Indigentes

Estado de São Paulo continua enterrando pessoas identificadas em valas públicas

Dados de desaparecidos do DHPP não são cruzados com o sistema formal de autópsias brasileiro

Agência Pública |
Coveiro mostra à Vera Marchioro, mãe de Luiz, onde seu filho estaria enterrado no Cemitério de Perus
Coveiro mostra à Vera Marchioro, mãe de Luiz, onde seu filho estaria enterrado no Cemitério de Perus - Calebe Simões

Luiz Henrique Marchioro, de 25 anos, saiu de casa no dia 2 janeiro de 2014 e não voltou. Depois de ter ficado um mês desaparecido, foi encontrado pela família debaixo da terra: enterrado como indigente no cemitério de Perus, na zona norte da cidade de São Paulo.

Eu só soube dessa história porque Luiz foi aluno de uma amiga minha. Aquilo me impressionou muito e eu quis tentar entender como aconteceu, e se era algo excepcional. Pouco tempo depois saiu nos jornais paulistas o escândalo dos “Indigentes com RG” – pessoas que, mesmo documentadas, eram enterradas como desconhecidas nos cemitérios públicos de São Paulo sem que as famílias fossem avisadas. Milhares de pessoas. O caso de Luiz não era exceção.

As matérias falavam em mais de 3 mil pessoas documentadas que haviam sido enterradas em valas de indigentes entre 1999 e 2013, depois de terem passado pelo Serviço de Verificação de Óbito (SVO) da capital. A denúncia partiu do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos do Ministério Público de São Paulo (PLID), criado em novembro de 2013 e comandado pela promotora Eliana Vendramini. O programa constatou que os serviços públicos encarregados de lidar com desaparecimentos eram muito ruins, e muitas pessoas que constavam como desaparecidas já estavam mortas havia muito tempo.

Logo de início o PLID constatou que não havia um número real de desaparecidos, pois muitas pessoas que estavam no cadastro da 4ª Delegacia de Investigação sobre Pessoas Desaparecidas, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), constavam no sistema formal de autópsias brasileiro – seja no Instituto Médico Legal (IML) ou no SVO. “A pessoa desapareceu, apareceu, e o Estado desapareceu com ela. Nós temos batizado isso de ‘redesaparecimento’”, conta Eliana. O “redesaparecimento” ocorria porque na 4Delegacia o boletim de ocorrência (BO) da morte não era cruzado com o do desaparecimento.

Quando uma pessoa morre sem ninguém por perto, a polícia é chamada para verificar o óbito e isso gera um BO. Feito o BO de óbito, um médico tem de atestar a morte, e é o delegado quem decide para onde encaminhar o corpo – IML, em caso de morte violenta, ou SVO, quando a morte é natural. Um médico-legista então realiza a necropsia para determinar a causa da morte e, se o corpo não é reclamado em até 72 horas, pode ser encaminhado para valas públicas. Esse é o prazo adotado pelo IML, que alega não ter onde guardar os corpos por mais tempo.

Quando um corpo não é reclamado pela família, tanto o SVO quanto o IML contratam o sepultamento gratuito do Serviço Funerário Municipal de São Paulo (SFM). O município é responsável pela deposição dos corpos e realiza os sepultamentos de indigentes em dois cemitérios públicos da capital – Dom Bosco, em Perus, e Vila Formosa, na zona leste.

O PLID descobriu que havia falhas em todos os órgãos que compõem a dinâmica dos serviços de desaparecimento – SVO, IML, SFM e a Delegacia de Desaparecidos – e passou a buscar soluções já em 2014. “São pessoas diariamente enterradas longe de suas famílias. E as famílias procurando”, diz Eliana, que ficou impressionada com a quantidade de pessoas não reclamadas por familiares. “Será que tudo isso de gente não interessa a ninguém? Três mil pessoas?”

O PLID começou então a pesquisar nomes dos mortos que passaram pelo SVO e encontrou diversas pessoas que tinham, sim, registro de desaparecimento. Buscaram as famílias através da Receita Federal, de quem paga ou não impostos, e por registros de imóveis. E descobriram que havia famílias que não sabiam que seus parentes estavam mortos.

