Política

PEC 241, a moratória do contrato social

A medida que limita os gastos públicos por 20 anos consagra o Brasil como paraíso dos rentistas

Via Rede Brasil Atual |
Obsessão de Temer, PEC 241 impõe limites cada vez mais restritos às despesas com serviços essenciais
Obsessão de Temer, PEC 241 impõe limites cada vez mais restritos às despesas com serviços essenciais - Lula Marques/AGPT

Figura no panteão dos anúncios da equipe econômica do governo a Proposta de Emenda à Constituição para instituir o Novo Regime Fiscal, a PEC 241.

Em síntese, o “novo regime fiscal” pretende fixar limite à despesa primária dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para cada exercício e pelos próximos 20 anos.

Para 2017, o limite será equivalente à despesa primária realizada neste ano corrigida pelo IPCA. Daí em diante, será definido pelo valor limite do ano imediatamente anterior corrigido pelo índice de inflação.

A nova métrica do “equilíbrio fiscal” busca impedir o crescimento real do gasto primário de um ano para o outro. Sua ampliação será no máximo igual à inflação do ano anterior, ou seja, concedida apenas a atualização monetária.

Como o PIB varia não só pela inflação, que majora seu valor nominal, mas também pelo aumento de todos os bens e serviços produzidos no País, salvo casos de deflação e recessão, a defasagem na taxa de expansão da despesa primária provocará a perda da sua participação relativa, decorrente de um crescimento inferior ao PIB.

O texto da PEC ressalta suas expectativas: “Estabilizar a despesa primária, como instrumento para conter a dívida pública... Entre outros benefícios a implantação dessa medida... reduzirá o risco-País e, assim, abrirá espaço para redução estrutural da taxa de juros”.

Há quase 20 anos, o advento do superávit primário estava prenhe da mesma esperança. De lá para cá a economia brasileira exibiu ao longo de 16 anos (1998 a 2013) superávits primários, o que não impediu o salto da dívida bruta do setor público do patamar de 40%, em 1998, para quase 58% do PIB, em 2013, acompanhada da elevação de 6% na carga fiscal, também medida em relação ao PIB.

Dizem os sabichões que a taxa de juro é elevada por causa do estoque da dívida, mas o caso brasileiro parece afirmar que a dinâmica da dívida é perversa em razão da taxa de juro de agiota. Mesmo em 2015, o ano da desgraça fiscal, 82% do déficit nominal que engordou a dívida bruta foram gerados pelos juros nominais. Em vez de confirmarem as hipóteses que relacionam “espaço fiscal” e juros, os dados apontam a patologia da economia brasileira.

Os resultados primários informados pelo FMI tampouco oferecem amparo às hipóteses que relacionam “espaço fiscal” e juros. Para evitarmos embates metodológicos acerca de defasagens temporais entre causa e efeito, utilizaremos uma singela média dos resultados primários de 2007 a 2015 para uma amostra de países.

Rússia, Índia, China, México, Estados Unidos, Reino Unido e Japão apresentam média deficitária (déficit primário), enquanto Chile, Alemanha, Turquia e Brasil apresentam média superavitária (superávit primário) no mesmo período.

O Japão, que figura há tempos entre as menores taxas de juro do mundo, apresenta o pior resultado fiscal entre os países, com um déficit primário médio no período em torno de 6,5%. O México exibe déficit primário médio de 0,8% do PIB e pratica juros de 4,25%, já a Turquia com quase 1,3% de superávit médio sustenta juros de 7,5%.

O Brasil, com a maior média de superávit primário entre 2007 e 2015 dentre os países listados (pasmem!), quase 2% do PIB, exibe exuberantes 14,25% de taxa Selic, revertendo quase 10% do PIB aos detentores da dívida pública, que representa menos de 70% do PIB, enquanto a Grécia, que tem uma relação dívida/PIB de 170%, despende aproximadamente 5% do seu PIB com juros.

