Uma das mudanças mais interessantes a serem observadas no governo de Michel Temer envolve a atuação do Incra, órgão responsável pela reforma agrária no país. Entre outros fatores, pelo fato de Dilma Rousseff ter feito um trabalho bastante ruim numa área em que o ex-presidente Lula e o próprio PT cultivaram por mais de duas décadas uma de suas principais bases de sustentação no campo social. Embora não tenha sido decisivo para seu destino político, é fato que Dilma perdeu esse capital de apoio. O MST não foi às ruas defender seu mandato de maneira significativa. E, agora, com Temer? Qual será o papel desempenhado pelo Incra?
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária tem como função essencial redistribuir as terras do Brasil, acabando com grandes propriedades de terra improdutivas, dividir essas porções em lotes e entregá-los para famílias que dependem do campo e buscam condições básicas para plantar.
A gerência política dessa área do governo Temer foi entregue, após uma negociação sem contratempos, a Paulo Pereira da Silva, líder há 22 anos ininterruptos da Força Sindical, o segundo maior grupo de sindicatos do país e a principal apoiadora da ascensão de Michel Temer ao poder entre representantes de trabalhadores. Paulinho foi uma das primeiras e principais vozes dentro da Câmara a favor do impeachment de Dilma Rousseff. É ele quem dá o aval para nomeações dentro do órgão – informalmente, claro, seguindo à risca as regras tácitas da política brasileira.
Algumas coisas chamam a atenção para a entrega do Incra para os desígnios de Paulinho da Força, para além da demonstração clara de que o fisiologismo continua imperando. A primeira é que ele é um sindicalista urbano. A segunda é que, em seus três mandatos como deputado federal, Paulinho jamais apresentou um único projeto relacionado ao assunto da reforma agrária. Ele também nunca integrou uma comissão da Câmara que discutisse projetos relativos ao tema, ou apresentou emendas parlamentares para, por exemplo, beneficiar assentamentos rurais.
Apesar dessa distância do tema em sua atuação legislativa, um dos processos aos quais responde na Justiça é justamente por ilegalidades na… reforma agrária. Ele foi condenado em primeira instância pela Justiça Federal por improbidade administrativa por participar, como presidente da Força Sindical, de uma fraude de R$ 3 milhões no Banco da Terra para a compra superavaliada de um terreno inviável para destinação à reforma agrária.
É ele quem apadrinha o novo presidente do Incra, Leonardo Góes Silva, inclusive com notícia exaltando suas qualidades no site do Solidariedade, partido político criado em 2013 por Paulinho. É dele também a indicação de outros dirigentes, incluindo o responsável pelo desenvolvimento de novos projetos de assentamentos, Ewerton Giovanni dos Santos — este filiado ao Solidariedade em Minas Gerais e que advoga para ao menos um fazendeiro no Estado.
Mais que isso, Paulinho bancou a nomeação de seu filho para comandar uma das superintendências regionais mais importantes do país, a de São Paulo. Alexandre Pereira da Silva é, desde o dia 4 de julho, o responsável por questões relativas, entre outras, à luta pela terra na região do Pontal do Paranapanema, próximo à divisa com o Mato Grosso do Sul, uma das mais conflituosas do país.
O que, afinal, quer Paulinho à frente do Incra? Recentemente, a Coluna Esplanada, do UOL, relatou que ele está criando um braço rural para a Força Sindical, com o nome de Força Rural, para ser um contrapeso para o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra). Ainda não há nada oficial a respeito, mas a Força Sindical já tem um braço de atuação voltado especificamente para os trabalhadores rurais assalariados — ou seja, aqueles que trabalham no campo para agricultores. Nem CUT, maior central sindical do país, tem uma secretaria com esse perfil.
Apesar de o governo planejar um corte de metade da verba programada para a reforma agrária em 2017, o controle sobre o Incra tem um alto valor. Direcionar a seleção dos beneficiados com novos assentamentos, as verbas para melhorias da estrutura das terras cedidas para a reforma agrária e os mais de R$ 200 milhões que o governo planeja para 2017, para a compra de novos terrenos, pode servir para garantir um bom capital político a ele, à sua central sindical e ao seu partido político entre os hoje sem-terra.
Aliado do agronegócio controla desapropriação de terras
A falta de um compromisso mais claro dos novos dirigentes do Incra com a causa da reforma agrária está presente, também, na nomeação de Luiz Antônio Possas de Carvalho para a Diretoria de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamentos — cargo que já tinha ocupado por apenas 45 dias no governo Dilma.
Possas de Carvalho, avalizado por Paulinho, é uma indicação pessoal do deputado federal Carlos Bezerra, do PMDB de Mato Grosso. Ele, que agora cuidará de interesses daqueles que querem tirar terras de grandes proprietários rurais, já advogou para importantes fazendeiros e pecuaristas — entre eles, em processo contra o Incra, numa desapropriação de terras da família de Jonas Barcellos Corrêa Filho.
Jonas Barcellos é conhecido como o “rei do gado” brasileiro. É um dos maiores criadores de boi nelore do país e conhecido por seu poder de lobby e alto trânsito entre autoridades da República. Uma de suas marcas é a feijoada que oferece a poderosos em sua fazenda em Uberaba (MG). Está longe de ser um entusiasta da reforma agrária.
Em levantamento feito pelo The Intercept Brasil, considerando somente os casos que tramitam ou tramitaram na Justiça Federal de Mato Grosso, Possas de Carvalho surge como advogado em oito ações contra o Incra, em defesa de proprietários rurais ou grandes empresas agropecuárias. Outro nome conhecido que já foi representado por ele em processo contra o órgão do qual agora é diretor estratégico é Flávio Pentagna Guimarães, presidente do banco BMG.
