O Projeto de Lei (PL) nº 119/2015, que altera o Estatuto do Índio para determinar aos órgãos responsáveis pela política indigenista a notificação dos casos de infanticídio indígena, esteve em discussão na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado nesta segunda-feira (14). O assunto levanta mais uma vez a polêmica existente entre grupos religiosos – aos quais é atribuída a proposta – e especialistas e entidades da causa indígena, para os quais a medida seria uma tentativa de criminalizar a cultura das comunidades tradicionais.
De autoria do ex-deputado Henrique Afonso, a matéria tramitou durante oito anos na Câmara Federal, tendo sido apontada como pauta de interesse das bancadas ruralista e evangélica. Em discussão no Senado desde o ano passado, o PL encontra resistência em diversas instituições, como, por exemplo, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que já se manifestaram publicamente contra a proposta.
Perspectivas
De caráter multifacetado, o tema envolve discussões religiosas, sociológicas, antropológicas e de saúde pública. Para Fernando Pessoa, da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (MS), a discussão sobre o infanticídio precisa ser feita com cautela.
“Nós da Secretaria temos isso como uma temática preocupante. Há violência contra crianças em geral, não somente na cultura indígena, porque há também situações de vulnerabilidade social. (…) Temos que pensar em como desenvolver políticas públicas para essas crianças, e não criminalizar a cultura indígena, como sugerem pontos do PL”, afirmou.
Ele também destacou que a notificação dos casos de violência nas aldeias já é feita pelo MS em fichas cujos dados são computados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). “O PL propõe que se faça um cadastro das gestantes, em especial daquelas que estão em situação de risco, mas isso nós também já fazemos. Se a atenção primária já tem essa competência, não precisamos de uma nova legislação para normatizar isso”, avalia o sanitarista.
Para a antropóloga Marianna Assunção Holanda, pesquisadora associada à Cátedra Unesco de Bioética, o PL estaria mirando “um ponto errado e propondo a solução errada” para a problemática da violência.
“Quando a gente analisa os dados, observa que a mortalidade infantil indígena não é a causa do infanticídio, então, se a gente é a favor da defesa dos direitos humanos e das crianças indígenas, não é contra isso que a gente tem que lutar. O que ocorre é que os indígenas estão morrendo em números assustadores e muito maiores do que as crianças não indígenas por problemas básicos que políticas de saúde deveriam resolver”, destacou a antropóloga, acrescentando que as causas principais das mortes são problemas como desnutrição, diarreia, doenças respiratórias e infecto-contagiosas.
“O que nós precisamos é buscar um aprimoramento das políticas públicas de saúde voltadas às comunidades, porque nós percebemos que, no Brasil, as crianças que não estão em situação de aldeamento não morrem desses problemas”, comparou. Ela salientou ainda que o país não tem dados concretos sobre o infanticídio praticado em aldeias. “O que nós sabemos é que há uma tendência de redução cada vez maior dessa prática e que também não é um número maior do que o que é verificado fora das sociedades indígenas”, pontuou.
Ela destacou ainda a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dispõe sobre o direito que os povos tradicionais têm de serem consultados sobre medidas do Poder Público que tendem a afetá-los. “Não é possível fazer esse debate sem pessoas que tenham representatividade entre eles”, defendeu.
Fenômeno global
Durante a audiência, a antropóloga mencionou ainda a existência de uma ofensiva crescente contra as comunidades indígenas em diversas partes do planeta. Entre outras coisas, ela destacou que a Justiça australiana, por exemplo, chegou a proibir no país a exibição do documentário brasileiro “Quebrando o silêncio”. Produzido em 2009, o filme trata do infanticídio nas comunidades tradicionais, evidenciando a perspectiva dos defensores do PL119.
“A partir de análises feitas com instituições de antropologia e direitos humanos de outros países, percebemos que há no mundo inteiro esse fenômeno que tenta criminalizar a cultura indígena, e as iniciativas partem dos mesmos grupos, que são de fundamentação religiosa, de evangélicos, que promovem esse tipo de debate e acusam os povos originários de serem infanticidas”, analisa a pesquisadora.
Na visão dela, esse tipo de perspectiva traz consigo o risco de deslegitimação dos povos tradicionais, o que poderia enfraquecer a atuação deles no espaço público. “Quando você afirma que um povo é incapaz de cuidar das próprias crianças, você tira a legitimidade das lutas deles por outros direitos, então, me parece uma estratégia coordenada de inviabilizar as lutas reais dos indígenas. No caso do Brasil, isso passa principalmente pelos direitos territoriais, então, quando você desmoraliza eles dessa forma, surge a pergunta: por que vamos regularizar terras de povos que não são capazes nem mesmo de cuidar das suas crianças? Trata-se de um argumento central para se tirar o direito de qualquer povo”, aponta Marianna Holanda.
Funai
O representante da Funai que compareceu à audiência, Artur Nobre Mendes, criticou o projeto e avaliou que a legislação brasileira e os acordos internacionais dos quais o país é signatário já dariam conta de normatizar a atuação do Poder Público nos casos de infanticídio.
“Esse PL parte do pressuposto de que o Estado brasileiro é totalmente omisso em relação a essa prática, que existe entre índios e não índios, como se também não houvesse garantias em relação à vida, que já estão asseguradas pela Constituição Federal, ou seja, é um projeto que não dialoga com a legislação já existente. Não há necessidade de criação de uma outra lei. (…) Além disso, é um PL terrivelmente discriminatório, na medida em que coloca o infanticídio como uma prática exclusiva das comunidades indígenas, o que não é verdade. Há pressupostos falsos que deram origem a essa proposta, que tem ainda um caráter religioso, pois parte de um esforço de evangelização dos índios por algumas instituições religiosas”, criticou.
Ele defendeu ainda que o tema seja pautado dentro de outra perspectiva. “Infelizmente, vem sendo feita uma discussão sobre quem é a favor ou contra a vida humana, mas o que deve estar em debate é se o PL é mesmo a forma mais adequada de o Estado brasileiro abordar o assunto”, finalizou Mendes.
Outro lado
A cineasta Sandra Terena, responsável pelo documentário “Quebrando o silêncio”, defendeu o PL 119, afirmando que seria uma forma de resguardar as crianças em situação de vulnerabilidade. “É um tema bastante delicado, polêmico, mas o PL vem no sentido de assegurar o direito à vida dessas crianças. Não se trata de criminalização, mas sim de obrigação da notificação dos casos, até porque há uma precariedade dos órgãos do governo no sentido de chegar até as comunidades e prestar assistência”, argumentou.
Outros defensores da proposta também marcaram presença na audiência e reforçaram o discurso de que o PL seria necessário para as comunidades tradicionais. “É um projeto que resguarda a vida das mulheres e das crianças indígenas e ele foi criado não por religiosos, mas por pessoas que amam a vida e que se preocupam com isso. A vida de uma criança é muito preciosa”, defendeu Josué Palmari, líder do “Movimento Indígena a Favor da Vida”.
Relatoria
O presidente da CDH, senador Paulo Paim (PT-RS), é também relator da proposta na Casa e informou que pretende se debruçar detalhadamente sobre o tema, convocando novas audiências públicas para debater a matéria.
“É um tema que choca, sendo um dos mais importantes dos quais já tratamos aqui. Tenho consciência de que o projeto é polêmico, complexo, e não vou me omitir”, disse o petista, sem manifestar claramente um posicionamento sobre o PL.
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