"Já vivemos um estado de exceção", afirma João Pedro Stedile, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em entrevista ao site Brasil 247, Stedile afirma que os atos cometidos pelo STF, "que rasga a constituição ao decretar prisão em segunda instância, e ao julgar direitos trabalhistas", colocam o país numa situação "muito grave".
Uma das principais lideranças do MST, Stedile esteve presente no encontro dos movimentos populares com o papa Francisco, que aconteceu neste mês de novembro, em Roma, na Itália. Segundo ele, Francisco "se transformou em um líder progressista para todo mundo, que extrapola a questão do Vaticano e da religião católica".
"O papa vai nos ajudar muito, para enfrentarmos o debate dos dilemas que a humanidade vive em função da crise imposta pelo capitalismo", disse.
Durante a entrevista, o coordenador nacional do MST comentou ainda a invasão à Escola Nacional Florestan Fernandes, que considerou "uma burrada espetacular da articulação da direita do governo [Beto] Richa com a direita do governo [Geraldo] Alckmin". "Mais do que o fato real, do abuso de autoridade, da prepotência das armas empregadas, revela como as forças conservadoras se sentem livres agora para cometerem todo tipo de atropelos ilegais, durante o governo golpista, que também é ilegal".
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil 247 – É claro que a invasão da Escola Florestan Fernandes não foi o primeiro ataque sofrido pelo MST ao longo de sua história. Tampouco foi o mais violento. Mas como podemos interpretar esse ataque, numa conjuntura atual?
João Pedro Stedile – O ataque da Polícia Civil a Escola Nacional Florestan Fernandes foi uma burrada espetacular da articulação da direita do governo [Beto] Richa com a direita do governo [Geraldo] Alckmin, e cometeram uma série de atropelos legais, tentando buscar dois militantes do MST do Paraná, que estariam na Escola, sem nenhum mandado judicial. Mais do que o fato real, do abuso de autoridade, da prepotência das armas empregadas, revela como as forças conservadoras se sentem livres agora para cometerem todo tipo de atropelos ilegais, durante o governo golpista, que também é ilegal.
Vivemos uma conjuntura que pode avançar para a consolidação de um estado de exceção, isto é, uma nova ditadura. Você vê uma saída para evitar isso? Um acordo, uma transição?
De fato já vivemos um estado de exceção por várias circunstâncias, que começam na posse de um governo ilegítimo, que impôs um processo de impeachment sem que houvesse crimes. O acompanhamento do STF e votação do Senado não dão nenhuma legitimidade. Ao contrário, eles mesmos não tiveram coragem de tirar os direitos políticos da presidenta. O próprio impostor Michel Temer revelou aos empresários americanos em Nova York o motivo do golpe, retomar um plano neoliberal para sair da crise econômica. Por outro lado, todos os dias assistimos o estado de exceção nos atos do STF, que rasga a Constituição ao decretar prisão em segunda instância, e ao julgar direitos trabalhistas. Sem falar nas atitudes dos atores da autodenominada “República de Curitiba”, que se comporta assim, como uma republiqueta, acima da Constituição brasileira. E isso é muito grave.
A ideia de que a recuperação das lutas populares passa por uma frente de esquerda é uma dessas propostas que está na boca de todo mundo. Parece reforma política, reforma tributária: todo mundo acha que sabe o que é mas ninguém explica como se faz. Qual sua opinião a respeito?
Como você disse, não é difícil ter propostas, o problema é ter força popular para construí-las. Do ponto de vista político, só recuperaremos um estado democrático, com a realização de uma profunda reforma política, que devolva ao cidadão o poder político pelo voto, que hoje foi sequestrado pela mídia e pela força do dinheiro. Como o atual Congresso também foi eleito pela força da mídia e do dinheiro, somente a eleição de uma assembleia constituinte, soberana e exclusiva poderia corrigir. Por outro lado, precisamos ampliar ao máximo o debate na sociedade da necessidade de um novo programa que consiga enfrentar a crise econômica e social, que resolva os graves problemas da população que viriam, com uma reforma tributaria, controle do pagamento dos juros da dívida interna, reforma democrática dos meios de comunicação e a retomada do crescimento com investimentos na indústria nacional e na agricultura familiar. Porém, tudo isso só será possível, se antes houver uma retomada das lutas de massa e, com isso, a classe trabalhadora retomar seu papel na luta de classes, realizando grandes mobilização de massas, para mudar os rumos do país, como aconteceu na década de 60, e depois na década de 80.
Numa hora difícil como a atual, é sempre bom recordar que a história nunca termina. Você espera uma retomada dessa luta para breve?