A gestão do Incra está paralisada …o TCU determinou a paralisação de todos os processos de escolha de novos beneficiários.
Possas de Carvalho já tinha sido pivô de uma operação de barganha política no apagar das luzes do governo de Dilma Rousseff. Ele foi nomeado por Dilma no fim de março deste ano, para o mesmo cargo, com o objetivo de agradar o peemedebista Carlos Bezerra, do Mato Grosso, um dos estados com maior presença do agronegócio, onde 114 pessoas foram ameaçadas de morte e seis delas foram assassinadas entre 2000 e 2010 em disputas por terras, segundo a Comissão Pastoral da Terra.
No entanto, com o voto de Carlos Bezerra a favor da admissibilidade do impeachment, Carvalho foi imediatamente exonerado pela então presidente, recuperando o posto assim que Michel Temer assumiu o governo interino.
A gestão do Incra está paralisada, em grande parte, por força de decisão tomada pelo Tribunal de Contas da União em abril deste ano. Foi encontrada uma gigantesca lista de absurdas irregularidades no órgão, especialmente na seleção de beneficiados para os assentamentos criados pelo instituto. Na decisão, o TCU determinou a paralisação de todos os processos de escolha de novos beneficiários, assim como de qualquer apoio a assentamentos já existentes.
Há dinheiro para terras de grilheiro, mas falta para modernizar o Incra
Mesmo com a decisão que, na prática, congela a criação de novos assentamentos, a área de obtenção de terras seguiu funcionando a pleno vapor. Na sua primeira passagem pela diretoria de obtenção de terras, Possas de Carvalho assumiu oficialmente no dia 28 de março. De janeiro deste ano até aquele dia, o Incra tinha liberado R$ 2,2 milhões para a desapropriação de três terrenos, conforme dados levantados pelo The Intercept Brasil no sistema Siga Brasil, de acompanhamento da execução do Orçamento federal. Nos três dias que se seguiram à posse de Carvalho, foram 16 liberações, num total de R$ 34 milhões. Até o momento em que foi exonerado por Dilma, ele já tinha carimbado R$ 76,4 milhões para essas desapropriações. Depois, quando voltou sob Temer, foram mais R$ 16,8 milhões para proprietários rurais até o fim de julho.
Não se tratam de novos decretos de desapropriação, mas do pagamento desses valores, que costumam rodar anos em ações judiciais de contestações de valores. Entre essas liberações, a maior delas, no valor de R$ 24 milhões, aconteceu no primeiro dia de sua gestão. Foi para garantir a desapropriação da Fazenda Nacional, localizada no município de Água Boa, em Mato Grosso, seu estado. Outras três, num total de R$ 19 milhões, beneficiaram Antonio Martins dos Santos, conhecido no meio rural como “Galo Velho” e apontado como o maior grileiro de terras de Rondônia — onde estão as fazendas pagas pelo Incra.
Atualmente, Antônio Martins dos Santos é um dos alvos de um inquérito sigiloso no STJ por suspeita de falsidade ideológica, falsificação de documentos, corrupção ativa e associação criminosa.
O latifundiário é ligado a Amir Lando, ex-senador que sempre teve ascendência sobre a superintendência do Incra em Rondônia, que, por sua vez, é aliado político de Carlos Bezerra. Ambos fizeram dobradinha no início do governo Lula. Lando era o ministro da Previdência Social, enquanto Bezerra presidia o INSS.
Entre as novas autorizações para desapropriação, em portaria publicada em agosto, o caso com maior valor envolve uma propriedade de uma família de usineiros de Pernambuco. Será comprada por R$ 21 milhões, mas o dinheiro ainda não foi liberado.
O governo quer fazer passar no Congresso um projeto de lei que autoriza a venda de grandes propriedades de terra para estrangeiro
Apesar dessa fartura de liberações de recursos para a compra de terras num contexto nebuloso, há outros detalhes da nova gestão do Incra que chamam a atenção. O novo presidente do órgão, Leonardo Góes Silva, assinou duas resoluções, no último dia 29 de julho. Em uma delas, mandou cancelar, por falta de dinheiro, uma parceria com a UFRJ para “realização de pesquisa voltada à análise da trajetória de desenvolvimento dos assentamentos rurais e o modelo atual de atuação do Incra”, com o objetivo de gerar “subsídios para que o Incra planeje e organize a sua atuação futura no âmbito do Programa Nacional de Reforma Agrária”. A parceria custaria ao Incra pouco mais de R$ 3 milhões. Na outra, também alegando falta de verbas, suspendeu decisão tomada em março deste ano pela gestão anterior, que havia aprovado as “diretrizes gerais, bem como as estimativas orçamentárias do Projeto de Modernização Tecnológica do Incra”.
No horizonte, há ainda mais um ponto que colocará o Incra no centro de uma polêmica. O governo quer fazer passar no Congresso um projeto de lei que autoriza a venda de grandes propriedades de terra para estrangeiros. O texto roda na Câmara desde 2007. Ganhou fôlego no ano passado e, já há alguns meses, está pronto para ser votado em plenário, e com apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. O texto não impede que terras ainda não declaradas para fins de reforma agrária pelo Incra sejam vendidas para estrangeiros. Um dono de uma vasta e improdutiva porção de terra pode achar mais negócio fechar um acordo com uma empresa de fora do que esperar a burocracia do governo para receber dinheiro de desapropriação.
Caso o projeto seja aprovado dessa forma, será uma boa forma de verificar o grau de republicanismo do Incra e seus dirigentes, já que uma maior lentidão para produzir laudos e pegar terras para a reforma agrária pode levar as áreas improdutivas atuais a serem vendidas para interessados que há anos esperam a oportunidade de explorar o campo brasileiro.
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