Causou comoção imediata no meio cultural o anúncio do governador do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori (PMDB), feito na última segunda-feira (21) de um pacote que propõe, entre outras medidas, a extinção da Fundação Piratini, mantenedora da TVE/RS e da FM Cultura. Desde então, a Praça da Matriz, no centro de Porto Alegre, tem sido ocupada permanentemente, por funcionários e apoiadores de nove fundações e três companhias estaduais que estão a perigo. Nas redes sociais, uma profusão de textos e vídeos contrários têm sido postados.
Em jornais, portais de notícias e programas de televisão, durante esta semana, houve diversas manifestações em prol da Fundação Piratini. Algumas delas foram simbólicas, como no programa Jornal do Almoço da RBS TV (afiliada à Globo) de quinta-feira (24), em que o cantor Tonho Crocco da banda Ultramen apresentou-se com a camiseta que caracteriza o movimento: “Salve, salve, TVE e FM Cultura”. Já na emissora pública, no dia 22, o professor e produtor cultural Francisco Marshall havia quebrado o roteiro e oferecido uma rosa vermelha ao apresentador do programa Estação Cultura Newton Silva. Estes gestos de resistência se somaram aos gritos de ordem entoados diariamente na Praça da Matriz, a um ato show promovido em frente ao palácio do governo na noite do dia 24, e à insurgência de repórteres, editores, cinegrafistas e técnicos que se uniriam para colocar no ar na programação da TVE e da FM Cultura matérias e debates sobre as reações que aquele pacote provocou na sociedade. Para isso precisaram enfrentar as chefias nomeadas pelo governo, que ocupam posições de direção nas emissoras.
O compositor Antonio Villeroy, um dos artistas que logo após o anúncio do pacote logo veio a público se manifestar contra a proposta, enfatiza que a rádio e a TV públicas coatuam e dialogam com a cultura. Villeroy lembra que esses veículos fomentam eventos na área, que por sua vez movimentam a economia e dão empregos. “A FM Cultura é a única de Porto Alegre que toca MPB e sem jabá”, observa. Vika Schabbach, produtora cultural, confirma que as emissoras públicas são as que mais dão espaço para os artistas. “O povo não se reconhece nas grandes mídias”, diz. Schabbach preocupa-se com a questão da identidade local, pois em sua opinião a grande mídia só permite que “se enxergue o externo”. Em contraponto, nas emissoras públicas “há o debate, o questionamento sobre nossa história, nossa comunidade”, conclui.
Marcelo Restori, diretor do grupo de teatro Falos & Stercus, que está enfrentando o despejo das instalações que utilizava no Hospital Psiquiátrico São Pedro, por iniciativa da atual gestão, também esteve na Praça da Matriz apoiando a Fundação Piratini. Restori observa que nos veículos privados o interesse é comercial, não cultural. Já a TVE e a FM Cultura sempre estiveram de portas abertas para os artistas. “Vivemos um momento de luto, pois o estado está sendo jogado à barbárie; isto ocorre toda vez que se deixa a cultura de lado”, conclui, referindo-se ao aumento nos índices de violência no Rio Grande do Sul.
Governador quer economizar
Eleito sem apresentar proposta alguma durante a campanha, o governador Sartori está propondo neste final do segundo ano de mandato o desmonte do Estado em áreas como pesquisa, cultura, comunicação, tecnologia e meio ambiente. Em discurso no dia 21, quando anunciou o pacote, o peemedebista justificou que o estado está em crise financeira e não tem recursos para investir em saúde, educação e segurança. A solução encontrada pelo governo estaria na economia com a demissão de cerca de 1.200 funcionários de fundações e autarquias e o desmantelamento de suas estruturas. O pacote ainda prevê a privatização de companhias como as de energia elétrica, mineração e gás, entre outras medidas.