Um dos primeiros nomes que pegaram na lista foi o de João Rocha, que tinha 72 anos quando morreu e foi enterrado em março de 2000. Eliana conseguiu localizar seu filho, o técnico em telecomunicação Claudio Rocha. Na época, Claudio não sabia que seu pai havia morrido e ainda tinha esperança de que ele pudesse estar vivo em algum lugar. “A senhora está me entregando dois boletins de ocorrência da mesma instituição, e ninguém me avisou em 14 anos que meu pai estava morto?”, disse o filho.

Ao perceber a indignação das famílias, Eliana resolveu mover na Promotoria de Justiça de Direitos Humanos uma ação coletiva por danos morais contra o Estado. Posteriormente, o MP decidiu desistir da ação e celebrar um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC –, que ainda não foi concluído. Não há previsão para a assinatura.

Sem os órgãos

Outro caso emblemático foi o de Edson Araújo Leão, que tinha 63 anos quando desapareceu, em junho de 2003. Além de sempre andar com documentos, ele carregava um crachá feito por sua filha com cinco números de telefone de familiares, para que a família fosse informada caso algo acontecesse com ele. (Ele já havia sofrido um aneurisma e a filha temia que pudesse ter alguma falha de memória.)

Depois de ter passado mal na rua, ele foi levado por policiais ao Hospital Vergueiro, administrado pela prefeitura. Ficou internado ali na UTI por duas semanas até falecer, quando foi encaminhado ao SVO, onde ficou mais seis dias. Sua filha Maria Cecília Leão o localizou só 20 dias depois, já enterrado como indigente no cemitério de Perus.

Inconformada, ela foi até o cemitério disposta a exumar o pai e transferi-lo para o jazigo da família, em Itapecerica da Serra. Quando chegou lá, um coveiro a desaconselhou. “Pra que a senhora quer tirar seu pai daí? Ele chegou só pele e osso, tava oco por dentro.”

– “Como assim, oco?”

– “Não tinha nada por dentro. Parecia estopa. Melhor deixar ele aí.”

Maria Cecília só entendeu o que havia ocorrido com o corpo do pai quando foi contatada pelo PLID, 11 anos depois.

Ela soube que o SVO tem um convênio com o Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que faz as necropsias.

Ao prestar o serviço, a Faculdade de Patologia da USP se beneficia do uso de corpos e órgãos não reclamados para estudos. A Lei Federal nº 8.051 determina que cadáveres não reclamados às autoridades públicas num prazo de 20 dias podem ser destinados para fins de ensino e pesquisa em Faculdades de Ciências Médicas da USP. Mas existe outra norma estadual de 1993, do governo Fleury, que determina que corpos não reclamados em até 72 horas podem ser encaminhados para inumação em cemitérios públicos. O SVO se amparava nessa lei para decidir o destino dos corpos nesse período.

Tudo indica que Edson Araújo teve os órgãos removidos para estudo antes de ser enterrado.

A promotora Eliana acredita que não se pode presumir que ninguém se interesse por um corpo sem antes buscar a família. Para ela, quem está com um corpo tem obrigação de avisar os familiares. “Eles não estão com um bem, nem inanimado, não é uma cadeira, nem um bem público. Não morreu e se tornou público. Isso é a base da ética médica no Brasil. Familiares são consultados para cirurgias, para transplantes, e sobre os mortos também – para o destino dos corpos.”

Ela acredita que os serviços de busca deveriam ser implementados em todos os órgãos que lidam com corpos de pessoas. “Os familiares precisam terminar o ciclo da busca”, diz. E defende que o SVO tenha um serviço de busca dos familiares, já que se vale do direito de uso dos corpos não reclamados. Para ela, o SVO deveria se conveniar à Polícia Civil para ter acesso ao seu banco de dados.

O diretor do SVO, Carlos Pasqualucci, defende que não é atribuição do órgão avisar as famílias. “Quem encaminha o corpo para SVO é a autoridade policial do local onde ocorreu o falecimento. Isso vem através de um BO. Quem faz a identificação é a polícia”, alega. Ele questiona a lista de 3 mil nomes divulgada pela imprensa em 2014. Segundo ele, constavam ali todas as pessoas que passaram pelo SVO, incluindo aqueles cuja família não tinha condições de arcar com as despesas de um funeral e preferiu o enterro gratuito oferecido pelo SFM. São poucos os corpos não reclamados entre os milhares que passam pelo órgão todos os anos, diz.

