Então nossas roupas voltam a se encontrar nos varais. É terça-feira de faxina. Na varanda, uma de minhas camisas de fazenda se estende à tarde ao lado da sua malha listrada em vermelho e azul. Depois de brutos meses, você retorna para casa. Não vem só. Como de costume, junto com as grandes malas, cruza a porta de entrada uma caravana de personagens. São fantasmas luminosos do seu ofício, das vidas que, nestes anos, você encarnou ao tempo em que eu me ocupava de salas de aula e livros. São figuras cinematográficas, trejeitos que permanecem em você e nos acompanham ao café que acabei de coar. Elas, sobretudo a mais recente delas, transitam pelo apartamento durante duas ou três semanas, até que adormecem no escuro profundo do baú de madeira onde você guarda seus cadernos de criação. Nestes primeiros dias, você e elas se movimentam pelos cômodos da casa esquecendo lâmpadas acesas e portas de armário abertas. Eu persigo seus caminhos, desligo lâmpadas, encerro portas, testemunho a matéria de que são feitos os vidros das janelas, as páginas de José Luís Peixoto e os meus próprios poros se adaptando à sua desejada presença. Você recompõe cada espaço. E, com discrição, expulsa a saudade que, como a hortelã plantada nos jarros do terraço, espraia-se felina através dos interstícios. (Assisti a você exorcizar uma saudade insistente entre um poema e outro da coletânea de Miró). Você vem prenhe de novidades. Descansa sobre a mesa um vaso de porcelana gravada com flores vermelhas e folhas azuis. “Do cenário”, você diz. Apresenta-me uma imagem italiana de Nossa Senhora do Desterro – a qual eu e meu ateísmo estranhamos, claro, mas eu sugiro que você a ponha no aparador, perto das xícaras de cerâmica da Serra da Capivara, você concorda. É verdade, você também se surpreende com minhas novidades. Pergunta-me se me habituei ao chá de camomila, ouve-me anunciar solenemente que a metade de cá da cama está mais funda, segue comigo ao jazz do Parque Santana, brinca de balanço com Miguel no Parque do Baobá, passa a conhecer, pouco a pouco, as pessoas cujos nomes atravessam meus relatos sobre as reuniões do partido, as crônicas para o jornal, as noites da Mamede, as subidas de domingo ao Bela Vista e todo este cotidiano cimentado a fronteiras que, agora, você desfaz. Você se depara intimamente com as minhas ariscas ansiedades. A tese do doutorado, as eleições municipais, os artigos e, porra, o golpe. Você as acolhe. Você compreende. Todo gesto seu é um útero e hoje, como de tempos em tempos, você nos gesta. Mais tarde, eu sei, você terá de se ir novamente. A saudade renomeará os entres. Por ora, contudo, eu me permito amar você assim, na oração diuturna do sal do seu suor em minha língua, no sagrado que é amanhecer para apanhar o seu último sono, quando você se mostra parte gente, parte sonho e eu me imagino igualmente menino, enterrando, com você, bonecos dos Comandos em Ação no quintal de sua avó.
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