Alexandre Leboutte, funcionário da TVE/RS, contesta esta pretensa economia e considera um erro o fechamento de fundações em período de recessão, acreditando que ano que vem deverá haver retomada. “É um ciclo, então o governo tem que trabalhar mais é na busca de receita”. Leboutte cita informação do sindicato dos técnicos tributários do estado (Afocefe), de que no ano corrente, até novembro, foram sonegados R$ 6,4 bilhões de reais referentes a ICMS. O jornalista compara, apoiando-se em dados do portal da transparência que mostram que até novembro a Fundação Piratini havia gasto R$ 23,5 milhões, de um orçamento anual previsto de R$ 34,1 milhões. Já a soma dos gastos das nove fundações ameaçadas de extinção no mesmo período é de R$ 155,8 milhões. Leboutte diz que se o governo diminuísse o número de Cargos de Confiança (CCs) e o investimento em publicidade, já garantiria a manutenção dos funcionários de carreira das fundações. Citando editais de publicidade para 2016, chama atenção para o volume de recursos dispensados apenas pelo poder executivo (R$ 80,6 milhões) e pelo banco do estado, o Banrisul (R$ 48,7 milhões), que somam quase o mesmo que se gasta com as fundações que se quer extinguir. Destes recursos, R$ 3,5 milhões foram aplicados pelo governo em campanha publicitária para informar sobre a crise. Boa parte foi para emissoras de rádio e TV privadas. Estes dados fazem parte de um dossiê elaborado pelo movimento de preservação das fundações que está servindo de subsídio para convencimento dos deputados que irão votar o pacote até o final do ano.
Além da questão financeira, acendeu-se o debate sobre a importância e o papel que cumprem fundações como a Piratini, responsável pela concessão dos canais de rádio e TV públicas no Rio Grande do Sul. Para o presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Celso Augusto Schröder, “este pacote é fruto de uma lógica tacanha e pequena de administração; não é uma visão estadista, é lógica de bodegueiro”. Em relação à extinção da Fundação Piratini, Schröder acredita que há um outro elemento, “que é atender à pressão da grande mídia, principalmente da RBS”, grupo midiático que detém hegemonia no sul do país e que elegeu dois senadores da república: Ana Amélia Lemos (PP) e Lazier Martins (PDT), seus ex-comentaristas de política. Na percepção do presidente da Fenaj, há anos a empresa quer fechar a TVE, por duas razões: a concorrência que representa e pela visão ideológica de ser contra tudo que tenha um viés de Estado. “O fechamento da Fundação fere de morte a Constituição brasileira, que prevê a complementaridade entre os sitemas público, privado e estatal”, diz. Mais do que demissões de jornalistas, “o fechamento sonega na democracia a possibilidade de outro olhar sobre a sociedade”. Schröder conclama que a resposta deve ser à altura, pois a opinião pública está sendo posta contra a Fundação Piratini.
Emissoras públicas cumprem papel complementar na radiodifusão brasileira
Os defensores da radiodifusão pública admitem que o papel que essas emissoras cumprem, em complementaridade com os sistemas privados e estatais, conforme estabelece a Constituição, ainda não são muito claros para a sociedade em geral. O jornalista Luciano Alfonso, funcionário da TVE há 28 anos, afirma que “existe um papel de comunicação voltada para a sociedade, que abraça causas que a TV privada não abraça, pois não é feita pra ganhar lucro”. Na área do jornalismo, por exemplo, acredita que uma emissora pública deve fazer um jornal mais analítico, que auxilie a sociedade a se ver e compreender questões. “Mas às vezes o entendimento dos CCs que assumem os cargos de chefia na Fundação Piratini a cada governo não é esse”, relata. O jornalista acredita que os funcionários concursados deveriam alçar cargos no topo da hierarquia administrativa da Fundação com mais facilidade. Ele lembra que a única vez em que um cargo de direção foi ocupado por alguém do quadro foi na gestão passada, em que a colega Marta Kroth foi nomeada diretora geral. Já comentando críticas de subserviência ao estado, Alfonso afirma que a TVE é atrelada ao governo por uma questão burocrática, mas que deve encontrar diferentes maneiras de se viabilizar.
