Luta por moradia

Oito anos do assassinato de Celso Eidt

Passados oito anos, a área em que Celso Eidt foi morto permanece cercada e vazia

Curitiba |
Para nós, que militamos no movimento popular de Curitiba, 5 de novembro marca o brutal assassinato, com 15 tiros, de Celso Eidt
Para nós, que militamos no movimento popular de Curitiba, 5 de novembro marca o brutal assassinato, com 15 tiros, de Celso Eidt - Arquivo Cefuria

"Três feras de capuz,
atrás de sangue pra matar a sede,
ali naquela cruz
tombaram o companheiro Celso Eidt",

Versos de um rap incompleto

 

O dia 5 de novembro traz, para a esquerda brasileira, a lembrança de Carlos Marighella, assassinado nessa data, em 1969, por um comando das forças de repressão chefiado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.

Para nós, que militamos no movimento popular de Curitiba, o 5 de novembro marca, além desse, outro fato, igualmente tocante: o brutal assassinato, com 15 tiros, de Celso Eidt, ocupante da calçada da rua João Dembinski, duas semanas após o truculento despejo da Ocupação da Fazendinha, por 1200 homens da Polícia Militar do Paraná, poucos dias após a reeleição em primeiro turno do prefeito Beto Richa, quando o governador era Roberto Requião e o secretário de Segurança era Luiz Fernando Delazari, na quinta-feira, 23 de outubro de 2008.

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Apesar de formalmente localizada no bairro do Campo Comprido, ela ficou conhecida como Ocupação da Fazendinha. Visitei-a pela primeira vez logo após o primeiro turno de 2008, em companhia do companheiro Bruno Meirinho, que, com 26 anos, acabava de concorrer à prefeitura de Curitiba pelo PSOL. A chegada das famílias ao terreno havia se iniciado cerca de um mês antes, durante o feriado de 7 de setembro.

A área, segundo se dizia, pertencia a uma empresa do Grupo CR Almeida, que talvez a houvesse obtido por permuta, com a prefeitura, de outro terreno, que hoje compõe o Parque Barigui. A informação, porém, nunca me pareceu realmente segura. Havia no local um caseiro (cujo nome, infelizmente, não me recordo), que também reivindicava a propriedade do terreno. Contava-se que, no dia mesmo em que se iniciava a Ocupação, policiais militares estiveram no local, mas não impediram a construção dos barracos, justamente porque esse caseiro apresentou-lhes uma escritura da área.

Dizia-se também que membros da própria família Almeida haviam aparecido nos primeiros dias e teriam autorizado, incentivado mesmo, que a área fosse ocupada. Naquele 2008, tanto Caco Almeida (Carlos do Rego Almeida Filho), quanto Nely Almeida foram candidatos a vereador. (Sobre a família de Cecílio do Rego Almeida, consulte-se o estudo genealógico empreendido pelo companheiro do MTST-PR, Fernando Marcelino Pereira, publicado na Revista NEP – Núcleo de Estudos Paranaenses, edição de maio de 2016.)

Não estou, evidentemente, afirmando que qualquer desses rumores corresponda à verdade (nem que não corresponda). Registro, apenas, uma narrativa comum às moradoras e moradores da área, naquele momento.

A Ocupação, de qualquer modo, crescera rapidamente, atingindo centenas de famílias. No começo de outubro, as moradias já eram relativamente bem estruturadas (embora, obviamente, de madeira), as ruas já estavam cortadas, e os finais de tarde eram bastante animados. Após o início um tanto espontâneo, esforçavam-se para organizar as moradoras e moradores a companheira Maria das Graças e o companheiro Luís Herlain, que já então militavam há duas ou três décadas em favor da moradia digna em Curitiba.

As ameaças de despejo, contudo, eram crescentes, sobretudo após a esmagadora vitória de Beto Richa, com 80% dos votos válidos para prefeito de Curitiba.

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Naquele 23 de outubro, acordamos ainda de madrugada e nos dirigimos à Ocupação, eu, o Wesley Venâncio e o Pedro Carrano, que militávamos no Coletivo Despejo Zero (pequeno, apesar do nome ousado, mas sempre aguerrido). Lá encontramos dois companheiros anarquistas (cujos nomes não anoto porque não estou certo se gostariam, mas cujo valor naquele momento foi indiscutível). Quando chegamos, já havia pneus em chamas, e não apenas os moradores estavam acordados. A Ocupação situava-se em frente a uma antiga área igualmente ocupada, a Vila Sandra, que também despertou mais cedo.

Na memória ficou-me o primeiro contato com a dona Antônia, que, com boné do MST, passava encorajando: “Não arreda o pé, povo!”. E o Moacir, que, aflito e confiante, corria com o filho de um ano ao colo.

O despejo se deu em duas frentes, ambas na rua João Dembinski. Do lado de baixo, que vai para o terminal da Fazendinha, formou-se um cordão humano, organizado às pressas. Uma resistência importante, que mereceu foto na primeira página do Jornal do Estado, mas que acabou facilmente rompida pela Tropa de Choque. Do lado de cima, mais próximo à Vila Sandra, muitas mulheres, com seus filhos e filhas, se ajoelharam, cantando o Hino Nacional e segurando uma enorme bandeira do Brasil, numa cena emocionante para todos os que acreditamos na força e na luta popular. A foto delas ajoelhadas, atrás do fogo, dos pneus e da bandeira, estampou, no dia seguinte, a primeira página da Folha de S. Paulo.

Rompidos os bloqueios, a Polícia Militar entrou na área e queimou dezenas de moradias, agredindo, inclusive fisicamente, um grande número de ocupantes. Mobilizaram-se, como já mencionado, nada menos que 1200 policiais, que usaram não apenas cacetes e escudos, mas também bombas e balas de borracha. Uma dessas balas atingiu no rosto o companheiro Anderson Leandro da Silva, cinegrafista do Cefuria (Centro de Formação Urbano-Rural Irmã Araújo). A filmagem do momento em que ele é alvejado foi especialmente reproduzida naqueles dias.