“Sabe quantos corpos não reclamados ocorrem por ano de adultos? A média é 50 casos por ano. E muitos casos de não reclamados é de gente que não tem ninguém. Cinquenta casos que potencialmente poderiam ser de desaparecidos. Mas acabam sendo só um ou dois. Foi feito grande alvoroço em torno desses 50 quando deveriam estar preocupados com os 30 mil (desaparecidos por ano no Estado de São Paulo)”.

Hoje em dia, o SVO aguarda pelo menos dez dias – e não mais 72 horas – antes de definir o destino de um corpo, dando assim mais tempo para que as famílias sejam notificadas e possam reclamá-lo. Mas o problema persiste.

A promotora Eliana explica que São Paulo tem em média 30 mil registros de desaparecimento por ano. Hoje em dia, o total de desaparecidos é 10 mil, número que inclui todos os casos que ainda não foram solucionados. “A minha preocupação é que não se banalizem os desaparecidos em relação ao registro de desaparecidos. Porque o fato de uma pessoa fazer um BO de desaparecimento demonstra algo grave. Seja por problema familiar, social ou pessoal”, diz.

Perdidos dentro do sistema

O IML recebe todos os corpos de pessoas que morreram de morte violenta ou morte suspeita, além daquelas encontradas na rua sem documentos, mesmo que não haja sinais de violência. O IML Central recebe em média 20 corpos todos os dias.

O PLID descobriu que o IML nunca teve registros precisos. Não havia uma lista de pessoas documentadas nem um número de quantos “indigentes” ele mandava enterrar. Também não eram colhidas as planilhas digitais ou material genético dos corpos, impossibilitando a identificação no futuro. Isso levava a um desaparecimento eterno de algumas pessoas.

Eliana descobriu também que não havia um padrão nos álbuns de fotos dos corpos que eram mostrados ao público – alguns eram álbuns físicos, outros digitais –, tampouco protocolo de registro dos mortos que davam entrada ali. Pior: não havia um banco de dados central digitalizado com dados de todas as unidades do IML do estado, o que obrigava as pessoas a fazer uma peregrinação por várias unidades em busca de um familiar – o IML tem 72 unidades em todo o estado. Só na área metropolitana são 17. É muito difícil para um familiar encontrar seu parente nesse labirinto de IMLs antes que seja enviado para uma vala pública.

Eliana não tem dúvida de que essa falta de protocolo de identificação dos corpos é um ranço da ditadura. “Acho que não tinha um olhar muito claro para a seriedade do tema. Não tinha uma política pública só para isso. Não só para desaparecidos, para qualquer outra causa. Além disso, nós passamos por um período de ditadura e eu tenho certeza que ele influenciou na ausência de protocolos para que os mortos fossem identificados claramente.”

O superintendente da Polícia Técnico-Científica, responsável pelo IML no Estado de São Paulo, doutor Ivan Miziara, não admite que existam falhas no serviço. “A primeira coisa que é feita quando um corpo dá entrada em alguma unidade do IML é a identificação daquele corpo. São colhidas as planilhas datiloscópicas [digitais] e enviadas imediatamente ao Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt [IIRGD] para a realização do confronto digital.”

O IIRGD faz esse confronto manualmente, num trabalho arcaico, onde papiloscopistas usam uma lupa para checar as marcações digitais nas papeletas, um processo que demora até duas horas. Em outubro de 2014, o governo do estado comprou o software Afis (Automated Fingerprint Identification System, ou Sistema de Identificação Automatizada de Impressões Digitais), que permite o confronto imediato das digitais cadastradas no sistema. Mas por enquanto apenas as digitais de pessoas que têm o novo modelo de RG, lançado em fevereiro de 2014, são inseridas no sistema.

Quando o corpo pertence a alguém que tem RG de outro estado, o IIRGD não consegue fazer a identificação. Em casos excepcionais, eles recorrem à Polícia Federal, que tem cadastradas as digitais de todos os cidadãos brasileiros com passaporte. No Brasil não existe um cadastro nacional de digitais.

Após as reuniões com o MP, Ivan Miziara idealizou um banco de dados para integrar todas as 72 unidades do IML, onde seriam inseridos dados, fotos e características dos corpos periciados. O banco de dados começou a ser criado em setembro de 2015 e foi prometido para junho de 2016.