Este entendimento sobre o trabalho realizado pelas emissoras públicas é levado a cabo pelos funcionários. Antes de assumir cargo de jornalista na FM Cultura em 2014, Marcelo Parker já havia sido estagiário na Fundação Piratini e apreciava o trabalho ligado à área cultural, promovendo espaço para mostrar “arte sem jabá”. “Uma vez lá dentro, percebi que o trabalho estava de acordo com o estatuto da Fundação”, diz, justificando que os temas tratados na programação estavam também ligados aos direitos humanos e às minorias. Em relação à rádio, Parker avalia que continuou nesta linha nos últimos anos. Mas observa que, no início de 2015, houve um corte brusco na TVE, porque se implantou uma lógica comercial com os novos diretores nomeados pelo governo Sartori. O jornalista observa que há uma diferença expressiva entre a rádio e a TV no número de CCs. Na FM Cultura são apenas três, o que permitiu inclusive que no dia 22 fosse feito um entendimento editorial com a direção, um dia após o anúncio do governador. Parker acredita que “foi o dia em que trabalhamos com mais liberdade”. Os funcionários passaram a pautar os jornais da emissora com debates sobre o pacote e a extinção de Fundações. Embora ele acredite que sempre fizeram bom jornalismo, nunca tocavam em assuntos delicados para o governo, como agora o fizeram. Na TVE, a relação hierárquica e a liberdade editorial seriam mais complicadas. Marcelo Parker acredita que a TV tem mais atenção política voltada para ela. Desta forma o que ocorre é que os funcionários são mais cerceados no dia a dia. No entanto, a repórter da TVE Angélica Coronel relata que após o anúncio do pacote boa parte da equipe de redação dos dois telejornais passou a pautar por si os movimentos de resistência a medidas do governo. Para a jornalista, que já tem dez anos de casa, fazer jornalismo em uma emissora pública é a eterna tensão entre o interesse público e o interesse do governo. “As TVs públicas não chegaram 'neste patamar' ainda do jornalismo público de qualidade; é uma luta política do dia a dia, e em muitos momentos a gente consegue”, conclui.
Funcionários defendem 42 anos de compromisso com a cultura e a cidadania
O dossiê preparado pelo Movimento dos Servidores da TVE e FM Cultura para sensibilização de parlamentares e da sociedade também reúne informações sobre a história da Fundação Piratini e sua importância. Nos últimos 17 anos, suas emissoras conquistaram 96 prêmios nas áreas de jornalismo, direitos humanos e cultura. Entre eles, um dos mais respeitados prêmios do Brasil, o Vladimir Herzog de Jornalismo, concedido ao programa Nação, produção da TVE/RS transmitida em rede nacional pela TV Brasil, que trata da cultura negra.
Os funcionários da Fundação Piratini chamam atenção para outro dado importante, de que a TVE tem o maior número de horas de programação local no Rio Grande do Sul (são 35 horas e 30 minutos por semana). Já a FM Cultura é a única rádio do Estado que toca majoritariamente música popular brasileira, boa parte produzida por artistas gaúchos (são 20 horas diárias de programação local). O sinal da TVE chega, hoje, a mais de 6,5 milhões de telespectadores, por meio de 40 antenas repetidoras e uma geradora, localizada em Porto Alegre. “Esses números colocam a TVE como a segunda maior emissora de televisão do Rio Grande do Sul”, diz o dossiê. Já a FM Cultura, chega a atingir, atualmente, mais de 3 milhões de ouvintes.
A atriz Júlia Lemmertz gravou apoio à Fundação Piratini e postou nas redes sociais. Outros depoimentos podem ser vistos no Youtube.
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