Economia

Contrarreformas do governo estimulam debates sobre auditoria da dívida pública

Movimentos buscam maior transparência e distribuição orçamentária mais justa, que priorize os interesses coletivos

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Um dos debates realizados pela Auditoria Cidadã da Dívida neste ano
Um dos debates realizados pela Auditoria Cidadã da Dívida neste ano - Reprodução/Facebook/Auditoria Cidadã da Dívida

Motivo de especulação por parte de atores políticos e econômicos, a dívida pública está no centro das preocupações de diversos grupos sociais que lutam pela transparência nas contas públicas e por uma distribuição orçamentária mais justa, que priorize os interesses coletivos. 

O estoque, segundo os cálculos feitos pelo Banco Central, fechou o ano de 2015 com um montante de R$ 3,9 trilhões no endividamento interno e de U$ 545 bilhões no externo. Com juros e amortizações que consomem 42% dos recursos do país, a dívida, que nunca passou por uma auditoria, é apontada por diversos especialistas como uma estratégia para institucionalizar práticas de corrupção.

“Teoricamente, ela deveria ser um instrumento para complementar o financiamento do Estado, assim como ocorre na nossa vida pessoal, quando a gente recorre a uma dívida pra financiar uma casa, um apartamento, etc. Todos os entes federados podem ter dívidas públicas interna e externa. Mas o fato é que, desde a década de 70, quando houve uma explosão da dívida, a gente vem percebendo que não existe contrapartida”, afirma a auditora fiscal aposentada Maria Lucia Fattorelli, que coordena a Auditoria Cidadã da Dívida. 

A organização, que não tem fins lucrativos, conta com o engajamento de diversos atores e entidades da sociedade civil organizada que lutam pela auditoria da dívida pública brasileira. 

Orçamento 

Para se ter uma ideia da política de distribuição de recursos no país, em 2015, a execução orçamentária para os demais gastos além da dívida corresponderam principalmente à Previdência Social (22,9%), à transferência a estados e municípios (9%), à saúde (4%); à educação (4%); ao trabalho (3%), e a outras despesas com menor representatividade. 


Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida

“Não tem como não relacionar isso ao financiamento das políticas sociais, inclusive na área da saúde. A gente vive num discurso de sucateamento do SUS [Sistema Único de Saúde], de que não tem dinheiro, que tem que fazer mais com menos, pautado na ideia de gestão de eficiência, mas esse é um discurso construído a partir de um prisma específico. O financiamento da saúde hoje é o que é porque muito dinheiro é canalizado para o pagamento de uma dívida que ninguém nem sabe de onde surge”, disse o servidor público Rodrigo Costa, que atua no Ministério da Saúde e é membro da “Frente Parlamentar Mista pela Auditoria da Dívida Pública com Participação Popular”, lançada no mês passado. 

Transparência 

O aspecto mais criticado pelos diversos movimentos que pedem uma auditoria é a falta de transparência nas operações que resultam no montante estampado nos dados oficiais. 

 “Nós não sabemos sequer quem são os credores, porque aqui no Brasil isso é considerado dado sigiloso, o que é um verdadeiro absurdo, além de ser inconstitucional, porque a Constituição Federal exige que todo gasto público tenha transparência. (...) É um direito da sociedade, mas os órgãos de controle também nunca cumpriram esse papel”, critica Maria Lucia Fatorelli. 

Ainda segundo ela, a situação brasileira tem destaque mundial. “Nós pagamos os maiores juros do mundo, e o custo dessa dívida é, disparadamente, o maior do planeta”, ressalta. 

Essa configuração faz com que a compra de títulos da dívida brasileira seja também a aplicação mais rentável do planeta. “Enquanto isso, o povo paga a conta, porque são retiradas verbas das áreas de saúde, educação, segurança, assistência, transporte, enfim, tudo que o cidadão precisa”, completa a auditora. 

Parlamento 

A dívida pública também se comunica com diversas iniciativas legislativas que atualmente tramitam no Congresso. Entre elas, têm destaque a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, que objetiva a estabilização dos gastos sociais num horizonte de 20 anos.  

“Essa PEC congela os gastos nas áreas sociais, mas, ao mesmo tempo, libera os gastos com a dívida pública, ou seja, estão transferido dinheiro da área social para a dívida, no intuito de beneficiar os grandes investidores que lucram com ela”, explica Rodrigo Ávila, assessor econômico do PSOL na Câmara Federal e membro da Frente.

Outro destaque legislativo é o Projeto de Lei do Senado (PLS) 204/2016, que permite aos entes da Federação a cessão de direitos creditórios provenientes de créditos tributários e não tributários a pessoas jurídicas de direito privado. O PLS garante recursos para “empresas estatais não dependentes”.  

Essa engenharia financeira difícil de decifrar seria, na prática, uma tentativa de legalizar esquemas fraudulentos relacionados à dívida, segundo opositores da proposta. “Na verdade, o que esse PLS faz é permitir a criação de dívidas ilegítimas”, diz Ávila. A projeção é de que a medida resultaria em sérios prejuízos para o país.  

“Ao mesmo tempo em que estamos privatizando empresas estratégicas e lucrativas para o país, vem esse PLS para criar empresas estatais dependentes que possam operar esse esquema e lucrar com a dívida”, compara Fatorelli. 

Ela destaca ainda que a iniciativa foi a mesma que levou a Grécia à bancarrota. “É algo que vai nos levar à barbárie, porque é um rombo sem tamanho”, critica a auditora, que, entre outras coisas, foi uma das especialistas contratadas para atuar na auditoria das dívidas públicas da Grécia e do Equador.  

Em 2009, por exemplo, a Câmara instaurou a CPI da Dívida Pública, que, entre outras coisas, apontou o crescimento desproporcional das dívidas de estados e municípios com a União, mas a comissão encerrou os trabalhos em maio de 2010 em meio a um impasse e sem auditar estados e municípios. 

“A CPI foi importante porque permitiu a obtenção de vários documentos, mas, ao mesmo tempo, provou que, de fato, não existe transparência sobre a dívida, e nós seguimos atualmente nesse cenário”, finaliza Ávila.  

Edição: Camila Rodrigues da Silva

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