França, como costuma dizer.
O Laboratório de Física de Partículas do Instituto de Física da UFRJ elaborou nesta semana um abaixo-assinado para ser entregue aos ministérios brasileiros da Educação, da Justiça e da Ciência e Tecnologia. O manifesto – assinado por vários físicos destacados na área, brasileiros e europeus – pede apoio a Hicheur e expressa a preocupação com o fato de ele estar sendo impedido de ter uma vida civil mínima em qualquer lugar do mundo. A “deportação” será questionada na Justiça brasileira.
Hicheur vivia desde 2013 no Brasil, onde trabalhou como pesquisador no CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas) e como professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Aqui, tinha esperança de superar o fantasma de sua prisão em 2009 e condenação em 2012, na França, por suposta associação com terrorismo com base em chats na internet.
Depois de dois anos e meio de detenção, ele foi condenado a cinco anos de prisão (sendo que um ano foi suspenso). A acusação baseou-se em alguns emails dizendo que eles foram trocados com um terrorista, mas a identidade do interlocutor nunca foi provada. Hicheur recobrou a liberdade apenas 10 dias depois do anúncio da condenação, feita apenas com base em supostas intenções. O Judiciário francês inventara o crime de “pré-terrorismo”, como sintetizou Carlos Lungarzo, professor aposentado da Unicamp e membro da Anistia Internacional.
A sua libertação, em 2012, deveria ser uma página virada na sua vida. Mas não foi o que aconteceu. No Brasil, em janeiro deste ano, ele foi alvo de uma campanha midiática liderada pela revista Época, que estampou sua foto na capa e o carimbou: “Um terrorista no Brasil”.
O semanário, editado pelas Organizações Globo, requentou uma velha história. Apresentou ao leitor brasileiro o caso já fechado na França como se fosse uma novidade. O interesse desta campanha midiática, como ficou evidente, era o de usar o caso Hicheur como uma desculpa para fortalecer a ideia de que era preciso aprovar a lei antiterrorismo (defendida por um poderoso lobby internacional), o que acabou acontecendo um mês depois.
Seis meses após esta campanha midiática, Hicheur foi deportado para a França. “A situação é muito clara: não tem nada contra mim, seja no Brasil, seja aqui. Não há um argumento racional mínimo a favor da medida de prisão domiciliar, com formato quase-máximo, me bloqueando aqui”, afirmou. Hicheur apelou, mas o Tribunal Administrativo da região [na França], rejeitou seu pedido. “Negaram o direito de me defender ao vivo e a decisão foi tomada na minha ausência!”, protestou. Ele não havia recebido permissão de sair de sua cidade para comparecer ao tribunal.
Cultura de perseguição a longo prazo
Quem não entende o que é a cultura francesa da perseguição ao longo prazo, explica Hicheur, não pode compreender a gravidade da sua situação. “Os Miseráveis” (1862), do escritor francês Victor Hugo, não é somente a história de um policial (Javert) que persegue um pobre e fraco (Jean Valjean) a vida inteira, observa ele. Valjean é um ex-condenado que depois de libertado é rejeitado pela sociedade.
Este clássico da literatura francesa “é também uma representação realista da mentalidade dominante nos órgãos de segurança do Estado francês” e do “ódio profundo, intenso e histérico” existente dentro desses serviços, segundo Hicheur. Hugo contou a história dos miseráveis da França em seu romance-denúncia das injustiças sociais no século 19, mesma época em que a França iniciava a violenta colonização da Argélia (a partir de 1830). “Rios de sangue, aldeias inteiras exterminadas, deportações... As vítimas eram desta vez os miseráveis do exterior”, lembrou o físico, referindo-se à brutalidade francesa em seu país de origem.
Hicheur nasceu em 1976 na cidade de Sétif (famosa por um dos piores massacres da história colonial francesa, que vitimou milhares de argelinos). Ele foi naturalizado na França, onde desembarcou com um ano de idade, junto com sua família.
Adlène Hicheur é um entre os quase cinco milhões de muçulmanos da França, com seus 66 milhões de habitantes. O fato de ser um cientista politizado atrai ainda mais a ira institucional, acredita ele. Além do francês e do árabe, fala também inglês e português. É um devorador de livros, um intelectual com sede inesgotável de conhecimento em todas as áreas. Hicheur cita o próprio Frantz Fanon para explicar sua situação. “Com os intelectuais argelinos a agressão aparece com intensidade total”, afirmava o autor do clássico “Os Condenados da Terra” (1961) sobre os colonizadores franceses que implantaram um sistema baseado na força e no desprezo.
