Sindicatos

“Insatisfação com governo Temer pode gerar uma retomada da luta”, diz socióloga

Paula Marcelino, da Universidade de São Paulo, discute o papel do movimento operário na atual conjuntura

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Greve de bancários em Porto Alegre (RS)
Greve de bancários em Porto Alegre (RS) - Brayan Martins/ PMPA

As grandes centrais sindicais brasileiras realizam uma mobilização nacional nesta quinta-feira (22). A série de atividades é tida como um ensaio para uma greve geral em defesa de direitos sociais e como resposta às medidas e propostas que o governo não eleito de Michel Temer (PMDB) vem discutindo em relação à reforma trabalhista e à da Previdência.

Em diversos momentos da história brasileira, a atuação do movimento operário foi decisiva. Para entender a relação entre as lutas sindicais e a conquista de direitos, bem como o impacto da atual conjuntura sobre a classe trabalhadora, o Brasil de Fato conversou com a professora de sociologia da Universidade de São Paulo Paula Marcelino.

“Ciclos de lutas têm capacidade de alterar e promover modificações progressistas nos direitos trabalhistas”, afirma ela.

Na entrevista, que resgata parte do histórico das lutas operárias no Brasil (ver infográfico abaixo), Marcelino aponta que um novo momento pode estar se abrindo para o movimento sindical: “Existe uma possibilidade grande de que a insatisfação que os trabalhadores estão demonstrando nas ruas com o governo Temer gere uma retomada da luta, de questionamento da política econômica”.

Confira a versão em áudio da reportagem (para baixar o arquivo, clique na seta ao lado de compartilhar):

Leia a entrevista completa:

Brasil de Fato - Tem se falado muito em ataques à CLT. Quando se fala nela, popularmente se tem a figura de Getúlio Vargas. Qual foi seu real papel? Qual a relação da legislação trabalhista com as lutas operárias?

Paula Marcelino - A Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, foi promulgada depois de uma série de lutas históricas dos trabalhadores, vinda de organizações do meio sindical que eram completamente autônomas em relação ao Estado: os anarco-sindicalistas, parte dos sindicatos socialistas e comunistas (esses, depois de 1922). Foram promulgadas leis, conquistados benefícios e direitos pelos trabalhadores que eram parciais para determinadas categorias - por exemplo, os ferroviários, os marítimos - ou localizadas em determinados estados do país.

Quando Getúlio Vargas assume, de fato sua política pode ser chamada de populista, pois, embora tivesse um discurso de estar acima de classes, era uma administração burguesa para desenvolver o capitalismo industrial no Brasil com elementos progressistas do ponto de vista dos trabalhadores. Um desses elementos foi unificar essas leis que já existiam para setores específicos em uma grande legislação geral para os trabalhadores urbanos. É importante destacar que foi para os trabalhadores do setor urbano; naquele momento, toda população rural, que ainda era a maioria dos trabalhadores brasileiros, estava de fora. As conquistas do meio rural foram mais lentas e também vieram depois de muita luta.

Faz sentido sim falar em herança varguista. Seria um erro de nossa parte negar o papel progressista que Getúlio Vargas teve, embora não dê para chamá-lo de 'pai dos pobres'. Ele de fato estendeu essa legislação: as férias, a jornada de oito horas, as restrições para trabalho de mulheres e crianças. Se é possível falar em ciclo de lutas, foram esses ciclos que levaram à alteração da lei vigente.

Esse caráter progressista também vale para a estrutura sindical criada por Vargas?

É importante separar, dentro da CLT, legislação sindical e legislação trabalhista. O processo de generalização de direitos trabalhistas teve sentido progressista, mas, do ponto de vista da legislação sindical, é difícil falar que teve esse mesmo sentido. Na verdade, o que a legislação sindical de Vargas fez foi trazer a organização sindical dos trabalhadores para, usando uma expressão popular, "debaixo das asas do Estado". O que eram, até então, organizações autônoma, mudam em 1931, com a as primeiras leis de representação sindical. Desde então, elas foram muito pouco alteradas.