O plano neoliberal do governo golpista, é um plano contra a classe trabalhadora, porque os capitalistas querem sair da crise jogando o peso dela apenas nas costas dos trabalhadores. E para isso estão sendo até didáticos. Precisam aumentar a exploração dos trabalhadores, diminuir salários, aumentar o desemprego, como forma de derrotar politicamente a classe, e tirar direitos trabalhistas históricos, que estão na CLT e na Constituição. Por outro lado, precisam se apoderar dos recursos públicos que antes iam para educação e saúde. Taí a PEC 241 que virou 55 no Senado, justamente para isso. E precisam se apoderar de recursos naturais, para se apropriarem da renda extraordinária que eles geram. Daí a privatização do pré-sal, o código de mineração, a venda de terras para o capital estrangeiro. E o último ponto do programa deles é realinhamento de nossa economia de forma subordinada aos interesses dos capitalistas estadunidenses. O problema é a contradição deles, e isso nos ajuda. É que esse plano é contra o povo e por tanto vai aumentar os problemas. E não vai tirar a economia da crise. Assim, espero que a classe trabalhadora comece a se mexer logo. Acho que algumas categorias mais organizadas, já começam reagir, como os petroleiros, professores, etc. É outro sinal positivo, é a mobilização da juventude com o movimento de ocupação das escolas. Embora, eles não afetem o capital e os golpistas diretamente, mas nos ajudam a conscientizar a população. Todos os pais desses jovens estão participando dos debates e precisam autorizar os filhos a ficarem na escolas. A juventude, em todos os processos históricos de mudanças, representam o termômetro da sociedade, o indicativo de que haverá luta, haverá mobilização. Sou um otimista. Sigo o filósofo russo, que dizia, que o povo quando luta, apreende em vinte dias o que deixou de apreender em vinte anos.
Você foi uma das principais vozes na resistência ao golpe que derrubou Dilma Rousseff. Dois meses e meio depois, pergunto: em sua visão, quando ficou claro que seria muito difícil resistir?
Sofremos uma derrota política, mas foi disputada em várias batalhas, em várias frentes e ao longo de todo ano. E por isso não houve um momento específico. Durante o desenvolvimento dessa luta, os movimentos populares construíram uma unidade na defesa contra o golpe, que foi muito importante, que é a Frente Brasil Popular. Porém, não houve uma mobilização da classe trabalhadora nas ruas. E a força popular só se expressa na mobilização das ruas. A militância e a juventude foram para as ruas, mas o povão não. E há muitas avaliações diferentes para explicar por que o povo não se mobilizou, que vai desde a campanha permanente da Globo a favor do golpe, à política econômica nefasta de 2015, que afastou a classe trabalhadora do governo Dilma, até causas estruturais da falta de trabalho de base e formação política da classe durante os governos Lula-Dilma. Então não sabemos quando, mas sabemos porque perdemos.
Você integra as lutas populares desde 1979, pelo menos. Era possível imaginar que, no final deste período, de mais de 30 anos, os movimentos populares e os partidos de esquerda estivessem tão frágeis?
Não considero que estamos fragilizados. Acumulamos muita força popular em vários aspectos. O problema é que a luta de classes funciona em ciclos e apesar de termos elegido o governo Lula em 2002, isso não representou uma retomada do movimento de massas. E por isso não tivemos forças mobilizadas suficientes para barrar o golpe, que aconteceu também porque a burguesia conseguiu uma ampla hegemonia no Congresso, na mídia e no poder judiciário. Então era apenas uma questão de tempo, ela retomar o controle do poder executivo. Quase conseguiu em outubro de 2014, e depois passou a conspirar abertamente contra o governo Dilma.
Fazendo um balanço desse período histórico, pergunto: onde foi que nós erramos? Numa entrevista publicada pela Carta Maior, em 2015, você dizia que há muitos anos a esquerda só pensava em eleição.
Houveram muitos erros de parte dos governos Lula e Dilma no seu programa, que não teve coragem de propor reformas estruturais, como a reforma tributária, de enfrentar a dívida pública que é a principal forma dos bancos extorquirem os recursos públicos, a reforma agrária e a democratização dos meios de comunicação, seja na sua estratégia de manter uma conciliação de classes com setores conservadores. Houveram muitos erros de parte dos movimentos populares (estou falando no sentido amplo que envolve todas as formas de organização popular, como partidos, movimentos, sindicatos, etc..) nas nossas atividades internas. Muitos de nós ficamos apenas esperando pelo governo, ou pressionando apenas por políticas publicas, o que é justo, mas insuficiente. Deixamos de lado o trabalho de base e a formação política de nossa base. E não conseguimos construir nossos próprios meios de comunicação de massa.
