O ex-auditor fiscal da prefeitura de São Paulo, Amílcar José Cançado Lemos, acusado de envolvimento no esquema de corrupção conhecido como “Máfia do ISS”, revelado em 2013, pode ter utilizado empresas estrangeiras para ocultar patrimônio das autoridades brasileiras.
A reportagem da Pública teve acesso a um documento da empresa CRIE LLP, com sede na Inglaterra, que registra em 2014 depósito bancário em nome e endereço de Amílcar no banco Belfius, na Bélgica. O valor é de US$ 660 mil, R$ 1,5 milhões pela cotação da época.
A CRIE LLP e a conta no Belfius pertencem ao casal de brasileiros Ulisses Lemos Torres Filho e Karina Goldmann Lemos Torres, que não são parte das investigações. Procurados para comentar as informações, o casal Lemos Torres não retornou o contato e não esclareceu a relação com Amílcar.
O documento que revela o depósito foi obtido pela Pública a partir dos arquivos reunidos na investigação jornalística “Panamá Papers” por meio de uma parceria com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) e o jornal alemão Süddeutsche Zeitung.
Esquema clássico
Consultado sobre as novas informações, o Ministério Público do Estado de São Paulo, que conduz as investigações da “Máfia do ISS”, afirmou desconhecer as transações encontradas pela reportagem, o que indica que o valor transferido de Amílcar para a CRIE LLP pode ter origem em uma conta bancária não declarada fora do país.
Em 2013, o MP já havia quebrado o sigilo bancário de Amílcar e obteve suas declarações financeiras à Receita Federal. O processo corre em segredo de justiça.
Ainda segundo o MP, a se confirmar o percurso evidenciado nos documentos obtidos, esse pode ser considerado um “esquema clássico de lavagem de dinheiro”, quando um conjunto de operações comerciais ou financeiras auxiliam a incorporação de dinheiro de origem ilícita na economia de um país.
Procurado, o ex-auditor fiscal não retornou o contato até a publicação.
De acordo com o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), no esquema clássico de lavagem de dinheiro há, em primeiro lugar, “o distanciamento dos fundos de sua origem, evitando uma associação direta deles com o crime; segundo, o disfarce de suas várias movimentações para dificultar o rastreamento desses recursos; e terceiro, a disponibilização do dinheiro novamente para os criminosos depois de ter sido suficientemente movimentado no ciclo de lavagem e poder ser considerado ‘limpo’.”
A ação do MP registra que o patrimônio de Amílcar tinha valor “correspondente a 125 vezes sua remuneração mensal bruta na Prefeitura de São Paulo”. “Não computados nesse total os bens imóveis que já foram vendidos, cujo dinheiro pode ter sido empregado para adquirir outros bens ou depositado em sua conta bancária ou da empresa de sua propriedade [Alicam Administradora de Bens]”.
Amílcar e a CRIE
Segundo os documentos obtidos nos Panamá Papers a sociedade de Ulisses Lemos Torres Filho e Karina Goldmann Lemos Torres, ambos brasileiros, foi registrada no Reino Unido em dezembro de 2010.
De acordo com o contrato social da empresa, ela atua com comércio e reforma imobiliária na Europa. A documentação da CRIE LLP no Panamá Papers indica, por exemplo, que a empresa não costuma realizar transações comerciais.
Numa carta assinada pelo sócios em abril de 2012 eles admitem que até então não houve “incremento de renda ou capital no Reino Unido, Europa ou qualquer outro lugar”.
Em março de 2015, numa troca de e-mails entre funcionários da Mossack Fonseca e um representante da CRIE LLP, o assunto é discutido em razão de uma cobrança de impostos que a empresa alega ser improcedente. Na conversa, o representante da CRIE LLP argumenta contra a irregularidade da empresa diante do governo inglês. “Nunca tivemos transação comercial alguma”.
No entanto, o fluxo financeiro da empresa é intenso. A conta da CRIE no banco belga teve movimentação de US$ 3,2 milhões e € 1,2 milhões em um ano e meio. Desse montante, 97% dos depósitos foram para outras contas.
No caso da transação de Amílcar, a CRIE recebeu o depósito de US$ 660.994 mil no dia 24 de fevereiro de 2014. Em seguida, registrou sete transferências nos dois meses seguintes que somam US$ 660.279 – cifra próxima do valor original transferido pelo ex-auditor fiscal. A diferença de US$ 714 pode ser atribuída a taxas bancárias.
O valor, dividido entre sete contas, aponta que quatro estão em nome da instituição financeira Merrill Lynch ou de Ana Ehlers, localizada em Miami, destino comum de Amílcar e sua família, segundo o MP.
As outras três contas são das empresas “Vana Corporation”, “NIC International Commerce” e “Mountain Capital”.
A denúncia do MP
Amílcar é um dos onze denunciados nas ações de investigação da “máfia do ISS” em São Paulo. Apurado pela Controladoria Geral do Município (CGM) em 2013, em parceria com o Ministério Público, o esquema revelou que funcionários públicos da Secretaria de Finanças de São Paulo desviavam dinheiro que deveria ser recolhido durante a cobrança do Imposto Sobre Serviços (ISS).
O sistema funcionava no momento do recolhimento do imposto, que é calculado sobre o custo total da obra. Esse recolhimento é condição necessária para que o empreendedor obtenha o “habite-se”, para que a construção seja ocupada.
Segundo a acusação, os auditores fiscais emitiam as guias do recolhimento do ISS com valores muito inferiores ao exigido e cobravam propina das empresas ou dos incorporadores. Segundo o MP, o grupo atuava desde 2005 junto a empresas do setor imobiliário, e pode ter desviado mais de R$ 500 milhões que iriam para a prefeitura.
O MP diz ainda que Amílcar era o responsável por organizar os pagamentos ao grupo. Ele foi demitido da prefeitura e, em março de 2014, a justiça de SP determinou a indisponibilidade de todos os seus bens. Ele responde ao processo em liberdade.
A Agência Pública teve acesso ao conteúdo dos Panamá Papers através de uma parceria com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) e o jornal alemão Süddeutsche Zeitung. O mapeamento da base de dados pode ser acessado pelo site:www.panamapapers.icij.org
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