A repentina chegada em massa de imigrantes haitianos, no início de 2014, colocou São Paulo no centro de uma crise migratória que obrigou governos e sociedade civil a desencadearem um processo emergencial para lidar com a situação. Com visto humanitário oferecido pelo governo federal após o terremoto que devastou o país, milhares de haitianos passaram a se lançar numa rota perigosa, cruzando a América Central até a América do Sul e entrar no Brasil pelo Acre. De lá, partiam em ônibus em direção ao sul e sudeste do país, na ânsia de reconstruir suas vidas.
Embora a gestão do prefeito Fernando Haddad já houvesse criado, um ano antes, a Coordenação de Políticas para Migrantes na estrutura da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), demonstrando que a temática migratória teria voz em seu governo, a chegada inesperada de milhares de haitianos impulsionou a articulação de uma série de políticas públicas, algumas, inovadoras.
Entre elas, a principal é a criação do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (Crai-SP), primeiro equipamento público municipal especializado na população imigrante da cidade de São Paulo, independentemente de sua situação migratória e documental. Com atendimento em seis idiomas (criolo, espanhol, francês, inglês, lingala e português), o Crai pretende promover o acesso a direitos e a inclusão social, cultural e econômica dos imigrantes no município.
Entre os serviços oferecidos está o agendamento na Polícia Federal da regularização migratória, a documentação e intermediação para trabalho, cursos de qualificação e acesso aos serviços públicos municipais, apoio jurídico em parceria com a Defensoria Pública da União (DPU), serviços de acolhida, atendimento socioassistencial e encaminhamento para cursos e oficinas gratuitos, voltados a qualificação profissional.
Além das cerca de 100 vagas na acolhida disponíveis no Crai, a prefeitura inaugurou um centro de acolhida específico para mulheres e mulheres com filhos, na Penha, zona leste, e outro, com duzentas vagas, no Pari. “A cidade de São Paulo desenvolveu certa sensibilidade porque foi provocada pelo fluxo migratório. A vinda dos haitianos colocou momentos de tensão e de emergência grande e alguns passos aconteceram, como, por exemplo, o número de casas de acolhida. Atualmente, com os novos abrigos, a acolhida já é uma realidade na cidade, hoje está bem”, explica o padre Paolo Parisi, da Igreja Nossa Senhora da Paz, no Glicério, região central, local que durante muito tempo abrigou centenas de imigrantes.
Em meio a campanha eleitoral, pessoas envolvidas com o assunto temem a descontinuidade das políticas desenvolvidas, segundo a coordenadora executiva do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), Tânia Bernuy. “Estamos preocupados com a continuidade das políticas públicas iniciadas na gestão do prefeito Fernando Haddad. Enviamos uma carta para todos os candidatos, para que observem as políticas já desenvolvidas na cidade. Nossa preocupação é que os candidatos contemplem nos seus planos de governo as políticas já iniciadas”, disse Tânia, afirmando, porém, que somente no plano de governo de Haddad a política de migrantes é abordada. “No plano de governo dos outros candidatos a palavra imigrante nem sequer aparece.”
Para ela, a eleição de imigrantes para os conselhos participativos das subprefeituras é uma das medidas que precisam permanecer, independentemente de quem seja o futuro prefeito de São Paulo. Outra medida importante, segundo a coordenadora do CDHIC, é a descentralização do Centro de Referência e Atendimento par Imigrantes em direção às periferias e a efetivação do Plano Municipal de Políticas para Migrantes, projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal e sancionado pelo prefeito Fernando Haddad no último mês de julho, na abertura do Fórum Social das Imigrações. “O plano é uma proposta avançada, mediada por toda a comunidade. Só que pela conjuntura política do país, a efetivação está ameaçada. Precisamos implementar todas as políticas públicas previstas e inserir o imigrante na comunidade, como cidadão pleno de direitos.”