Outro triste registro: também o companheiro Anderson acabou assassinado, quatro anos mais tarde, às vésperas de prestar depoimento sobre o tiro de borracha recebido quando filmava a ação policial. Finalizadas em poucos dias, as investigações sobre seu assassinato concluíram que se tratou de uma desavença pessoal.

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No dia seguinte ao despejo, o governador Roberto Requião e o secretário de Segurança Luiz Fernando Delazari resolveram tomar uma providência e afastaram os comandantes da ação policial, repreendendo-os publicamente pelos seus excessos. Nada se falou, porém, sobre, por exemplo, abrigar as famílias despejadas, oferecer-lhes aluguel social ou recriminar-se por disponibilizar 1200 homens armados de bombas e balas de borracha para despejar número semelhante de pessoas, sem que nem de longe se houvessem esgotado as possibilidades de diálogo – como se toda essa combinação não fosse, por si só, um “excesso”.

O constrangimento do poder público, entretanto, não foi o único fato do dia. Houve também outro, mais verdadeiro e menos protocolar. Indignadas pela forma bárbara com que foram tratadas, sem efetivamente contarem com qualquer local para se abrigar, cerca de 100 famílias despejadas retornaram, na noite do mesmo dia 23 de outubro, e construíram barracos nas calçadas das ruas Theodoro Locker e João Dembinski. Era a segunda fase da Ocupação da Fazendinha: a Ocupação da Calçada.

Lá conviveram centenas de pessoas, como o seu Madruga (penso que em todas as vilas e ocupações do Brasil deva haver um seu Madruga); o “índio velho” Gianechinni (que recebeu esse apelido porque não era considerado particularmente bonito); a Patrícia, uma moça valente que, vendo-se, no dia do despejo, ferida de raspão por uma bala de borracha, dirigiu-se à Tropa de Choque e também lhe despejou toda a sorte de pungentes verdades; o Paulo, cunhado da Patrícia; o Joel e a Isabel, que fundaram o que talvez tenha sido a primeira Associação de Moradores de uma calçada.

Foi nesse contexto que morreu Celso Eidt, um catarinense de 38 anos, que resistiu com parentes em dois barracos na rua João Dembinski.

Alguns dias após o despejo, a empresa alegadamente proprietária do terreno mandou construir cercas em volta da área, que passou a ostentar vários seguranças armados. Pelo que se contou, na tarde da quarta-feira, 5 de novembro, Celso Eidt teria se desentendido com um desses seguranças, a propósito de alguns canos de água. À noite, três homens encapuzados invadiram o barraco em que ele jogava baralho com familiares, mandaram que todos se afastassem e o mataram com 15 tiros, disparados de pistolas com silenciador. Que eu saiba, o crime até hoje não foi elucidado.

Após sua morte, a Ocupação da Calçada recebeu o nome de Ocupação Celso Eidt.

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A Ocupação Celso Eidt resistiu por oito meses e, afinal, também foi despejada, em 25 de junho de 2009. Sim: por ordem judicial, homens, mulheres e crianças sem-teto, que ocupavam barracos montados em uma calçada, foram despejados dessas moradias improvisadas por cerca de 200 homens da Polícia Militar, com apoio de tratores e um helicóptero, sem que o poder público lhes disponibilizasse qualquer alternativa razoável de moradia ou auxílio-aluguel, nada além de sua inclusão entre as dezenas de milhares de famílias na lista da Cohab.

O prefeito ainda era Beto Richa, o governador ainda era Roberto Requião, o secretário de Segurança ainda era Luiz Fernando Delazari.

Naquela noite, cerca de 50 pessoas, incluindo crianças e uma moça grávida, se abrigaram em uma garagem, generosamente cedida por uma senhora septuagenária, antiga liderança da Vila Sandra. De madrugada, policiais de um grupo de elite da PM, temerosos talvez de nova ocupação da calçada, invadiram o local e, com toda a ênfase que sua autoridade permite, preveniram a todas e todos que não permanecessem nas imediações.

No dia seguinte, várias dessas famílias, graças à determinação militante das líderes comunitárias Cláudia Antônia Roberto e Josi de Oliveira Deninski, foram acolhidas no Jardim Itaqui, na periferia de São José dos Pinhais, a mais de vinte quilômetros de distância, em áreas enlameadas que transformaram em moradia. Lá, a Aline, moradora da Calçada, com apenas 14 anos, teve seu filho e cuida de seu pequeno irmão Manoel. Também lá morreu, de câncer, o seu Pita, deixando sozinho o filho Willian, um menino forte e inteligente. E sua ex-esposa, dona Solange, cria os vários filhos, inclusive o Ricardo, cadeirante desde que recebeu três tiros, numa meia-noite no Cajuru, tendo sido socorrido apenas três horas mais tarde.

Até hoje, passados oito anos, a área da Ocupação da Fazendinha permanece cercada e vazia.

Por tudo isso, o dia 5 de novembro, embora muito triste, é uma data especial para o movimento popular de Curitiba e Região Metropolitana. Representa, com toda clareza, a farsa do mito da cidade-modelo que há tantas décadas nos assombra. E atesta, com a mesma veemência, a força, a coragem e a resistência que o povo de Curitiba e do Paraná emprega em favor da vida digna.

Que a tenacidade de Celso Eidt e também o seu martírio, como toda morte injusta, motivem nossa profunda reflexão e inspirem a continuidade de nossa luta.

*Paulo Bearzoti Filho é da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto do Paraná (MTST) 

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