Na noite do dia 26 de setembro de 2014, em Iguala, uma pequena cidade do estado de Guerrero, no México, estudantes da Escola Rural Normal de Ayotzinapa regressavam de uma atividade de arrecadação de fundos, com o objetivo de financiar sua viagem à Cidade do México para a manifestação de 2 de outubro, em memória do massacre de Tlatelolco.
Por volta das 20h30, no caminho de volta para a escola, que fica na Zona Rural, homens da polícia municipal lhes fecharam o caminho. Os dois estudantes que desceram do ônibus para dialogar com os policiais foram baleados pela polícia e, logo após, os oficiais abriram fogo contra os três ônibus detidos na estrada. O violento episódio deixou várias pessoas gravemente feridas, dois mortos e 43 estudantes desaparecidos – os corpos de dois deles já foram encontrados.
“Foi nessa noite que acabaram com o sonho de Maurício e mudaram a nossa vida como família; abandonamos as nossas casas e entramos numa outra etapa de desespero e de crise. De sair às ruas e exigir justiça”, relatou ao Brasil de Fato, Melitón Ortega Carlos, pai de Mauricio, um dos 43 estudantes desaparecidos de Ayotzinapa.
Melitón é membro do coletivo Padre de Família de Ayotzinapa, que reúne familiares dos jovens desaparecidos. O coletivo é um espaço de unidade na busca pela verdade e pela justiça. Muitos quilômetros foram caminhados em caravanas nacionais e internacionais. Os parentes têm recorrido a organismos internacionais e a especialistas em direitos humanos, mas o governo do presidente Enrique Peña Nieto insiste em manter uma “verdade histórica” sobre os fatos que, segundo Melitón e o coletivo de familiares, “é garantia de impunidade”. “Nós, como pais de família de Ayotzinapa, sonhamos com a garantia da não repetição”, disse.
“Dizemos ‘Fora Peña Nieto’, porque é o autor intelectual de todos os males que vivemos neste país, que tem violado as leis, que tem criminalizado as manifestações, que assassina o povo”, afirmou Melitón.
Da montanha às ruas
“Somos do campo, somos uma família humilde. Viemos de uma comunidade indígena de nome Me phaa. Dedicamos-nos ao campo, cultivo de milho, café... Não temos estudos e a vida no campo é muito difícil”, relatou Melitón.
Segundo dados da Secretaria de Desenvolvimento Social do México, 45,4% da população indígena maior de 15 anos, no estado de Guerrero, não teve acesso à escolaridade, mais de 80% das moradias indígenas não garantem condições de vida digna e mais de 46% desta população não tem renda.
“Nós temos seis filhos, incluíndo Mauricio, que hoje está desaparecido. Ele precisou sair da comunidade, foi para uma localidade chamada Ayutla de los Libres, em Guerrero. Ali viveu com o tio, o meu irmão. Ele tem uma oficina de carpintaria e Mauricio entrou com a ideia de aprender o ofício. E esteve ali seis anos, realizando seus estudos secundários e trabalhando com seu tio. Ao concluir o ensino médio, ele ingressou na Escola Normal de Ayotzinapa, com a ilusão de ter uma vida diferente da que levamos como família, sem emprego, sem recursos, uma vida ruim”, contou Melitón.
Mauricio estudava há apenas 3 meses em Ayotzinapa, quando desapareceu na noite do 26 de setembro de 2014. “A escola tem 99 anos, foi criada pela Revolução Mexicana. Os estudantes da Normal tem atividades de produção agrícola, carpintaria, criação de gado e se identificam com a comunidade, estabelecendo um vínculo muito forte com a comunidade ao redor”, relatou Melitón.
Segundo ele, “a mídia, o governo e a Procuradoria Federal da República, tentaram assinalar vínculos dos estudantes com o crime organizado. Diziam que os estudantes eram vândalos, delinquentes. Mas sabemos que nossos filhos não são delinquentes”.
“Desde o início o grupo de Padres de Familia estamos juntos, nas partes boas e ruins, mas juntos. Dormimos no chão, tivemos fome, sede, calor, as noites sem poder dormir e temos ganhado a nossa confiança. Então o governo tenta nos desqualificar, mas a gente se conhece, vivemos juntos, choramos, e por isso o governo não pode quebrar esta relação de trabalho e unidade”, afirmou.
As lutas pela verdade
Dois anos após o desaparecimento dos estudantes, familiares das vítimas continuam exigindo verdade e justiça. Frente às pressões nacionais e internacionais o governo de Peña Nieto lançou em janeiro de 2015 o que denominou como a “verdade histórica” do caso Iguala.
O titular da Procuradoria Geral da República, (PGR), Jesús Murillo Karam, afirmou que o “caso estava encerrado”. Com aparentes provas e delações, as investigações oficiais davam como resultado que os 43 estudantes tinham sido assassinados, incinerados na lixeira de Cocula e jogados no rio por integrantes do Cartel Guerreros Unidos, confundidos com integrantes do cartel rival.
Contudo, familiares das vítimas afirmam a falta de veracidade deste relato. Apoiado no trabalho realizado pelo Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes (GIEI), os familiares têm mantido o rechaço às tentativas do governo mexicano de dar por encerrado o caso. O informe de 608 páginas apresentado, em abril deste ano, pelos pesquisadores do GIEI, assegura que as autoridades não têm seguido as principais linhas de investigação, têm manipulado as evidências e obstruído possíveis avanços, além de proteger oficiais que aparentemente participaram dos desaparecimentos e denunciam que a justiça tem receios em avançar sobre os mandantes dos crimes.
Numa trama que envolve oficiais de segurança do alto escalão, ligações com o narcotráfico, impunidade estrutural e repressão à sociedade civil organizada, o caso representa uma bandeira de luta mundial contra a violação de direitos humanos no México.
“Junto aos especialistas e o povo na rua, temos aprendido a não deixar-nos enganar, a não deixar-nos cooptar pelo governo. Isso nos tem permitido manter unidade, e continuar a investigação (...). A sociedade diz que nós somos um exemplo. A gente acha que o povo é o exemplo, que se mantém firme, resistindo”, encerrou Melitón Ortega.
Na quarta-feira passada (21), Jan Jarab, representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, participou de um encontro com os familiares dos estudantes, no qual manifestou o apoio e a preocupação pela impunidade no país. Desde quinta-feira (22) acontecem uma série de atividades no México, que devem se estender até esta segunda-feira (26), com um grande ato no Zócalo – centro da Cidade do México (DF).
Edição: José Eduardo Bernardes
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