O Sistema Único de Saúde (SUS) enfrenta o momento mais crítico de sua história. Nos mais de 30 anos de luta pela Reforma Sanitária Brasileira, as medidas anunciadas pelo Governo Temer dão um duro golpe capaz de ferir de morte o SUS. E, em essência, revelam o que pensam a burguesia e as elites econômicas: a saúde não é um direito de todos e não é um dever do Estado.
O SUS na nação tupiniquim
A saúde do povo brasileiro nunca foi preocupação para os grupos políticos dominantes. As poucas iniciativas do Estado para organizar sistemas de saúde respondiam, na realidade, aos interesses de classe desses grupos: as medidas higienistas e de vacinação em massa, no século XIX, para garantir saúde sanitária nas cidades portuárias e viabilizar exportações; a criação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) na ditadura militar em 1974, estruturado por grandes hospitais privados prestadores de serviços para garantir lucros de grupos empresariais nacionais.
Somente no processo das lutas sociais, na redemocratização do Brasil, constituiu-se o movimento pela Reforma Sanitária Brasileira que trouxe ao centro do debate a saúde como um direito social garantido pelo Estado. E o SUS é a materialização de uma vitória dos setores populares no final da década de 80. Saúde e democracia, portanto, são irmãs siamesas. Não existem em separado.
Não por acaso, o golpe midiático, jurídico e parlamentar em curso ameaça a democracia e o direito à saúde.
Os ataques ao SUS
O Ministro do Golpe de Estado da Saúde, Ricardo Barros, logo ao assumir afirmou, em entrevista à Folha de S. Paulo, no dia 17 de maio de 2016, que “nós não vamos conseguir sustentar o nível de direitos que a Constituição determina”. No dia seguinte, disse ter sido mal interpretado. Mas, todas as ações subsequentes do governo Temer reafirmam a declaração inicial.
O Teto dos Gastos Públicos
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, agora PEC 55 no Senado, é prioridade do governo Temer. Ela pretende implantar o Novo Regime Fiscal e estabelecer um novo teto para o gasto público, que terá como limite a despesa do ano anterior corrigida pela inflação. A regra de congelamento do gasto público, em termos reais, valerá por 20 anos.
Na prática, a PEC 241 (ou 55) acaba com uma vitória histórica da Reforma Sanitária Brasileira: a garantia de investimento mínimo em saúde. Na Constituição Federal de 1988, o artigo 198 e a Emenda Constitucional (EC) 29 garantem a lógica de aplicação mínima de recursos no SUS, pois vincula as despesas com saúde a percentuais da receita de impostos.
No caso da união, valeria hoje regra da Emenda Constitucional 86 com aplicação mínima de 15% das Receitas Correntes Líquidas a partir de 2020. A luta central do movimento popular de saúde é pela aprovação da PEC 01/2015, fruto da mobilização da sociedade no Movimento “Saúde +10” que apresentou 2 milhões e 100 mil assinaturas por 10% das receitas correntes brutas da união para a saúde. Mas, como mostra a tabela abaixo, elaborada pelo Grupo Técnico Interinstitucional de Discussão do Financiamento do SUS, ligado ao Conselho Nacional de Saúde, se essa regra da PEC 241 (ou 55) estivesse em vigor desde 2002, o orçamento do Ministério da Saúde, que em 2015 foi R$ 100 bilhões, seria pouco mais de R$ 55 bilhões. Em síntese, mais de 40% do orçamento do Ministério da Saúde estão ameaçados, por 20 anos.
Estimativas das perdas se a PEC 55 estivesse em vigor desde 2003
E o governo federal já estuda como garantir o mesmo mecanismo de teto para o orçamento dos estados. Uma das possibilidades é pressionar os governadores a se comprometerem com tal medida para renegociarem suas dívidas com a União.
A desvinculação das receitas da união
Criada por Fernando Henrique Cardoso e mantida por Lula e Dilma, a Desvinculação das Receitas da União (DRU) foi agora estendida até 2023 e teve seu percentual elevado a 30% com a EC 93. Ela garante que 30% da arrecadação da União possa ser desvinculada do órgão, fundo ou despesa a que se destinam. Ou seja, mesmo com o orçamento do Ministério da Saúde de R$ 109 bilhões em 2016, Temer pode simplesmente não aplicar até 30% desse recurso na saúde. Na prática, esse mecanismo facilita a meta do superávit primário e sinaliza aos credores da dívida pública que seu pagamento está garantido. Lembramos que os títulos da dívida pública estão indexados à taxa Selic, no momento em 14,25% ao ano. Bem mais do que rende a poupança, principal forma de investimento do povo brasileiro, que rende menos do que a inflação nos últimos anos. Ou seja, a DRU retira dinheiro de políticas públicas para repassar a grandes empresários especuladores.
Destino dos recursos do pré-sal
O pré-sal era apontado como uma das principais novas fontes para as políticas públicas. Estima-se que em 10 anos significaria um acréscimo de R$ 170 bilhões na saúde e na educação. O PL 4567/16, de autoria de José Serra, aprovado no início de outubro no Congresso Nacional, acaba com a garantia legal de que a Petrobras participe em, pelo menos, 30% de cada jazida do pré-sal que for explorada. Em consequência, os lucros do petróleo podem ir para as multinacionais como Exxon Mobil ou Shell, e não para melhorar a vida do povo brasileiro.