Uma mudança importante, uma conquista do novo sindicalismo, que nasceu no final da década de 1970, foi diminuir a intervenção direta dos governos na destituição ou não de diretorias. Mas o judiciário permanece com esse papel e, sistematicamente, interfere – muitas vezes solicitado pelos próprios sindicalistas – nas eleições sindicais. O Estado continua, mesmo da Constituição de 1988, sendo o controlador da vida sindical, uma vez que é ele que determina qual entidade sindical pode existir, que é ele quem regula a distribuição das contribuições compulsórias, que regulamenta o direto de greve, que administra a vida sindical por meio da Justiça do Trabalho.

De fato, ciclos de lutas têm capacidade de alterar e promover modificações progressistas nos direitos trabalhistas. Nos direitos sindicais, os trabalhadores ainda não tiveram o sucesso que poderiam ter, em grande parte por conta da própria acomodação do movimento sindical brasileiro a essa dependência em relação ao Estado.

Você citou a questão da estrutura sindical. Ela é um empecilho para a luta sindical?

Completamente. Mesmo com as direções e bases mais bem intencionadas e combativas, o que essa estrutura sindical faz, no limite, é alimentar nos trabalhadores a ideia de que eles dependem do Estado, que o Estado é um protetor dos trabalhadores.

Para começar, o sindicalismo só existe com uma autorização do Estado. Segundo, se o trabalhador ou o sindicato se vê em qualquer conflito, ele busca a Justiça do Trabalho, que é um ramo do Estado, para dirimir esses conflitos, inclusive sobre a possibilidade de um determinado sindicato poder representar ou não uma determinada categoria. Ou seja, não é o trabalhador quem decide qual é a melhor organização para representá-lo e como ela deve ser estruturada, como a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho indica, mas sim o Estado brasileiro.

Como o Estado gerencia as contribuições compulsórias, ele tem alguma ingerência sobre as condições de funcionamento das entidades sindicais como o estabelecimento de multas milionárias para o sindicato que desobedeça essa ou aquela lei; que faça uma greve mais radicalizada ou que não controle os trabalhadores da sua base – como vimos em casos recentes de greves à revelia das direções sindicais e que resultaram em multa sobre os sindicatos por eles não terem conseguido manter suas bases “nos trilhos”.

O que caracteriza a estrutura sindical brasileira?

São três os pilares da estrutura sindical brasileira. Primeiro, a unicidade sindical: o fato de se poder existir um sindicato que represente uma determinada categoria profissional em uma determinada base territorial, que nunca é menor que um município. Segundo, a unicidade é concedida pelo Estado com uma carta de outorga, pois é ele que reconhece como legítima determinada organização; não é a luta que a legitima. Em terceiro lugar, as contribuições compulsórias; o exemplo mais evidente é o imposto sindical, que é descontado de todos os trabalhadores do setor privado, uma vez por ano, sendo ou não sindicalizado. O sindicatos brasileiros não precisam de trabalhadores filiados para existir.

A estrutura sindical atravanca a luta. Ainda que os sindicatos sejam comandados por lideranças mais combativas e comprometidas, eles vão se deparar com esses limites.

É possível estabelecer uma periodização do movimento sindical brasileiro?

Todo o período que vai do final do século 19 até por volta de 1931 é um período de autonomia do movimento sindical. Uma primeira fase, do final do século 19 até o começo dos anos 20, o anarco-sindicalismo foi muito forte. Depois, há um período com uma presença mais forte de socialistas e comunistas.

Do período Vargas até 1964, temos a consolidação do sindicalismo populista. Isso mesmo no período de abertura democrática, entre 1954 e até 1964, quando ocorre o Golpe Militar. Então, de 1931 até 1964 é o momento do sindicalismo populista.

Entre 1964 até o final da década de 1970, é um período de ditadura em que a ação sindical acontece, mas não de maneira explícita nem de forma altamente organizada, porque era perigoso. Muitos militantes sindicais foram presos e mortos pela ditadura militar.

Depois, há o domínio do novo sindicalismo. É difícil determinar se o novo sindicalismo se encerrou. Ele mantém diversas características do regime populista. O aspecto de combatividade, de greves muitos fortes, da organização da Central Única dos Trabalhadores, se altera no período recente. Então, o novo sindicalismo, numa tentativa de delimita no tempo, talvez a gente possa dizer que foi até a Constituinte de 1988.