Delegacia de Desaparecidos

A 4ª Delegacia de Desaparecidos, do DHPP da Polícia Civil, concentra todas as informações de desaparecidos do Estado de São Paulo. Após muita insistência com a Secretaria de Segurança Pública, a promotora Eliana Vendramini conseguiu o número total de desaparecidos registrados em BO no Estado de São Paulo em 2013: 18 mil. Destes, apenas 51 casos eram investigados.

O desaparecimento forçado – que pode ser por sequestro, assassinato, ocultação de cadáver, tráfico de pessoas – é considerado crime no Brasil. Quando existem indícios de que o desaparecimento está relacionado a uma causa criminal, a Polícia Civil abre um inquérito policial e passa a investigar o caso. Nos demais casos, não existe investigação, apenas pesquisas em bancos de dados.

Para o Ministério Público (MP), porém, mesmo não havendo indício aparente de crime, se a família acha um desaparecimento suspeito, a delegacia procurada deveria começar a investigar imediatamente.

Não adianta, diz Eliana, registrar desaparecimentos e simplesmente esperar a pessoa voltar.

Por causa dessa inércia, normalmente quem acaba fazendo a investigação são os próprios familiares, que embarcam numa busca desorientada por hospitais, IMLs, albergues, pontos de usuários de drogas, grupamentos de moradores de rua etc.

Luiz Henrique Marchioro, ator, 25 anos

No dia 2 de janeiro, Vera Lúcia Marchioro acordou com o barulho de pneus cantando e a porta da garagem batendo. Levantou assustada e percebeu que seu filho Luiz saíra, agitado. Estranhou; ele não gostava de dirigir e raramente pegava o carro. Havia algo errado.

Luiz Henrique Marchioro, de 22 anos, morreu em 2 de janeiro, mas só foi encontrado pela família, já enterrado, 31 dias depois (Foto: Arquivo pessoal)

Luiz Henrique Marchioro, de 25 anos, morreu em 2 de janeiro de 2014, mas só foi encontrado pela família, já enterrado, 31 dias depois (Foto: Arquivo pessoal)

Vera passou o dia tentando fazer contato com o filho, sem sucesso. Esperou-o à noite. Ele não voltou. Entrou em contato com vários amigos. Ninguém sabia dele. No dia seguinte, uma sexta-feira, de manhã, ainda sem notícias do filho, resolveu ir até a delegacia mais próxima registrar um BO de desaparecimento.

Na Delegacia de Polícia da Vila Clementino, zona sul de São Paulo, a escrivã tentou tranquilizá-la. Disse que era muito comum jovens sumirem por uns dias e ficarem sem dar notícias. Logo ele estaria de volta, garantiu. Ainda assim, recomendou que Vera procurasse a Delegacia de Desaparecidos para fazer o registro no banco de dados. Apesar de estar cada vez mais certa de que algo havia acontecido, Vera tentou ser otimista e seguiu em busca do filho.

Apenas na segunda-feira seguinte conseguiu ir pessoalmente até o DHPP. Saindo dali, foi ao IML Central, atrás do Hospital das Clínicas. Disse que procurava pelo filho desaparecido. Pediu para ver as fotos dos corpos que haviam dado entrada recentemente. Um deles lhe chamou atenção. Parecia o seu filho. Mas tinha o rosto bastante inchado. Ela perguntou se o jovem da foto tinha tatuagens – Luiz tinha uma tatuagem no braço – e foi informada que não. Vera respirou aliviada e seguiu em sua busca.

Enquanto isso, os amigos começaram uma campanha pelas redes sociais. O post foi amplamente compartilhado e chegou ao programa A Tarde é Sua, da Sônia Abrão, da TV Record, que convidou Vera para contar sua história. Logo depois ela foi contatada pelo programa Balanço Geral, da mesma emissora, e o caso foi ganhando visibilidade.

Vera continuou sua busca aflita para descobrir o paradeiro do filho. Falou com moradores de rua, foi a hospitais, circulou pelos lugares que ele costumava frequentar. Fez um cartaz com uma foto de Luiz e espalhou por vários lugares.