Planos Populares de Saúde
Todas as medidas financeiras vieram de iniciativa do núcleo duro do governo: Michel Temer, Henrique Meirelles e Eliseu Padilha. Ao desprestigiado Ministério da Saúde, comandado por um engenheiro do Partido Progressista (PP), Ricardo Barros, coube a iniciativa de implantação dos Planos Populares de Saúde.
Ricardo Barros anuncia que, como a “fila” do SUS é grande, cabem aos Planos de Saúde ajudar na assistência à população. Mas, para isso, eles devem ser barateados. Assim, esses planos podem oferecer menor cobertura assistencial e ser submetidos à menor fiscalização da Agência Nacional de Saúde (ANS), órgão do Ministério da Saúde responsável por fiscalizar a saúde suplementar.
No entanto, os cerca de 50 milhões de brasileiros que são cobertos por planos de saúde, bem sabem: quando precisam de procedimentos mais caros, como transplantes, quimioterapia ou cirurgias complexas, recorrem ao SUS. Além disso, o SUS oferece não apenas assistência médica, mas também distribuição de medicamentos, vacinações, vigilância sanitária e atendimentos de urgência pelos Serviços de Resgate.
Não por acaso, Ricardo Barros foi eleito deputado federal tendo como maior doador Elon Gomes de Almeida, presidente do Grupo Aliança, gigante de planos de saúde na região do oeste Paranaense.
Os ataques aos direitos sociais
A saúde não depende apenas do acesso a serviços de saúde. É evidente a todos que renda, condições de trabalho, educação, moradia e transporte são parte dos determinantes de saúde e doença de um indivíduo e da população. Nesse sentido, os ataques a outros direitos sociais também podem piorar as condições de saúde. Os cortes anunciados em programas com Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, PRONATEC, PROUNI e FIES podem impactar as condições de saúde da população.
No campo da legislação trabalhista, existe uma série de projetos em tramitação, na Câmara Federal, os quais o Governo Temer anuncia desejo de aprovar. Os mais danosos são permitir que o negociado entre uma categoria e seu patrão imediato prevaleça sobre as normas legais e a regulamentação das terceirizações. Com o primeiro, todos os direitos garantidos na CLT, como as férias, jornada semanal de 44 horas, 13º salário e descanso semanal remunerado estão em risco. A regulamentação das terceirizações significa piores condições de trabalho e diminuição de salários, como bem sabem as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros.
Já sobre a Reforma da Previdência, o governo Temer decidiu apresentar suas propostas apenas após as eleições municipais de outubro. Medo das urnas. Mas, as declarações de seus principais ministros anunciam o que virá: aumento da idade mínima para aposentadoria, equiparação da idade mínima para homens e mulheres, aumento da alíquota de contribuição para a previdência. Engana-se quem pensa que não será atingido por "direito adquirido". Muda-se a lei, mudam-se os direitos.
Mas, existem alternativas fiscais?
Se falta dinheiro ao governo, existem alternativas. Por exemplo, a sonegação fiscal dos grandes empresários retirou R$ 450 bilhões dos cofres públicos em 2015, segundo dados do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional. Agora mesmo, em 2016, a Lei Orçamentária Anual enviada pelo Executivo e aprovada pelo Congresso, prevê R$ 69 bilhões de renúncia apenas dos recursos da previdência, sem contar o conjunto das contribuições que financiam toda a seguridade social. Sem contar que cada 1% de redução na taxa de juros Selic significaria R$ 17 bilhões de economia para o caixa do Governo Federal, já que reduz os gastos com pagamento dos títulos da dívida pública. E o imposto para taxar grandes fortunas - que existe até nos EUA - sequer é lembrado como fonte de recursos.
Cabe lembrar que, mesmo nos tempo atuais, quem ganha até um salário mínimo tem carga tributária real de 37%, contra 17% dos que tem renda mensal acima de 20 salários mínimos. No Brasil, quem ganha mais paga menos impostos; quem ganha menos, paga mais.
Portanto, é falso o discurso de que o Novo Regime Fiscal é “remédio amargo” necessário para superar a crise: é opção política do Governo Temer que o povo brasileiro pague a conta.
O direito à saúde
Não há dúvida. Se o governo não eleito de Temer faz cortes profundos no orçamento do SUS e estimula os planos privados de saúde, assume que a saúde não é dever do Estado. A partir de agora, não está em jogo “Fora Dilma” ou “Fica Dilma”. Estão em questão o SUS, o direito à saúde e os nossos direitos sociais. A classe trabalhadora e o povo das periferias precisam entrar em cena.
*Médico de Família e Comunidade do SUS-BH, membro da Rede Nacional dos Médicos e Médicas Populares, do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de BH e atual presidente do Conselho Municipal de Saúde de BH / Texto escrito para a edição 2016 do Relatório de Direitos Humanos no Brasil, publicação da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
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