Na semana passada, o governo federal finalizou uma pesquisa interna para apurar a intenção de compra de software e serviços da Microsoft nos órgãos públicos de sua esfera. Até o último dia da chamada, 11 de novembro, 48 órgãos responderam ao comunicado do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MP) e 20 deles afirmaram ter necessidade de produtos da Microsoft, principalmente do pacote Office.
A possibilidade de haver uma grande aquisição de licenças da multinacional gerou inquietação entre ativistas sobre o fim de uma política normativa do software livre no Brasil, que teve início somente em 2002 e ainda não está consolidada no país.
O chamado, segundo especialistas, seria incoerente com o discurso e as políticas de austeridade do governo não eleito de Michel Temer. O sociólogo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI) durante o governo Lula, é um deles.
"Quando há essas chamadas, os lobistas de empresas que vendem softwares proprietários costumam atuar na máquina de Estado para que se tenha pedidos massivos. Em um momento que o governo diz que está economizando, que se economize com licenças desnecessárias", criticou o especialista.
Além disso, o chamado desrespeitaria normas já vigentes. Segundo a integrante da Associação Software Livre.Org, Mariel Zasso, a compra de produtos como o Microsoft Word ou Excel contraria a Instrução Normativa nº 4, de 2014, que exige prioridade ao software livre pela administração pública. Isso porque existem equivalentes livres, como o OpenOffice e LibreOffice, que são "tão bons ou até melhores" que o oferecido pela multinacional.
Ela aponta que a normativa, que não tem força de lei, é ameaçada pelo lobby das empresas. Por isso, defende uma legislação que obrigue, sob punição os órgãos da administração pública, usar software livre.
"As vantagens não são apenas de economia de recursos. Uma lei como esta estimula a inovação aberta e, assim, tudo o que foi desenvolvido retorna para o Estado e sociedade, não fica nas mãos de uma única empresa. O conhecimento é compartilhado, público e aberto a qualquer interessado estudar, modificar e inovar", argumenta.
Amadeu pondera que não existe possibilidade de auditoria nos programas de empresas nem de acesso a seus algoritmos já que o código-fonte é fechado - ou seja, não há a possibilidade de se ler a linguagem em que ele é construído e que será executado pela máquina. Por isso, eles também oferecem risco de espionagem e vigilância.
"Se for para fazer uma discussão baseada em argumentos concretos, é difícil ser favorável a softwares proprietários, com exceção de programas muito específicos. Não tem nenhum argumento plausível para defender o Word sob o LibreOffice", afirmou Amadeu.
Para ele, um software fechado é, por definição, inseguro. " Um software de código-fonte fechado pode ser muito seguro, mas você tem que acreditar na empresa que o produz. Acreditamos que haveria uma retomada [do movimento de software livre dentro do governo] depois da denúncia de [Edward] Snowden [sobre a espionagem dos EUA na Presidência brasileira], mas o governo Dilma não considerou a importância de [investir em segurança], no mínimo em áreas estratégicas, como a Presidência e [o Ministério das] Relações Exteriores", analisou.
Apenas atualização
O MP afirmou, por meio de nota, que o processo para a contratação está em andamento desde maio de 2015 e que não haverá mudança na política de uso de software livre ou público. A pasta reiterou à reportagem que a compra conjunta é de atualização e de ampliação das licenças já existentes, e não para substituição de softwares livres.
"O projeto de contratação conjunta de software não visa interferir nesta estratégia. O MP realiza desde 2008 aquisições de Tecnologia da Informação por meio de aquisições conjuntas, que geram economia para os cofres públicos", afirmou por e-mail a assessoria de imprensa da pasta. Ainda não estão disponíveis dados comparativos entre essa chamada e a quantidade de licenças existentes.
Antes da compra ser efetivada pelo ministério, os órgãos deverão justificar sua necessidade, que será avaliada por técnicos da Secretaria de Tecnologia da Informação (STI). O processo ainda está em análise.
Lobby
Segundo Amadeu, já havia avanços do lobby empresarial em governos anteriores e que, provavelmente, o novo governo terá menos áreas que resistam a empresas como a Microsoft. Um dos episódios recentes que confirmam essa tendência é a inauguração de um Centro de Transparência no Brasil pela multinacional em parceria com o governo federal, que aconteceu em outubro.
No evento de inauguração, estavam presentes o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o ministro de Ciência e Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, e seus secretários Marcelo Pagotti e Maximiliano Martinhão, e o governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg (PSB).
A Microsoft disse que "o Centro de Transparência é um serviço que a Microsoft oferece gratuitamente a governos de todo o mundo, e não apenas ao Brasil" e que a inauguração foi aberta à imprensa e não houve reunião fechada ou negociação. "Não se trata de um espaço comercial. O foco do centro são a transparência e a segurança", afirmou a multinacional por meio de sua assessoria.
Segundo a empresa, o evento reuniu gestores de tecnologia da informação de diversas instituições federais e de outros países latino-americanos para conhecer como funciona o Centro de Transparência e participar de dois dias de workshop para troca de experiências em segurança da informação, combate ao crime digital e legislação do setor.
O professor da UFABC mostra desconfiança em relação a esta ação da multinacional. "A Microsoft falando de Central de Transparência é mais ou menos a mesma coisa que o ISIS [Estado Islâmico] falando de paz no Oriente Médio", comenta.
Histórico da legislação de software livre
Tudo começou em 2002, quando o estado do Rio Grande do Sul implementou o software livre como política pública: segundo a lei estadual 11.871/2002, os órgãos da administração direta e indireta do RS devem contratar preferencialmente softwares livres.
No ano seguinte, o governo de Luís Inácio Lula da Silva criou o Comitê para Implementação do Software Livre do ITI. Na mesma época, foi criado o Software Público Brasileiro, portal que concentra e divulga programas de código aberto criados pelo e para o governo.
Edição: Camila Rodrigues da Silva
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