Finalmente, no dia 3 de fevereiro, ela recebeu uma visita dos investigadores do DHPP. Seu filho havia sido localizado. A polícia confrontou as digitais de Luiz com as de um jovem que cometera suicídio no dia 2 de janeiro.

Luiz havia tirado a própria vida ao saltar da ponte da avenida Doutor Arnaldo sobre a Avenida Sumaré, zona oeste da cidade. O suicídio foi registrado na 23ª Delegacia de Polícia, em Perdizes, e seu corpo encaminhado para o IML Central, onde permaneceu por 19 dias, até ser enterrado no cemitério Dom Bosco, em Perus, no dia 21 de janeiro.

Segundo a polícia, Luiz estava sem documentos ao ser encontrado, sendo identificado por meio da planilha datiloscópica quase um mês depois. Vera foi orientada a ir ao IML Central novamente para reconhecer a foto do filho. Para sua surpresa, mostraram as mesmas fotos que ela havia visto um mês antes. Ele tinha tatuagem? – repetiu. Dessa vez o atendente disse que sim. Era o filho dela. “Para uma mãe, para um cidadão, que paga seus impostos, saber que o seu filho foi enterrado como indigente… é uma palavra que… dói. Dói muito”, diz Vera.

Vera quer tirar o filho do cemitério público para dar a ele uma cerimônia digna e depois cremá-lo, como costumam fazer na religião espírita. Teve de começar um processo judicial para requerer a exumação – mas antes precisou retificar o registro, já que ele foi enterrado como desconhecido. O processo se arrasta na Justiça. Em janeiro de 2017 se completarão três anos desde que Luiz foi enterrado e Vera já poderá exumá-lo amparada pela lei.

Seis meses depois do suicídio, acompanhei Vera na sua primeira e única ida ao Dom Bosco. Passamos na floricultura em frente ao cemitério; ela comprou flores e se dirigiu à Quadra 3, Gleba 3, Terreno 99. Passamos por um terreno repleto de túmulos, enfeitados com lápides, fotos e flores, todos com nome, grama bem aparada. Eram as quadras “de família”.

Mas Luiz estava em outro terreno. Ali não havia nenhuma marcação, nenhuma flor. Apenas algumas estacas de madeira em meio à mata crescida, montes de terra revirada e valas abertas prontas para receber mais corpos.

Um coveiro veio ao nosso auxílio e ajudou a localizar a cova de Luiz. Era ao lado da estaca nº 100, o que facilitou a localização. Vera ficou decepcionada mais uma vez. “Esperava que fosse ter uma marcação, sei lá. Estou vendo mais desrespeito, mais descaso. Eu preciso crer que meu filho está aqui. A minha vontade é desenterrar ele, tá facinho. Se eu der uma escavada com a mão eu chego no caixão.”

Ainda era difícil para Vera aceitar que o filho havia falecido. “Nós não tivemos o corpo, não tivemos nada.” Família e amigos organizaram um sarau para a despedida: prepararam um mural com fotos, trabalhos e poemas escritos por Luiz. “Nós precisamos sentir que o Luiz morreu”, resumiu a mãe.

De acordo com o artigo 551 do Decreto Estadual nº 16.017/80, passados três anos (para adultos) e dois anos (para crianças até 6 anos) da data de sepultamento, o parente mais próximo do(a) falecido(a) poderá requerer a exumação.

A delegada Maria Helena Nascimento, titular da Delegacia de Desaparecidos do DHPP desde o início de 2013, conta que eles registram cerca de 20 desaparecimentos por dia, e cada caso gera um procedimento de investigação. Apenas nesse ano, até agosto, já eram em torno de 4.800 Procedimentos de Investigação de Desaparecimento (PIDs). Desde que foi instaurada, em 2014, a portaria da Delegacia Geral da Polícia Civil nº 21, que definiu diretrizes de casos de desaparecimentos, já foram abertos mais de 18 mil PIDS.

O PID consiste na inserção do caso no sistema de buscas da delegacia, que inclui diversos bancos de dados como o da Prodesp (Companhia de Processamento de Dados de São Paulo), Infocrim (banco de dados de informações criminais), câmeras de segurança em estradas, ruas, e aeroportos, e Secretaria de Saúde.