Da Constituinte até o atual momento, o sindicalismo se reconfigura: ele está ainda mais adaptado à estrutura sindical e há uma pulverização das orientações sindicais, mas todas elas centradas na prerrogativa que o sindicalismo brasileiro tem que é unicidade sindical, com elementos do novo sindicalismo e do sindicalismo populista.

Em cada um desses momentos houve greves gerais?

Sim. Algumas não foram greves gerais convocadas como tais; mas se espalharam muito e rapidamente. Houve uma greve muito importante em 1917, que dominou boa parte da cidade de São Paulo (SP), atingindo também Rio de Janeiro (RJ) e Belo Horizonte (MG). Foi a primeira grande greve geral no Brasil.

Há uma nova greve geral importante em 1953. No período do novo sindicalismo, nós temos algumas greves gerais já oficialmente convocadas. Na década de 1980, contra a hiperinflação e a política econômica do governo. Nos anos 1990 também ocorrem greves gerais contra as políticas econômicas neoliberais.

Onde a gente não tem greve geral contra a política econômica do governo é justamente nos anos 2000, no momento dos governos petistas. Nos períodos anteriores, era esse o motivo desse tipo de mobilização.

Mas, em relação aos anos 90, não houve um aumento das greves nos anos 2000? É uma diferença entre greve política e econômica?

De maneira geral, as greves e o movimento sindical no Brasil são muito voltados para as questões econômicas, feitas pelos trabalhadores dentro da classificação artificial que se criou que são as categorias profissionais. São greves tradicionalmente voltadas para questões salariais, bastante corporativas, por aumento na participação nos participação nos lucros e resultados da empresa (PLR) e por reivindicações salariais. As greves acontecem, assim, por ganhos econômicos, fundamentalmente. Transformar estas greves em mobilizações por questões políticas ou por questões econômicas mais amplas, não é uma coisa fácil na realidade do sindicalismo brasileiro.

Por exemplo: qual era a principal característica das greves nos anos 1980, quando o Brasil foi um campeão mundial de greves junto com a Espanha? Os dois países estavam vivendo situações muito semelhantes: saindo de uma ditadura militar em uma conjuntura de hiperinflação. Então, os trabalhadores faziam greve permanentemente porque seus salários eram "comidos" pela hiperinflação.

Na década de 1990, o número de greves abaixou um pouco, mas não foi tanto assim. A média foi de 950 greves por ano nesse período, o que não é pouco. Essas greves, entretanto, tinham uma característica fundamental: em períodos de neoliberalismo, elas ocorriam pela defesa de direitos já conquistados e que não estavam sendo cumpridos, ou pelo pagamento de salários atrasados.

Nos anos 2000, a conjuntura mudou, em especial depois de 2004: houve a queda do desemprego, o aumento real do salário mínimo, uma configuração específica da política econômica mais benéfica aos trabalhadores. Talvez também seja possível dizer que, ideologicamente, os sindicatos estavam melhor posicionados, porque os governos do PT reconheciam a legitimidade da negociação com o sindicalismo, coisa que os governos de Fernando Henrique Cardoso não reconheciam. Ou seja, há uma conjuntura política, econômica e ideológica mais favorável ao sindicalismo. É o momento que os governos de centro-esquerda ganham a América Latina, o neoliberalismo estava, ideologicamente, em baixa na região.

Há na década de 2000 uma situação em que os trabalhadores estão economicamente mais fortalecidos, sem o facão do desemprego no pescoço, politicamente mais representados e, ideologicamente, havia esse momento de questionamento ao neoliberalismo.

No começo dos anos 2000, o número de greves estava muito baixo. Em 2003, foram 298 registadas pelo Dieese. Chegou em 2013, o pico era maior que a média dos anos 80: foram 2500 greves.

As greves do período 2004 até 2013 tiveram traços marcantes: é uma curva ascendente - o número aumenta a cada ano -, a conquista salarial é significativa, com boa parte das categorias tendo aumento salarial acima da inflação. No ano de 2012, 95% das categorias profissionais tiveram reajuste salarial acima do índice oficial de inflação. No acumulado dessa década, algumas categorias ganharam muito: metalúrgicos, por exemplo, tiveram aumento real de 33%, bancário de 12%. Claro que as categorias mais fortes se beneficiariam mais. Essas greves foram mais ambiciosas em relação às reivindicações e tiveram conquistas reais.

