Uma das lúcidas sínteses do ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, ao falar no Encontro dos Movimentos Populares com o Papa Francisco, no início desse mês, estraçalha qualquer tentativa de tapar o sol com a peneira. Segundo Mujica, "o problema de hoje é que o homem não tem mais coração. Tem é uma caixa-forte. Anda pelo mundo com uma calculadora na mão ...".
Pela terceira vez consecutiva, o Papa Francisco financiou e proporcionou um ambiente múltiplo, com mais de 200 representantes dos mais variados grupamentos humanos, de todos os continentes. Dessa vez foram à Roma representantes de 60 países, levando em seus corações, não a calculadora, mas sim a esperança de encontrar caminhos que possam levar à superação das injustiças que sofrem todos os excluídos do mundo.
Enquanto magistrada brasileira, participei como observadora.
No intervalo, no pátio externo do seminário onde se desenvolveu a maior parte das atividades, pequenos grupos das mais variadas matizes e religiões formam-se e se desmancham. Apresentam-se. Reveem-se. Se apoiam ou se congratulam. Circulam e confraternizam. Sindicalistas, líderes indígenas, refugiados, alguns poucos religiosos, trabalhadores rurais, recicladores, etc.
Escuto uma indagação dirigida ao Bispo de Moçambique, responsável pelo Conselho de Justiça e Paz daquele pequeno país devastado pela guerra e fome. Quem a formula é um representante da Libera – Associazoni, Nomi e Numeri Contro le Mafie - entidade que congrega mais de mil associações na Itália e no mundo, objetivando minorar o impacto da ação criminosa da máfia e bem gerir os bens confiscados dos mafiosos, devolvendo para as pequenas comunidades atingidas pela corrupção e criminalidade, estrutura e desenvolvimento.
O italiano delira. Pensa em voz alta. Diz ao Bispo: - Como seria bom se um juiz participasse e ouvisse tudo isso, todas essas denúncias, essas violações. Tu achas que seria possível que um juiz participasse de um evento desses?
Independente do diálogo que transcorreu a partir desse momento, o corte que se faz e que deve ser objeto de reflexão recai sobre a distância existente entre os magistrados e a população. Um oceano a afastar governos e população. Milhares de quilômetros separam os poderes instituídos e a população. Essa distância e a consequente falta de legitimidade das instituições republicanas podem ser compreendidas como uma das causas das recorrentes avalizações desse sistema que produz exclusão econômica e social, atraso e exploração, o qual, por só objetivar lucros, faz da Terra um ambiente sem futuro, sufocante, atemorizante e responsável pela criação de muros em vez de pontes.
Vislumbra-se, de logo, sob o mando do capital, essa forma de gestão que coloca em risco a vida de todas as espécies, onde a exploração e a ganância de poucos impõe aos muitos uma vida sem alimentos, sem moradia, sem estudo, sem transporte, sem trabalho, sem dignidade. Nesse quadro, respiramos em um mundo onde falar em solidariedade, igualdade e justiça gera estranhamentos e desconfianças.
Nas palavras do Papa Francisco, a linguagem do capital pode ser entendida como um chicote existencial que governa impondo iniquidades, violência econômica, social, cultural e militar. A supremacia do dinheiro a governar a Terra e atentar contra toda a humanidade.
Criar pontes constitui-se em uma das propostas do Papa Francisco. Conclusão nada apressada e que deflui das deliberações desse Encontro e dos dois anteriores. Basta de construir muros com base no medo, de não reconhecer no outro a sua humanidade. Que sigamos construindo pontes entre os povos e derrubando os alicerces da exclusão e da exploração.
Para muito além de todas as denúncias de violações de direitos humanos; de formas abomináveis de exploração do ser humano; de falta de terra, de trabalho e de teto, tripé de sustentação do ser humano; por detrás dos relatos contundentes de agressão à democracia, de perseguições políticas, étnicas, religiosas, de gênero, para além de tudo que testemunhei nesses quatro dias de reflexão, a conclusão que se impõe, o caminho que se apresenta, a solução necessária e premente pode ser resumida em uma palavra, em uma ação: revolução.
Já cantava a banda mexicana Maná, aos quatros ventos, “Justiça, Terra e Liberdade”, em 2002, no seu álbum “Revolucion de Amor”.
O grito que estoura o tímpano daquele que faz(ia) ouvidos moucos não mais pede. Agora, exige. A revolução aponta o caminho. A revolução do amor.
Não há mais, nunca houve essa opção, de se pensar em uma solução individual. Estamos todos intimamente conectados. Interligados com o outro e com a Mãe Terra.
O italiano que ignora a fome e a miséria do africano, caminha pela Piazza da Spagna sem poder afastar de si o brilho opaco do olhar do refugiado, que agora lhe constrange a comprar pequenas e inúteis tranqueiras. Como uma pequena bola de fogo, o mundo emborca e faz escorrer de um continente ao outro milhares de refugiados, sôfregos de fome e amor. No meio, um oceano transformado em cemitério.
A opressão do povo palestino é também a nossa dor. A espoliação das terras e a morte diária e em grande escala de indígenas nos atinge. A matança dos dos líderes ambientalistas deixa mais órfão cada um de nós. Rios mortos a produzir perplexidade e desemprego. Guerras insanas. A privatização da água e da terra causas da fome de agora e da fome e sede de nossos netos, futuras gerações fadadas a sofrer as consequências nefastas que a supremacia do capital, que se repete há séculos, carrega consigo.
A globalização da miséria, expressão cunhada pelo Papa, estampa a necessidade urgente de mudanças. “...Este sistema já não se aguenta. Não aguentam os campesinos, não aguentam os trabalhadores, não aguentam as comunidades, não aguentam os povos, tampouco, aguenta nossa Mãe Terra”.
A iniciativa do Papa Francisco revela que não só de almas pequenas e ensombrecidas pela ganância e poder reveste-se esse mundo de meu Deus. Ouvir as histórias de superação, perceber que a força, o conhecimento e o espirito de luta não esmoreceram e não esmorecerão, que o povo originário, trabalhadores rurais sem acesso à terra e trabalho, pessoas sem teto e dignidade, sindicalistas, recicladores, líderes religiosos, estudantes, encontram soluções e se mantêm unidos, alimenta a chama da esperança e dá mais gás para essa luta que é de toda a humanidade.
Fui à Roma e vi o Papa. Mais do que o dirigente máximo da maior organização humana que ultrapassa séculos concentrando poder e conhecimento, encontrei uma pessoa iluminada que, com a grandeza e a visibilidade inerentes ao seu cargo, impacta o mundo ocidental com a consciência de que deve servir à humanidade e não aos católicos.
Papa Francisco propôs uma caminhada não religiosa. Um andar juntos sem medo e com amor. Um encontro da humanidade com os valores cristãos.
Amar ao próximo. Oferecer entendimento, despir-se do egoísmo, da ganância, da opressão.
Nunca antes na história, o amor foi tão revolucionário como nos dias atuais.
*Karla Aveline de Oliveira é magistrada estadual TJRS, membro da Associação Juízes para a Democracia.
Edição: José Eduardo Bernardes
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