Para o cientista, a pior violência é a institucional, que funciona como uma “máquina de triturar a vítima, a sua vida a sua esperança”.
A guerra dos burquínis
A recente guerra decretada por autoridades francesas contra os burquínis – travada, segundo eles, em nome da “ordem pública” e por “preocupações com a segurança” – desvela o DNA opressivo da política antiterror francesa (cujas origens remontam a meados dos anos 1950).
Os recentes ataques de jihadistas no país (em janeiro e novembro de 2015 e em julho deste ano) acenderam a chama do pavor coletivo. Os franceses – de todas as religiões – estão com medo. Mas a reação da França é álcool na fogueira: castigos coletivos e aleatórios aos muçulmanos enterram a ideia de reconciliação, como apontam relatórios das principais entidades de defesa dos direitos humanos.
A poderosa imagem de quatro policiais franceses obrigando uma mulher muçulmana a despir sua túnica de manga comprida serviu como excelente propaganda para os extremistas islâmicos: facilitou enormemente o trabalho de cooptação de jovens revoltados com a discriminação.
Recentemente um político chegou a sugerir que os muçulmanos na França adotem a “discrição” em público. Os abusos do estado de emergência (decretado após os ataques de novembro de 2015 em Paris e arredores, que mataram 130 pessoas) são denunciados por entidades de defesa dos direitos humanos.
São centenas de prisões domiciliares sem explicação e invasões de residências no meio da noite. As vítimas destes abusos contam que a polícia entra em suas casas, restaurantes e mesquitas, quebram seus pertences e aterrorizam crianças. Muitos têm a sua liberdade de ir e vir restrita ao extremo, o que os impedem de manter empregos. As consequências são desastrosas para as famílias.
Neste ponto, Adlène Hicheur tem sua própria experiência para contar. Ele tem sentido dificuldade de se concentrar sobre qualquer atividade devido à pressão permanente de estar presente nos três horários das assinaturas [na delegacia]: de manhã, de tarde e de noite. “Estou tentando participar de reuniões e discussões virtuais com colegas. Estou tentando progredir nas novas linhas de pesquisa que eu planejei quando estava no Rio, mas as exigências da prisão domiciliar e o estresse desta situação odiosa me impedem de focar”, comentou o físico, que ainda colabora, mesmo de casa, com a UFRJ e com o CERN (Organização Europeia para Pesquisa Nuclear). Mesmo estando no olho do furacão, ele conseguiu enviar, há um mês, um artigo sobre um estudo que fez pela UFRJ em colaboração com o CERN para uma das mais importantes revistas acadêmicas de física do mundo (ilustração do diagrama com a legenda explicativa).
“A exigência de três assinaturas por dia é um assassinato sócio-profissional maquiavélico”, concluiu. “Há casos de famílias inteiras que não tem como se sustentar devido à prisão domiciliar do marido, por exemplo, que perdeu o seu trabalho”, lembrou.
“A França tem a responsabilidade de promover a segurança pública e tentar evitar novos ataques, mas a polícia tem usado os poderes do estado de emergência de uma forma abusiva, discriminatória e injustificada”, diz Izza Leghtas, da Human Rights Watch, entidade que divulgou um sobre o assunto. “Os abusos traumatizam famílias e mancham reputações, fazendo com que se sintam cidadãos de segunda categoria”, completou. As pessoas entrevistadas para a realização deste estudo expressaram um forte sentido de injustiça, abandono, raiva e desconfiança em relação às autoridades francesas. O resultado desta política antiterrorista é a alienação e estigmatização de pessoas que poderiam desempenhar um papel importante de prevenção da radicalização, alertam os especialistas em direitos humanos.
“Tenho lido notícias de casos horríveis de prisão domiciliar. Há o exemplo de uma pessoa cega que recebeu esta punição durante meses. Houve também o caso de outra pessoa cujo endereço de prisão domiciliar não era o da sua casa. Esta pessoa teve que dormir no carro durante meses”, contou Hicheur.
Ele conhece pessoalmente o caso de uma mãe muçulmana que ouviu de responsáveis da escola de suas duas filhas que elas não teriam mais a opção vegetariana na merenda. Os muçulmanos devotos não comem porco e carne que não seja halal (os animais são abatidos de forma específica, como manda a tradição).
