Os embates entre o governo do presidente Nicolás Maduro e os grupos de oposição na Venezuela nos últimos meses levaram a uma crise política entre a Assembleia Nacional, controlada pela oposição, e os outros poderes da República.
A situação se desenrolou em meio a uma difícil situação econômica vivida pelo país. Entretanto, para Ivan González, venezuelano militante do movimento sindical internacional que vive no Brasil, as ações do Legislativo contra a Presidência não tem respaldo legal.
Em entrevista ao Brasil de Fato, González explica as últimas movimentações ocorridas na Venezuela. De acordo com sua análise, apesar de haver uma disputa entre as instituições venezuelanas, a questão política no país "deve ser decidida nas ruas".
Confira a íntegra abaixo.
Brasil de Fato - É possível localizar o início da atual tensão pela qual passa a política venezuelana?
Ivan González - Não é tão simples. Houve o processo do chamado referendo revogatório, que tem previsão constitucional. A oposição na Assembleia ameaçou utilizar esse mecanismo para destituir o presidente. Esse mecanismo tem que ser ativado com um procedimento que está regulado por lei. Há prazos e formalidades que devem seguidos. Ele já foi utilizado [anteriormente] contra Chávez, e o resultado foi favorável a ele.
Como se deu esse processo agora?
A oposição fez anúncios políticos, pela imprensa, inclusive internacionalmente. [Entretanto], só ativou formalmente [o procedimento] entre março e abril [de 2016]: ingressou no Conselho Nacional Eleitoral [CNE] para solicitar o referendo. A partir daquele momento, vários passos deveriam ser cumpridos.
Em um primeiro momento, eles tinham que coletar as assinaturas de 1% do eleitorado. Isso foi feito. O PSUV [Partido Socialista Unido da Venezuela, agremiação de Maduro] se credencia como um dos partidos para participar da auditoria das assinaturas. Tanto a oposição quanto os grupos que apoiam o governo fizeram parte.
Nesse processo, foram detectados, tecnicamente, vários problemas: muitas pessoas mortas, presas - que não podem participar desse tipo de procedimento - e pessoas que posteriormente denunciaram que não haviam assinado a lista. Toda essa série de chamados ilícitos foram denunciados e entrou-se na Justiça para impugnar o processo.
O CNE continuou com o processo. Neste semana, entre 25 e 28 de outubro, deveriam ser recolhidas assinaturas de 20% dos eleitores para ativar de vez o procedimento. Por outro lado, o CNE já havia anunciado, meses atrás, que não havia condições de organizar o referendo revogatório em 2016 e que o referendo ocorreria no primeiro trimestre do ano que vem, já que a Mesa da União Democrática não havia iniciado o processo no prazo adequado.
Com isso, uma parte da oposição denunciou que se estaria ocorrendo uma fraude. Para eles, politicamente, a estratégia era que o referendo ocorresse esse ano, pois era a chance de destituir não só o presidente, mas o também o governo do PSUV.
A Constituição é clara no sentido de estabelecer que, depois de três anos de mandato, o referendo revogatório que se destitui apenas o presidente, assumindo o vice, até 2019. Eles não queriam isso, queriam tirar tudo. A oposição já sabia isso, mas eles mantiveram a agenda de que seria em 2016, fizeram propaganda internacional, inclusive enganando suas bases, dizendo que ele ocorreria esse ano.
Esse foi o fator que levou à crise política?
O último acontecimento que surge e desencadeia essa última crise é que, semana passada, aqueles tribunais nos quais os ilícitos foram denunciados emitiram sentenças afirmando que as fraudes foram comprovadas e que as vítimas das fraudes haviam solicitado a paralisação do processo, e a decisão foi nesse sentido, o que significa a impossibilidade de convocação do referendo neste e no próximo ano. É isso que eles estão chamando de "golpe" neste momento.
Se não houvesse essa suspensão, como continuaria o procedimento do referendo?