No mundo da finança globalizada, demarcado pela hierarquia entre as moedas, a descuidada abertura da conta de capitais aprisionou as políticas econômicas “internas” à busca de condições atraentes para os capitais em livre movimento. Esse é o ponto central e inalcançável aos leitores de manuais papai-mamãe.

Surpreendentemente, o texto de proposição do “Novo Regime Fiscal” apresenta, no entanto, oposição e crítica explícita à pedra angular da Lei de Responsabilidade Fiscal, concomitantemente ao reconhecimento do seu caráter pró-cíclico:

“O atual quadro constitucional e legal também faz com que a despesa pública seja prócíclica, quer dizer, a despesa tende a crescer quando a economia cresce e vice-versa. O governo, em vez de atuar como estabilizador das altas e baixas do ciclo econômico, contribui para acentuar a volatilidade da economia: estimula a economia quando ela já está crescendo e é obrigado a fazer ajuste fiscal quando ela está em recessão... Também tem caráter prócíclico a estratégia de usar a meta de resultados primários como âncora da política fiscal... o Novo Regime Fiscal será anticíclico: uma trajetória real constante para os gastos associada a uma receita variando com o ciclo resultarão em maiores poupanças nos momentos de expansão e menores superávits em momentos de recessão. Essa é a essência de um regime fiscal anticíclico.”

Gunnar Myrdal foi pioneiro na preocupação em estabelecer uma política fiscal capaz de suavizar as flutuações econômicas. Sua proposta apoiava-se em estímulos fiscais durante o período de retração e, simetricamente, medidas restritivas durante a expansão, contendo pressões inflacionárias e garantindo uma transição suave da parte descendente do ciclo. No entanto, sua proposta permitia ao governo equilibrar o Orçamento durante todo o ciclo econômico, em vez de considerá-lo ano a ano.

Apesar de assemelhar-se à proposta posterior de John Maynard Keynes para um Orçamento de capital, Myrdal, em 1930, via o investimento público como uma linha de defesa contra flutuações cíclicas, a ser ativada tão somente quando as circunstâncias assim determinarem. Recomendava, portanto, intervenções pontuais de curto prazo.

A ideia de Keynes, por contraposição, é formulada como um projeto de longo prazo. Propunha a “socialização do investimento” em companhia de um sistema tributário progressivo, a eutanásia do rentista e o controle do movimento internacional de capitais para prevenir a instabilidade. Entre outras coisas, Keynes pretendia neutralizar os desvarios da finança nacional e internacional. Sua proposta jamais foi implementada, nem sequer ensaiada.

As propostas de Myrdal e Keynes sustentam em comum a regência de custeio e investimento por métricas distintas. A imposição de um limite linear e genérico às despesas primárias, como consta na PEC 241, pode deteriorar ainda mais a qualidade do gasto público.

Historicamente as despesas com atividades-meio e custeio apresentam tendência mais autônoma de crescimento. Por exclusão, os investimentos assumem o papel de despesas discricionárias. Os investimentos, já baixos e insuficientes, podem ser comprimidos ainda mais com a imposição de um limite genérico. Um regime fiscal que se pretende anticíclico necessariamente deve enfrentar a composição das despesas primárias.

A abordagem do Orçamento camuflada em uma áurea exclusivamente técnica e científica delegável às burocracias não eleitas transformou-se em ferramenta para limitar a disponibilidade de políticas que pareçam viáveis para a comunidade.

O Orçamento é um pilar do Estado Social, expressão da confiança ética construída a ferro e fogo pelos subalternos, que impôs o reconhecimento dos direitos do cidadão, a partir do princípio que estabelece que o nascimento de um cidadão implica, por parte da sociedade, o reconhecimento de uma dívida. Dívida com sua subsistência, com sua dignidade, com sua educação, com suas condições de trabalho e com sua velhice.

A imposição de limites cada vez mais restritos às despesas com serviços essenciais, enquanto juros podem exorbitar livremente, sinaliza simultaneamente credibilidade ao rentismo e temor à população de moratória ao contrato social.

Edição: ---