Como avaliar a importância dos anos Lula e Dilma, do ponto de vista histórico?
A principal conquista desses mandatos foi ter barrado o neoliberalismo e ter feito uma política soberana, voltada para os países dos BRICs e do hemisfério Sul. O programa neodesenvolvimentista baseado no crescimento da economia através da indústria, na retomada do estado com políticas públicas para as maiorias e a distribuição de renda através do salário mínimo, foram importantes e necessárias. Porém, insuficientes para consolidar mudanças estruturais na sociedade brasileira. Como o Lula costumava dizer, no seu governo, todos ganharam, mas os banqueiros ganharam muito mais, e com isso tivemos melhorias nas condições de vida da população com aumento do emprego e renda e elevação do consumo, mas foi acompanhada por uma brutal concentração da terra, da riqueza e da renda no país.
Você acaba de voltar de um encontro de movimentos populares com o papa Francisco. Qual o papel que o papa desempenha na atual conjuntura mundial?
O papa Francisco se transformou em um líder progressista para todo mundo, que extrapola a questão do Vaticano e da religião católica. E se transformou um líder por várias razões. Porque teve a sabedoria de enfrentar e pautar os verdadeiros dilemas da humanidade, debatendo suas causas, como a crise do capitalismo, a crise social, o desemprego, os refugiados, as guerras, etc. Por outra lado tem feito uma auto-crítica dos erros que o Vaticano cometeu. E recuperou a confiança e esperança mesmo entre os católicos progressistas, depois de dois papados extremamente conservadores, que isolaram a igreja da sociedade moderna. Veja, no discurso que fez para os movimentos populares, entre outras reflexões compartilhadas, denunciou que o estado capitalista se transformou em terrorista, ao dominar as populações pela tirania do dinheiro e pela manipulação midiática do medo. Sobre o tema dos refugiados denunciou que quando um banco quebra na Europa, aparecem bilhões de euros para salvar seus lucros e acionistas. Mas não aparecem centavos para salvar milhares de vidas que todos dias aportam na Europa, expulsos pelas guerras, das armas vendidas pelas empresas europeias. Quem teria coragem de dizer isso hoje entre nossos políticos? A encíclica que o papa fez sobre os problemas do meio ambiente (Louvado Seja!) é uma obra prima, que nenhum pensador ou corrente política havia trazido antes como contribuição a esse debate. Recomendo que todos os militantes de esquerda a estudem. Assim, o papa vai nos ajudar muito, para enfrentarmos o debate dos dilemas que a humanidade vive em função da crise imposta pelo capitalismo.
Qual a importância do papa para os movimentos populares do Brasil, em particular?
Participamos pelo Brasil representantes de oito movimentos populares, como uma representação plural de movimentos do campo, urbanos, sindical, da CUT, movimento negro, de mulheres, juventude. E também levamos uma magistrada da Associação de Juízes pela Democracia como observadora, testemunha. Da mesma forma que a nível internacional, acho que a contribuição principal do papa será em torno do debate sobre os problemas causados pelo capitalismo e a busca das necessárias soluções a partir das necessidades do povo. O papa é um defensor inconteste, de forma pessoal e à partir da doutrina social da igreja, dos direitos dos trabalhadores, dos mais pobres. E defendeu no primeiro encontro que tivemos, de forma clara, que somente teremos uma sociedade democrática, em todo mundo, quando em cada país, não houver nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, e nenhuma família sem moradia digna!
Olhando para outros países e outros movimentos, você enxerga exemplos que poderiam ser discutidos e aproveitados?
O conhecimento é universal e, por tanto, todas as experiências positivas de propostas de saídas e políticas públicas que forem positivas em outros países devem ser estudadas e aproveitadas.
Agora, a economia do planeta é dominada pelo capitalismo, pelas grandes corporações internacionais e pelo capital financeiro, e está em crise. O capitalismo universalizou também os problemas. Por isso estamos enfrentando problemas parecidos, com causas parecidas, em todos os países do mundo. Aqui na América Latina estamos enfrentando, em todo o continente, uma crise econômica e política grave. No período anterior, havia três projetos em disputa permanente em nosso continente: o projeto neoliberal comandado pelos Estados Unidos, e liderado por México, Colômbia, Chile, Peru; o projeto neodesenvolvimentista, que tinha como representantes maiores Brasil, Argentina, Uruguai; e o projeto da Alba, de integração continental anti-imperialista comandado pela Venezuela, Equador, Bolívia, Cuba, Nicarágua. Acontece que agora os três projetos estão em crise, e por tanto, exigem processos de debate sobre programas, estratégias e mobilização popular, em todo continente.
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