Com a atual conjuntura, esse momento iniciado nos anos 2000 permanece?

Pode ser que isso se altere com essa nova configuração de governo, muito menos favorável aos trabalhadores do que eram os anteriores. Eu acho que está se desenhando, com o golpe pelo qual passamos, o final desse ciclo de greves fortes, na ofensiva e com conquistas. Mas isso é uma coisa que ainda estamos para ver. Os últimos dados, de fato, mostram uma queda na capacidade de conquistas salariais dos trabalhadores nos últimos semestres.

Seriam mobilizações defensivas então?

É provável. Se continuada o tipo de política econômica que o governo Temer anuncia e o nível de desemprego, que já está já na casa de 12% da população economicamente ativa do país – aproximadamente 12 milhões de pessoas – , é muito possível que as greves passem, a partir de agora, a terem cada vez mais como característica marcante a presença de reivindicações defensivas.

Como as propostas de Temer e sua política econômica afetam a classe trabalhadora?

O que temos observado é que várias propostas estavam no documento "Uma Ponte Para o Futuro", o projeto de Temer para o país. Várias dessas ideias eram profundamente perniciosas para os trabalhadores. Elas passavam pela reforma trabalhista, e a gente ouviu muitos rumores sobre isso: alteração da jornada máxima de trabalho, pagamento de horas extras, idade mínima do trabalho, além da redefinição do conceito de trabalho escravo que já vinho sendo discutido antes mesmo desse projeto de Temer que nunca passou pelo crivo das urnas.

Há também a reforma da Previdência, que afeta diretamente os interesses dos trabalhadores. Até agora, parece que o governo não teve forças para fazer tudo isso. Inclusive encontrou resistência das centrais sindicais próximas a ele. Temer já declarou que não faria essas reformas agora, mas deixaria para depois. Mesmo a reforma da previdência ficaria para o ano que vem. O que demonstra que é um governo instável.

Isso de um lado. De outro, existem outras medidas que vão afetar os trabalhadores, mas de forma indireta, embora atinjam dramaticamente. As privatizações, que incluem, por exemplo, a Petrobras; o congelamento do gasto público, que significa o não investimento em infraestrutura, reduzindo drasticamente os empregos na construção civil; a diminuição dos servidores públicos, que vão se aposentando e não serão repostos…

Esse cenário não pode levar a uma retomada da politização da luta operária?

Pode. Existe uma possibilidade grande de que a insatisfação que os trabalhadores estão demonstrando nas ruas com o governo Temer - não todos trabalhadores, uma parte, eu diria que os mais precarizados e em situação mais instável não foram de verdade ainda para as manifestações de rua - gere uma retomada da luta, de questionamento da política econômica.

É bom que a gente aposte nisso, mas não é bom que a gente ache isso bom. Explico: achar o ascenso da luta dos trabalhadores por que a situação de vida deles está pior significa adotar aquela ideia do "quanto pior melhor". Situaação pior das condições de vida dos trabalhadores pode significar, para muita gente, pobreza, miséria. Eu não acredito que a luta caminhe melhor quando os trabalhadores estão em piores condições. Em vários países da Europa os trabalhadores estão mobilizados em grandes manifestações; mas, há anos, eles estão sofrendo derrota atrás de derrota. O caso da França agora é exemplar: acabaram de passar uma reforma trabalhista que vai prejudicar os trabalhadores, havia muita manifestação nas ruas, mas todas apenas para não perder aquilo que já tinham conquistado em longos anos de luta.

Lembro-me bem da década de 90, na qual fazíamos luta, greve geral e estávamos permanentemente correndo atrás do prejuízo. Correr atrás do prejuízo, naquele caso, significava correr atrás do básico, que ninguém mais deveria correr atrás: direito de ter emprego, ter o que comer, de ter transporte. Pode acontecer uma retomada das lutas e nós devemos fazer de tudo para que ela seja cada vez mais politizada, voltada para a tomada do poder pelos trabalhadores.

 

 

Infográfico: José Bruno Lima | Edição: Simone Freire

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