Abro as janelas. Nos pés de cana-de-açúcar, o fogo persegue a própria sombra. Dentro do carro, aponto os faróis contra a escuridão. O incêndio se precipita às margens da rodovia e avermelha as nuvens e adensa a voz de Gal, nas caixinhas de som, cantando “Três da madrugada”. Centenas de brasas flutuam [ou dançam, ou se esquecem de si] sobre o canavial. Volto a música, aumento o volume. As brasas não intencionam o céu. Flertam, indecorosas, com sua distância. Penso que nem tudo, nem todos procuram o céu. Um Fiat velho me ultrapassa a cento e quarenta por hora. Lanterna direita queimada, cano de escape furado, barulho, barulho. Recomeço a canção. Alguns, como eu, querem apenas o gosto da sua profundidade. Minha língua percorrendo os seus vazios. Meus dedos reconhecendo as suas reentrâncias. Como o fogo sobre as folhas, mas lentamente, um afago que somente se insinua à dor. Tarde de sábado. Eu, nua, sentada à mesa da sala com uma xícara de chá de carqueja e um romance de Lygia Fagundes Telles às mãos; você, nua, adiando as provas a corrigir, repetindo compulsivamente a mesma canção, achando excessivamente triste a crônica nova de Roberto no jornal; e Gal, quero crer, nua, alardeando a todo a vizinhança que “essa rua não tem mais nada de mim” e entre nós duas resta aquela espécie de calor espesso que sobra sempre que dois corpos, há pouco embaraçados, afastam-se para arfar [ou se sorrir, ou se esquecer de si]. Avisto um gato atravessar a estrada. Os olhos do bicho se agigantam e revertem dois faróis contra mim. Freio a tempo de permitir a sua passagem. Ele foge do fogo. Eu sinto sua falta. E sinto uma massa negra de fuligem se deslocar do canavial até a nossa rua, dezenas de quilômetros além, explodindo marcas de cinzas nas paredes da casa que, em janeiro, pintamos juntas, você preferiu azul claro, por conta da visita de seus pais. Passo pelo posto da polícia rodoviária. O incêndio parece saltar das palhas de cana para o interior do carro. Centenas de gatos se agarram às camadas de minha alma. Arranham, ronronam, miam. Uma manada de angorás, siameses, persas, vira-latas cravando as unhas em sua ausência. Não me machucam, sequer me atrapalham. O que me atrapalha nesta escuridão de estrada, nestas nuvens vermelhas, é a voz de Gal, fora da qual já não consigo afiar os dentes [ou as palavras, ou me esquecer de mim]; é eu só haver compreendido a sua partida na noite em que você deixou a ração do gato terminar. É esta falta, esta falta, esta falta.
Edição: ---