CINEMA

Aquarius ou um filme capitaneado por mulheres

Aquarius parece ser um ponto de mudança na obra de Kleber Mendonça Filho, por ser o que se perceberia como seu primeiro

Recife |
Felipe André Silva é crítico e cineasta
Felipe André Silva é crítico e cineasta - Arquivo pessoal

Clara, como seu próprio nome já tenta deixar claro, é um ser de resistência luminosa. Sua força e intensa presença estão traduzidas na luz que emana, e não por acaso os momentos de Aquarius em que ela estará mais exposta à iminência do perigo são aqueles nos quais não é possível iluminar-se. Clara, mulher, jornalista cultural, escritora, viúva e mãe de três filhos, é a última moradora do edifício Aquarius, última construção de estilo antigo a sobreviver à violenta especulação imobiliária na Avenida Boa Viagem. Todas as unidades do imóvel foram sistematicamente adquiridas pela construtora Bonfim, que agora usa táticas tão sórdidas quanto possíveis para forçarem a saída da última moradora. Clara, ainda que menos potente frente aos perigos que se apresentam, resiste à opressão que teima em transformar Recife num espaço sem memória, ou de memórias fabricadas e formatadas.

Para alguém cujo cinema sempre foi muito interessante, tanto do ponto de vista puramente cinematográfico quanto através da crítica social muito relevante que fazia, Aquarius parece ser um ponto de mudança na obra de Kleber Mendonça Filho, por ser o que se perceberia como seu primeiro trabalho realmente popular. Os curtas eram divertidos, mas não chegavam a muitas telas, e O Som ao Redor, seu longa de estreia, era um filme bastante hermético para o grande público. Aquarius difere desses outros projetos por ser um filme sobre uma pessoa, o que torna a identificação com ele muito mais simples.

Para além dessa dicotomia entre o resistente e o opressor, Aquarius ainda encontra espaço para falar sobre uma miríade de assuntos que vão desde a exploração do trabalhador negro e periférico, através da curiosa subtrama de uma empregada que rende a curiosa provocação “a gente explora eles, e eles roubam da gente”, até a crescente potência da mulher na sociedade. Aquarius é um filme capitaneado por mulheres, seus desejos, seus medos e seus sonhos. Em dado momento a namorada do sobrinho de Clara põe uma música para tocar e os olhares delas se encontram, compreendendo como ninguém mais poderia o que significa ouvir aquela canção, naquele apartamento e naquele momento. É um projeto de coisas que o Recife, e o mundo, poderiam ser, e quem sabe com muita luta efetivamente se tornem.

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