“O cruzamento de dados é feito, mas às vezes ele demora um pouquinho devido à complexidade do trabalho”, diz a delegada, que garante que o objetivo é devolver a pessoa à família, viva ou morta. Sempre que eles localizam um desaparecido, eles tentam avisar a família o mais rápido possível. Mas, diz ela, “algumas pessoas parece que viram encanto. A gente procura em todos os lugares possíveis e não tem de onde tirar.”

Maria Helena não soube precisar o número de casos que a delegacia consegue solucionar, mas disse que em torno de 90% dos desaparecidos retornam por conta própria. Ela afirma que os casos de pessoas desaparecidas que entraram em óbito representam uma parcela pequena de todo o universo de desaparecimentos que eles investigam.

Dimas Ferreira Campos Júnior

A última vez que Dimas Ferreira Campos Júnior foi visto pela família foi em 19 de junho de 2015. Pai de dois filhos, ele havia se separado da mulher e voltado a morar com os pais. Trabalhava como g

Dimas com seus filhos (Foto: Arquivo pessoal)

Dimas com seus filhos (Foto: Arquivo pessoal)

erente de uma loja em Heliópolis, onde morava, tinha problemas com álcool e costumava ficar longos períodos sem aparecer em casa. Por isso, quando ficou uns dias sumido, a família não estranhou. Começaram a se preocupar duas semanas depois. Ao contatar o local de trabalho de Dimas, souberam que fazia muito tempo que ele não aparecia.

Começou então uma busca pelo bairro. Seus irmãos resolveram fazer um BO de desaparecimento na delegacia local, no Sacomã, mas não conseguiram. O delegado de plantão se recusou a registrar o desaparecimento de Dimas e disse que eles teriam de ir à Delegacia de Desaparecidos, no centro de São Paulo, embora a nova portaria da Polícia Civil determine que o BO de desaparecimento pode ser feito em qualquer delegacia e que a mais próxima do desaparecimento é que deve investigar o caso.

No DHPP, depois de terem passado todas as informações, foram informados de que a delegacia estava “sem sistema”. Como o investigador havia anotado tudo, imaginaram que iria inserir no cadastro assim que o sistema voltasse a funcionar. Ali, foram orientados a procurar também nos IMLs. Foram ao IML Central, sem sucesso, e também ao IML Sul, que era mais próximo de onde moravam. Neste, olharam as fotos dos corpos que lhes foram mostradas; nenhuma era de Dimas. O atendente então informou que havia outros corpos que tinham dado entrada recentemente, mas por causa de problemas técnicos não puderam inserir as fotos no computador. Se quisessem, poderiam ir ver os corpos. Um dos irmãos, Daniel, acompanhou o funcionário até a sala ao lado, onde ele abriu várias gavetas com corpos. Nenhum era seu irmão.

O mistério do desaparecimento de Dimas só foi resolvido 48 dias mais tarde, em 11 de agosto, quando Eliana Vendramini foi pessoalmente procurar uma irmã de Dimas acompanhada de uma equipe do programa Profissão Repórter, da TV Globo, para informar que Dimas havia falecido e já estava enterrado no cemitério de Perus.

Dimas morreu de ataque cardíaco em via pública na madrugada de 3 de julho e foi recebido no IML Sul no dia 4 de julho pela manhã. Ele estava sem documentos, mas, como tinha RG de janeiro de 2015, foi identificado pelas digitais. Seu enterro ocorreu 19 dias depois, em 23 de julho. Quando seus irmãos foram fazer o BO pela primeira vez, Dimas já estava no IML, possivelmente em uma das gavetas que não foram abertas. Ao voltarem ao DHPP pela segunda vez, Dimas ainda estava no IML.

A família só conseguiu uma foto com ajuda do MP, com uma pessoa que havia fotografado o corpo de Dimas na rua. Quando foi identificado, ele tinha BO de desaparecimento, mas não se fez cruzamento de dados. Ela esteve no IML quando o corpo de Dimas estava lá, mas não abriram a gaveta onde ele estava.

Os familiares não puderam resignificar o luto pela ausência de uma foto e pelo fato de o corpo já estar enterrado. Agora estão movendo uma ação contra o Estado com apoio do MP. Em meados de agosto, ela foi contatada pelo DHPP e em setembro foram até a Corregedoria da Polícia para prestar depoimento. A Corregedoria prometeu investigar o ocorrido.