“Se uma criança fala algo tido como contrário à cultura dominante, pode ser alvo de um relatório que terá como destino final a polícia, os serviços sociais e serviços do Ministério do Interior. A família desta criança passa a ser vigiada e medidas podem ser tomadas contra ela. Houve vários casos de crianças tiradas à força das famílias e colocadas em centros especializados ou ‘famílias de acolhimento’”, relatou o cientista. O chamado “risco de radicalização”, apontado para justificar estas medidas, é muito vago, segundo Hicheur. “As mães estão quase loucas agora. Você pode ser julgado ‘praticante demais’ e cair no inferno”, contou.
Há muitas famílias que chegaram à conclusão de que não é mais possível viver nesse ambiente e se preparam para uma vida em outro país. Mas na véspera da migração, os serviços pegam os documentos e impedem a saída de algumas delas do território francês, relata ele. “Qual é o objetivo dessa histeria? O meu caso segue esta lógica. Eles dizem: ‘Não queremos que você encontre a felicidade em nenhum lugar do mundo’.”
“Não é a presença da pessoa no território que é um problema, é a pessoa em si que é o objeto da destruição. Aqui o muçulmano não tem sentimentos, sonhos, amores. Ele é tratado como um sub-homem”, protestou, usando o termo que Jean-Paul Sartre empregou no prefácio que escreveu para o livro “Os Condenados da Terra”, de Fanon. Sartre se referia à desumanização do colonizado durante a guerra da Argélia e à criação de um sub-homem pelo sistema colonial.
Iman Amrani, uma jornalista argelina-britânica que vive em Londres, conta que ela é frequentemente lembrada de que o histórico colonial da França na Argélia não é mais relevante e que as coisas evoluíram. “Mas a minha própria experiência me diz o contrário”, conta ela em um artigo publicado pelo jornal britânico The Guardian. Em uma festa em Paris, um rapaz perguntou a ela sua origem. Quando a jornalista respondeu, ele reagiu: “Não se esqueça de que nós fomos os donos de seu país”. Ela ouviu também de uma outra pessoa que se a França não tivesse colonizado a Argélia sua família estaria até hoje sentada no chão e comendo com as mãos.
Adlène Hicheur lembra que a origem das ideologias racistas do colonialismo do século 19 é francesa: o pensamento de Conde de Gobineau (1816-1882) sobre as “desigualdades das raças humanas". Ele foi uma inspiração para os nazistas alemães. Hicheur cita o poeta Aimé Césaire (1913-2008), para exemplificar esta dominação. Em seu “Discours sur le Colonialisme” (1950), Césaire disse: "Estou falando de milhões de homens a quem foram ensinados inteligentemente o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a submissão, o desespero".
Desastre do método francês
O sociólogo e antropólogo Didier Fassin, diretor na Escola dos Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, Paris), explicou em sua obra “La force de l'ordre. Une anthropologie de la police des quartiers” (2011) como ocorre a perseguição das pessoas de origem norte-africana ou árabe pelas forças de segurança da França. “Ele descreveu, já em 2011, as noções de castigo aleatório e punição coletiva aplicados pelo poder francês contra os muçulmanos”, resume Hicheur.
“Etiquetado como ‘cliente’ potencialmente perigoso, ele se torna propriedade da polícia, sujeito ao uso discricionário das práticas coercitivas físicas, sendo preso, algemado e despido”, escreveu Fassin, que procura revelar o viés racista da sociedade e do Estado francês. Ele também é um crítico da lei que implantou o estado de emergência. “As pessoas sob prisão domiciliar raramente sabem por que estão sendo castigadas”, diz o antropólogo. É exatamente o caso de Adlène Hicheur.
As injustiças diárias experimentadas pelas minorias – enquanto a maioria permanece silenciosa – vão dar margem a um crescente ressentimento, explica Fassin. Segundo ele, por décadas a França tem rejeitado os imigrantes e seus filhos, especialmente os que vieram das ex-colônias do Norte da África, discriminados no mercado de trabalho e estigmatizados por políticos. Estes jovens não rejeitam os valores republicanos, mas exigem que esses sejam estendidos a eles, explica o estudioso. Para eles, o Estado é opressor e injusto.
“Na França a gente sobrevive como ‘condenados da Terra’”, lamentou Hicheur. Frantz Fanon disse que cada geração tem a sua missão. Eu pergunto ao físico: “que missão caberia à sua geração?” Ele diz que é difícil responder essa questão no contexto da globalização dos meios da opressão. “Pouca gente entende que estamos num período bem mais violento do que na chamada época da colonização”, afirma. Antigamente, segundo ele, era possível achar um refúgio para viver em paz: “Hoje em dia, o mundo inteiro se tornou um campo de batalha”. O veneno foi globalizado.
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