A preocupação de Tânia Bernuy é compartilhada pelo padre Paolo Parisi. Para ele, o mérito do Plano Municipal é fazer as secretarias municipais trabalharem de maneira transversal os assuntos de situação migratória. “A lei é um passo, mas se não se transformar em política pública efetiva, vai ficar no papel. Essa lei tem a grande intuição, que não temos em nível federal, de fazer as secretarias dialogarem, pois normalmente o tema é tratado por cada um como uma gaveta, uma não se comunica com a outra e os problemas são transversais.”
O plano é a primeira lei municipal para população imigrante aprovada no país. O objetivo da gestão Haddad é justamente garantir a continuidade dos serviços já existentes, tornando-os políticas de Estado e não apenas de governo.
Ações futuras
Entre os desafios que devem ser considerados pelo futuro prefeito de São Paulo, tanto Tânia Bernuy como o padre Paolo Parisi, indicam questões na área de saúde, educação, moradia e trabalho. Para Tânia, a formalização do trabalho é uma questão essencial, pois também incentiva a regularização migratória. “É preciso descentralizar a emissão da carteira de trabalho. Essa centralização no Ministério do Trabalho burocratiza demais e atinge o direito dos trabalhadores imigrantes de inserção no mercado de trabalho”, disse.
Paolo Parisi destaca a importância da realização de cursos profissionalizantes. Segundo ele, há oferta de cursos em áreas em que há carência no mercado e o que precisa é facilitar o acesso, algo em que o poder público poderia ajudar. Como exemplo, o padre cita a existência de mais de 400 africanos trabalhando na Inova, empresa de limpeza urbana em São Paulo. Parisi também enfatiza a importância da ampliação de cursos de português e cultura brasileira para que o imigrante se adapte e consiga entrar no mercado de trabalho. “A língua é o primeiro passo para se conseguir o emprego. O idioma e a cultura são peças fundamentais”, avalia.
Neste sentido, o padre elogia a promoção da empregabilidade oferecida pelos Centros de Apoio ao Trabalho (CAT), ressaltando que no CAT do bairro da Luz há, inclusive, funcionários que são imigrantes ou refugiados, atendendo outros imigrantes à procura de trabalho.
O sacerdote da Igreja da Paz enfatiza a moradia como “o drama atual”. Parisi explica que, ao sair das casas de acolhida, os imigrantes precisam alugar sua própria moradia e esbarram em obstáculos burocráticos, como a falta do registro nacional de estrangeiro. Ao dar entrada no pedido do registro, a Polícia Federal emite um protocolo que, em tese, já deve ser reconhecido como documento, mas na prática isto não ocorre plenamente. “Conheci imigrantes que tinham dinheiro para alugar, mas como não tinham o registro, tinham só o protocolo, não conseguiam. Infelizmente, o formato do protocolo da Polícia Federal parece uma folha A4 cortada. Assim, muitos acabam morando em ocupações.” Para ele, embora a questão da moradia seja um tema universal na cidade de São Paulo, talvez fosse preciso criar um atendimento específico para os imigrantes.
Se a moradia é um tema crucial, a saúde, por outro lado, também tem suas especificidades. De acordo com Tânia Bernuy, há muito preconceito e falta de preparo dos agentes públicos para lidar com os estrangeiros. “A língua é uma barreira. Muitos imigrantes não são entendidos por causa do idioma, além de aspectos culturais. A tolerância é algo a ser trabalhado com esses agentes públicos porque o despreparo faz com que a prática não seja adequada e, muitas vezes, desrespeite a própria cultura do imigrante”, afirma a coordenadora CDHIC.
Diante de tantas barreiras, padre Paolo Parisi acredita que a cultura é um aspecto que pode superar as adversidades e mostrar uma outra face do imigrante que vive em São Paulo, uma cidade forjada pela colaboração das inúmeras comunidades estrangeiras que escolheram viver na capital paulista. “A cultura é fundamental para ter trocas sadias e olhar o outro não como um coitadinho, mas como alguém que também está trazendo riquezas para a cidade”, afirma.
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