Nos últimos dias, deputados discursaram, levantaram a voz, fizeram reuniões secretase negociaram nos corredores da Câmara sobre uma proposta que criminaliza o caixa dois e que faz parte de um pacote de medidas anticorrupção. Até então, nenhuma lei cita expressamente o caixa dois como uma irregularidade, e os congressistas se movimentam desde setembro para aprovar um projeto que transforme a prática em crime. No entanto, juntamente com a suposta boa intenção em criminalizar o caixa dois está a proposta de anistiar qualquer ato do tipo cometido até a promulgação da lei.
“Caixa dois é crime, é uma agressão à sociedade brasileira”, disse a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia, nos idos de 2012, durante o julgamento do Mensalão do PT. Naquele momento, as defesas dos acusados argumentavam que seus clientes teriam participado de uma “mera” prática de caixa dois, não de um esquema de compra de apoio no Congresso que poderia ser – e foi – punido como corrupção e lavagem de dinheiro. Em 2012, o caixa dois parecia a solução ideal para garantir a impunidade dos envolvidos no escândalo. Agora, temerosos com os avanços da Operação Lava-Jato, parlamentares querem anistiar quem recorreu aos financiamentos ilegais de campanhas no passado.
O quartel-general para a discussão da anistia ocorreu na casa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que já disse não considerar que caixa dois seja um caso de corrupção. A maracutaia, denunciada pelo deputado líder do PSOL, Ivan Valente (SP), envolveu praticamente todos os líderes partidários. Não teve o aval apenas da Rede e do PSOL, que ficaram de fora das reuniões.
Caixa dois é o jargão usado para se referir a qualquer dinheiro recebido ou pago que não entra na contabilidade oficial de uma empresa ou organização. No caso eleitoral, representa as doações não registradas oficialmente nas prestações de conta da campanha política à Justiça. Sem esse registro, além de não se saber o montante de fato arrecadado pelas candidaturas, não é possível identificar a origem das doações, se são fruto de fontes ilegais ou de atividades criminosas.
Esse dinheiro por baixo do pano é tão costumeiro nas eleições brasileiras que parece não haver vergonha em admiti-lo. Preso na Operação Lava-Jato em fevereiro deste ano, o publicitário João Santana, responsável pelas campanhas dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, disse que 98% das campanhas no Brasil utilizam caixa dois e que isso envolve “das pequenas às grandes campanhas”. Com o avanço das delações na Lava-Jato, a lista dos citados em casos envolvendo caixa dois expôs como a prática é multipartidária. Por isso o tema da anistia unifica vozes rotineiramente divergentes no Congresso.
Pressão multipartidária pela anistia
A manobra pela anistia do caixa dois entrou na pauta da Câmara pela primeira vez em setembro, sem uma convocação especial para a sua votação e sem a apresentação prévia do texto aos parlamentares. O requerimento gerou polêmica. Deputados do PSOL e da Rede protestaram e exigiram do presidente que comandou a sessão, deputado Beto Mansur (PRB-SP), que o tema fosse retirado da pauta. Em meio à pressão dos deputados contrários à manobra, Mansur foi obrigado a encerrar a sessão.
Em meados de novembro, com o avanço das discussões na Câmara sobre o pacote de medidas anticorrupção, a discussão sobre o caixa dois foi retomada e, com ela, a pressão dos congressistas pela anistia. Na quarta-feira passada, dia 24, o texto-base do pacote, elaborado pelo pelo Ministério Público Federal e proposto como projeto de iniciativa popular, foi aprovado em comissão na Câmara dos Deputados. O item oito fala em responsabilizar os partidos políticos em casos de caixa dois e criminaliza a prática inclusive para as pessoas físicas envolvidas nessa contabilidade paralela. A pena proposta é de quatro a cinco anos de prisão.
Apesar de não haver nenhuma lei que contemple o caixa dois, há entendimentos, como o da ministra Cármen Lúcia, de que ele é, sim, um crime ou, no mínimo, uma infração eleitoral. Um dos argumentos é que o artigo 350 do Código Eleitoral fala que é crime “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita”. A descrição da falsidade ideológica seria, portanto, a que mais se aproximaria do que é o caixa dois.
Professor da Universidade Católica de Brasília Paulo Henrique Perna Cordeiro, especialista em direito constitucional, explica ao The Intercept Brasil que o Congresso Nacional baseia o argumento da anistia no princípio da irretroatividade da lei. Ou seja, uma lei só pode abranger os fatos ocorridos depois de sua criação, uma vez que, antes, o crime não era ainda crime. Desta forma, o caixa dois cometido antes de uma lei que o criminaliza não pode ser punido. No entanto, neste caso específico do caixa dois, o professor sustenta que até o STF entende a prática como criminosa e, portanto, a anistia irrestrita não poderia acontecer.
Discussão sem fim
Após muita controvérsia, a comissão especial da Câmara aprovou o texto do projeto que traz a criminalização do caixa dois sem incluir a proposta de anistia. A ideia seria incluí-la como emenda durante a análise do texto pelo plenário da Casa. No entanto, no sábado, depois de se reunir com o presidente Michel Temer, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que não haverá a emenda pela anistia.
Também no sábado, atuando como porta-voz do governo, o deputado Rogério Rosso (PSD-DF) disse que Temer vetaria uma possível anistia, caso a medida fosse aprovada pelo Congresso. No dia seguinte, em meio à crise que levou à demissão do ministro Geddel Vieira Lima (Secretaria de Governo), Temer, ao lado de Maia e Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, confirmou que a anistia, caso exista, será vetada.
No entanto, o poder de veto do presidente não é absoluto e muito menos encerra a discussão. Após aprovação pela Câmara e pelo Senado, o projeto de lei segue para análise presidencial. Se o presidente fizer qualquer tipo de veto a partes do texto, ele retorna para o Congresso. Cabe aos deputados e senadores aprovarem ou rejeitarem por maioria absoluta os cortes feitos pelo Planalto. Ou seja, a voz final é dos parlamentares.
Em Brasília, a preocupação é crescente ao passo que avançam as assinaturas do acordo de delação da empreiteira Odebrecht, que trará uma centena de políticos financiados por recursos ilícitos. Entre eles estão ministros, governadores, deputados e até o presidente Michel Temer, que, segundo a construtora, teria recebido R$ 10 milhões para o caixa do PMDB. O material da Odebrecht é farto em nomes que vão do governo à oposição. Nesse cenário, não causa admiração que a anistia ao caixa dois seja desejada a ponto de unir políticos de todas as cores e credos.
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