Mães e familiares vítimas da violência do Estado, militantes ligados aos movimentos negro, de cultura, de saraus nas periferias e outras organizações e entidades populares lotaram a Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco nesta quinta-feira (17) para o lançamento do livro "Mães em Luta — 10 anos dos Crimes de Maio” (Nós por Nós).
Produzido pelos jornalistas da iniciativa independente Ponte Jornalismo, que denuncia em suas reportagens a violência estatal e violações aos direitos humanos, o livro é composto de perfis das integrantes do movimento Mães de Maio — que reúne mulheres em busca de justiça pelo assassinato de seus filhos pela atuação de policiais militares envolvidos em uma escalada de mortes em maio de 2006 — e traz também outras histórias de vítimas da violência do estado. A organização é do jornalista André Caramante e o prefácio, da jornalista Eliane Brum.
A história de Luana Barbosa dos Reis, uma mulher negra, lésbica e periférica que morreu de politraumatismo craniano após ser abordada e brutalmente agredida por policiais militares em Ribeirão Preto em abril deste ano, é uma das narrativas do livro. Sua irmã Roseli Barbosa dos Reis lembra que, assim como o pai que foi assassinado aos 34 anos pela Polícia Militar (PM), Luana completaria 35 anos no último dia 12 de novembro. “Falar de genocídio, para mim, é sentir. Só agora entendo isso. (…) Depois que vi minha irmã sendo espancada na porta da minha casa e acompanhei toda a hospitalização dela, não sai da minha cabeça que minha irmã morreu da mesma forma que tantos negros no tronco”, declarou.
Para Roseli, além da lentidão do judiciário, que não puniu nenhum policial envolvido na morte de Luana, a falta de visibilidade e acompanhamento do caso, que ocorreu no interior paulista, colaboram com o sentimento de proteção que sentem os policiais. “Queria fazer um apelo para que a gente se movimentasse também pelo interior. Eu sinto que, se isso tivesse acontecido na capital, teria sido diferente. Não que aqui seja mais fácil, que já teria sido julgado. Mas a repercussão, a visibilidade é diferente. Não deixe que nossos mortos contém menos”, declarou.
A partilha de histórias como a de Luana foi o que possibilitou o projeto, na visão de Débora Silva, fundadora do movimento Mães de Maio. Ela conta que abriu mão de um projeto pessoal de autobiografia para que sua trajetória compusesse um dos perfis do livro. “A gente não precisava de uma autobiografia, mas de um coletivo. Nascemos como Mães de Maio para pensar no outro”, afirmou.
A obra propõe ser uma "historiografia resistente" e um relatório das violações aos direitos humanos praticadas pela PM, a partir dos crimes cometidos entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, em que pelo menos 564 pessoas foram mortas no estado de São Paulo com participação de policiais.
O jornalista da Ponte Jornalismo, Fausto Salvadori, afirmou que os relatos do livro mostram que as histórias destas mulheres, em comum, são permeadas pela violência do Estado, não apenas na figura explícita do policial, mas rotineiramente. “A luta delas começou muito antes daquela noite que a bala matou o filho dela. Essas guerreiras tiveram que lutar contra a violência todos os dias. A maneira mais explícita é quando o policial atira, mas ela acontece cotidianamente”, lembrou.
A publicação também tem copatrocínio da Prefeitura de São Paulo, através da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, que também articulou a criação de um memorial dos crimes de maio e das vítimas do Estado no Centro Cultural Jabaquara. Para o atual secretário da pasta, Felipe de Paula, o livro mostra qual é a verdadeira e inaceitável realidade da cidade, de violação dos direitos e do extermínio de jovens negros. “O que mais dói é ver que a relação dentro do estado não é de parceria e defesa dos Direitos Humanos, mas é de violência, de massacre e não inclusão”, afirmou.
Vidas negras importam
Na ocasião, também foi lançada a campanha #BlackBraziliansMatter. O slogan remonta ao movimento estadunidense contra a violência policial na semana em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra.
Para o militante da Uneafro, Douglas Belchior, os temas lançados pela campanha e pelo livro são "assuntos antigos no país". "Estamos aqui para reafirmar o que acontece há 500 anos. Não a violência deles, mas a resistência da nossa parte", disse. Já a coordenadora do serviço SOS Racismo da Assembleia Legislativa de São Paulo, Eliane Dias, pontuou que dentro e fora das periferias a situação dos negros e negras não melhorou no país. “Ser mãe de um jovem negro hoje no brasil é um parto, uma dor constante, ficar de joelho pedindo para deus a todo momento. A conciliação, se é que um dia existiu para os negros, não existe mais", afirmou a coordenadora.
Milton Barbosa, coordenador do Movimento Negro Unificado (MNU) e representante da Associação de Amigas/os e familiares de presas/os (Amparar), ponderou a necessidade do trabalho de base para se ampliar a frente contra um conservadorismo e a direita que crescem no país. Para ele, há "um projeto de genocídio do negro que não surgiu agora" no Brasil, através do narcotráfico, violência policial, do armamento e pelo qual se lotam as prisões no país.
"Para existir um policial, é só dar um curso, uma farda. Eles se substituem facilmente. Mas para um militante é necessário curso, seminário, manifestação, greve... Temos que fazer um trabalho sistemático nas portas de prisões e vamos conhecer mulheres incríveis", apostou.
Solidariedade entre mães
Mães com diferentes histórias de abusos policiais, de anos atrás ou mais recentes, estavam reunidas no auditório da universidade. Roseli Cunha, do Comitê de Mães e Pais em Luta, lembrou da detenção de três jovens em uma tentativa de ocupação da Escola Estadual João Kopke nesta quarta-feira (16) e da sistemática perseguição aos estudantes secundaristas no estado.
A mãe de uma das adolescentes que relataram as torturas reportadas nesta semana na unidade de internação Parada de Taipas da Fundação Casa denunciou que as meninas permanecem trancadas após sofrer sessão de tortura e espancamento. “Peço ajuda para socorrer essas meninas. Não estou pedindo que ninguém tire minha filha de lá. Tenho consciência que ela tem que ficar o tempo determinado pela Justiça, mas eu não quero que as matem”, declarou a mãe.
Após o ato de lançamento na universidade, os presentes seguiram em cortejo e com velas e cartazes em mãos até a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, mesmo local que entidades do movimentos negro ocuparam na semana passada contra o assassinato de cinco jovens da Zona Leste do município.
Estavam no ato o poeta Sérgio Vaz, a secretária municipal de Cultura Rosário Ramalho, o cartunista Latuff, o escritor Alípio Freire, entre outros.
Edição: José Eduardo Bernardes
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