Eles agora recolheriam 20% de assinaturas em cada estado. Aí se organizaria um referendo no primeiro trimestre do ano que vem, e eles teriam que obter mais votos dos que os obtidos por Maduro em sua eleição. Não era dado o fato de que eles ganhariam. Poderiam [ganhar], Maduro sairia do governo, mas continuaria o vice-presidente.
Que medidas a oposição tomou a partir disso?
Com base nisso, a Assembleia Nacional convocou uma sessão extraordinária no domingo passado e, primeiro, declaram abandono do cargo de presidente. Eles anunciam que Maduro abandonou a Presidência porque viajou para cumprir missão internacional sem autorização. Entretanto, a Constituição também prevê que para uma missão de curto período o presidente pode sair sem autorização. Maduro saiu, mas já está na Venezuela. A posição da Assembleia não constitucionalmente viável.
A segunda questão é que eles anunciaram um juízo político para destituir Maduro, uma espécie de impeachment. Na Constituição da Venezuela não existe esse mecanismo. Eles não podem fazer isso. Uma terceira decisão da Assembleia foi intervir no Tribunal Supremo de Justiça [TSJ] e no CNE.
Esses atos sim constituem golpe. A Assembleia não tem mandato para destituir o presidente, nem para intervir em outros poderes. Eles estão agindo com base em argumentos inviáveis do ponto de vista constitucional. Estão tomando medidas ilegais.
O fato é político é que quando a nova composição da Assembleia assumiu, seu presidente afirmou que eles teriam seis meses para derrubar Maduro. Eles não fizeram isso. Aliás, também não fizeram o que deveriam, que é legislar. As poucas iniciativas de lei foram para tirar conquistas e direitos já reconhecidos. O pouco que fizeram foi contra o povo.
O que ocorre então é uma tensão entre os poderes institucionais da Venezuela?
Aliás, a Assembleia Nacional está desacatando uma decisão do TSJ, que invalidou a posse de três parlamentares, condenados por fraude. Primeiro respeitou-se a decisão, mas depois disso, eles assumiram. A partir deste momento, faz uns três meses, o Legislativo está desacatando o Judiciário.
Mas, de fato, não há uma crise econômica que favorece a atuação da oposição?
A situação da crise econômica é totalmente verdadeira. O problema é que tudo que a oposição dizia que iria ocorrer, não ocorreu. Aliás, ontem, a secretária-geral da Cepal da ONU, Alicia Barcena, declarou que não existe crise humanitária na Venezuela e reconheceu os esforços do governo Maduro para recompor o quadro econômico. O fato que as iniciativas para recuperação já estão dando respostas parciais aos problemas que o povo venezuelano enfrenta. Mesmo os opositores reconhecem que a situação mais crítica já foi superada. Isso gera uma situação de perda de espaço político para a oposição.
O cenário está se tornado mais favorável ao governo, então?
Esse clima interno, aliado ao processo de negociação e diálogo com apoio internacional, não é favorável a uma saída do governo, que não seja pela via do golpe e da violência, que é último fator que parte da oposição está estimulando.
Internacionalmente, a oposição venezuelana aparece na grande mídia como moderna, democrática, etc. O que ela realmente representa?
Esses políticos com discurso moderno têm uma agenda completamente conservadora, dos interesses privados. Eles estão vinculados a velhos setores políticos da Venezuela. Não se diferenciam muito da direita argentina, brasileira, colombiana. Aliás, há uma aliança [regional] clara em torno dessa agenda política, social e econômica conservadora.
Mas a oposição, apesar das mudanças recentes no cenário, ainda apresenta força, não?
É verdade é que a oposição tem força nas manifestações, mas também é verdade que o governo tem um respaldo importante. De alguma maneira, diferentemente do que aconteceu no Brasil, esse assunto vai ser decidido na rua. O governo entende isso de forma clara.
Edição: Camila Rodrigues da Silva
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