Nem no DHPP nem no IML ninguém foi capaz de cruzar os dados com o BO de desaparecimento e avisar sua família antes que ele fosse enterrado como indigente.

Novo banco de dados: solução?

Em maio de 2016, a promotora Eliana Vendramini foi apresentada a um protótipo do banco de dados do IML que será compartilhado com a Delegacia de Desaparecidos e para impedir que pessoas procuradas sejam enterradas como indigentes. O banco receberia todos os dados dos corpos que derem entrada no IML assim que o laudo necroscópico ficar pronto, e a Delegacia de Desaparecidos poderia acessar aquilo na mesma hora.

“O problema continua acontecendo até os dias de hoje, mas foi montado desde 2015 até hoje um banco de dados. Um banco de dados que inclui todos os IMLs do Estado de São Paulo, não só capital, todos os dados daquele corpo, seja nome, na ausência do nome dados físicos, fotografia, vestimenta, tudo que é necessário para que a Polícia Civil receba na hora, assim que sobe o laudo, os mesmos dados e não tenha mais a dificuldade de avisar a família dessa pessoa em tempo de ela não ser enterrada como indigente”, explicou a promotora à reportagem da Pública.

Eliana citou também o Portal de Transparência de dados criminais do governo do estado, lançado em maio de 2016, onde seriam publicados todos os óbitos que passam pelos IMLs do estado, proporcionando uma ferramenta de pesquisa para o público.

No entanto, um mês depois da data anunciada para o lançamento do banco de dados do IML com a Polícia Civil, no dia 7 de julho, a reportagem encontrou o caso de Midian de Arruda dos Santos, de 25 anos, falecida em via pública em 14 de junho de 2016. Com uma simples busca no Google, apareceu um link para a página da ONG Mães da Sé, que busca por desaparecidos. E lá estava a foto de Midian como desaparecida em um post datado de 17 de junho. Na mesma página, constava outro post, de 1o de julho, informando que ela havia sido localizada, já em óbito. Porém, no site da Polícia Civil, Midian continuava desaparecida, 22 dias depois de ter sido enterrada no cemitério de Vila Formosa.

Embora a promotora Eliana tenha ficado bastante entusiasmada com o banco de dados do IML, por enquanto ele não vai impedir que pessoas desaparecidas sejam enterradas como indigentes. O cronograma está atrasado – segundo a Superintendência do IML, até início de setembro apenas 27 das 72 unidades estavam integradas ao sistema. Ivan Miziara explicou que os técnicos estão visitando os IMLs no estado e ajustando alguma coisa na capital. “Ainda não apresentaram um cronograma, mas, segundo o responsável pelo Departamento de Informática, em mais algumas semanas o sistema estará OK em todos os IMLs do estado”, disse ele 5 de setembro de 2016.

Além disso, os dados serão inseridos no banco de dados só quando o laudo necroscópico estiver pronto, o que leva no mínimo dez dias, mas pode levar mais. O laudo de Midian ainda não estava pronto dois meses depois de ela ter passado pelo IML.

A reportagem foi a duas unidades na capital – Leste e Central – e em ambas ouviu que eles não tinham acesso aos dados de outras unidades.

Na Superintendência do IML, em agosto o próprio Ivan Miziara mostrou o banco de dados, mas dos quatro casos descobertos na investigação (veja o minidoc “Indigente”), apenas um estava cadastrado. E, ainda assim, os dados pessoais estavam incompletos.

Quando foi lançado em maio, o Portal de Transparência só tinha dados dos IMLs até março. Até agosto não havia sido atualizado. Apontamos a falta de atualização a Ivan Miziara, que se mostrou surpreso com a informação, pois, segundo ele, os dados são repassados à Secretaria de Segurança ao final de cada mês e cabe a eles fazerem a atualização no sistema. Ele garantiu que publicou uma ordem de serviço da Superintendência da Polícia Técnico-Científica determinando que todos os dirigentes das unidades do IML destaquem um servidor para atuar no encontro de familiares de pessoas que passam pelos serviços de necropsia das unidades.

Depois de nossa conversa, em setembro eles finalmente atualizaram os dados até agosto. Até o dia 25 de outubro, os dados de setembro ainda não haviam sido inseridos.

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